Para Tarantino
e Hemingway
Contam muitas histórias sobre a Lagoa Seca. E também sobre Hitler. Há quem não acredite de jeito nenhum nas versões sobre sua morte no momento em que ele viu que a vaca tinha ido para o brejo. E há também quem não acredite numa lagoa seca.
Mas, afinal, a história do mundo é construída sobre crença e descrença. Aí é que está o mistério de tudo. A graça da vida. Crer ou não crer, eis a questão, como escreveu Shakespeare, mas infelizmente, como todos sabem, a primeira impressão de “Hamlet” foi feita por um bêbado que trocou algumas palavras e aí já era tarde demais. Quase sempre é mais fácil mudar o original do que as cópias que esvoaçam mundo afora.
Pouco tempo depois de a Alemanha cair, no meio do século passado, meu avô levantou numa manhã como qualquer outra e, como sempre fazia, foi ao paiol buscar algumas espigas de milho para tratar seu cavalo de estimação. Ao abrir a porta do cercado de madeira, deparou-se com uma cena insólita.
Contava minha avó que, da cozinha, ela ouviu sua exclamação: “¡me cago en la puta madre!”. Meu avô era espanhol.
Dizem – pois eu ainda não havia sido produzido pelas gônadas do meu pai – que lá se encontrava ele, num canto, como se estivesse encurralado. “Yo no creo en brujas, pero que las hay las hay”, teria dito meu avô quando atrás dele minha avó chegava com o pau de macarrão, assustada que havia ficado com o assombro do marido.
“¡Virgem santíssima!”, assustou-se ela também. “¿No es la desgracia del mundo?” Minha avó não era espanhola e não se importava em misturar os idiomas.
Alguns sons ininteligíveis para meus avós saíram daquele canto, mas como eles não entendiam alemão, a história não pode registrar essa passagem detalhadamente.
Estupefatos, ambos permaneceram em silêncio por meio minuto.
“Me voy a buscar la carabina”, trovejou por fim o senhor Bartholomeu. E realmente já tinha virado as costas e dado dois passos na direção da casa, quando a dona Salvadora o segurou pelo braço. “¡Tranquilo, hombre!”, disse ela. “¿No estas viendo que isto no iras a lugar ninguno, no iras a nada?” E ela tinha razão.
Segundo o livro “Os grãos de Hitler” (Ed. Afonso Pena), que o mesmo bispo que mudou o bispado de Cafelândia para Lins mandou queimar, de autoria do historiador S.L. Bento, há testemunhas oculares de um avião da então derrotada força aérea alemã sobrevoando a zona rural de Cafelândia na tarde imediatamente anterior à manhã que meu avô disse “me cago en la puta madre” no paiol.
Provavelmente – e esta é apenas uma suposição empírica, sem qualquer valor histórico – “la desgracia del mundo” fora jogada de paraquedas sobre o sítio onde meu avô e os filhos dele cultivavam café, localizado no bairro Lagoa Seca. Também provavelmente, depois de avaliar quais seriam as melhores possibilidades, o paiol acabou sendo um lugar razoável para servir de esconderijo até que uma boa alma pudesse intervir. Ah! Ah! Ah!
Bem, após confabularem, meu avô e minha avó decidiram trancá-lo no paiol até que chegassem a uma conclusão a respeito do que fariam. Entregá-lo à polícia local? Pendurá-lo no milharal para servir de espantalho? Queimar o café e montar um circo para apresentar o monstro ao vivo? Aproveitá-lo para fazer sabão? Entretanto, enquanto as inúmeras hipóteses eram avaliadas, a natureza se encarregou de traçar o destino dos envolvidos no episódio. Sim, o destino não só dele, mas de todos os envolvidos. Porque meus avós também acabaram, depois, admitindo um para o outro que a melhor solução foi realmente a que eles não precisaram pensar.
E chegou a manhã seguinte.
“¡Me cago em la leche!”, exclamou meu avô, que à frente da minha avó entrou no paiol tão logo a claridade dos primeiros raios solares penetrou as frinchas da rústica construção. Atrás dele, erguendo-se nas pontas dos pés para observar por cima dos ombros do marido, a dona Salvadora não acreditou no que viu. “Yo también”, sussurrou hesitante dentro do ouvido do meu avô.
A cena que ambos testemunhavam poderia enlouquecer alguém que estivesse sozinho e, portanto, não pudesse contar com a cumplicidade de um semelhante.
Aqui é preciso dar um breque.
Havia naquela época grandes ratoeiras que durante a noite eram levadas para pontos estratégicos dos sítios e fazendas com o objetivo de combater a inevitável ação noturna dos ratos. Para quem mora nas grandes cidades – ou mesmo nas pequenas, hoje em dia tanto faz – é bom alertar sobre esta palavra: rato.
Os ratos da época talvez rolassem de rir, coçando a barriga com as garras, se pudessem, por uma mágica do tempo, ter visto seus descendentes, pobres camundongos que fogem de uma vassourada (claro que aqui não me refiro às ratazanas que vivem nos esgotos e nos rios podres dos grandes centros – certa vez, vi uma que só o rabo me meteu medo).
Enfim, voltando aos ratos: um dos pontos estratégicos ficava no paiol, onde as espigas de milho serviam como um belo banquete noturno para a rataiada toda.
Eram animais taludos, como se houvesse para eles academias, tônicos poderosos, bombas, mouse training etc. As enormes ratoeiras os prendiam durante a noite para que fossem mortos na manhã seguinte. Não se tratava de armadilha simples, daquelas que um pequeno pedaço de queijo atrai o camundonguinho e sobre o pescoço raquítico dele desce num baque o arame desarmado por ele próprio ao pisar no ferro. Nada disso.
Uma engenhoca besta dessa não funcionaria com “aqueles” ratos. Seria preciso uma viga de ferro para matá-los. Então, utilizava-se um cercado de arame. Meio queijo ou um queijo inteiro aguardava o monstro lá dentro. E quando ele ultrapassava o limiar da portinhola, esta se fechava. Eficiência total, a não ser quando o garotão estava acima do peso e não cabia no vão. Nesse caso, a portinhola não fechava e permitia que ele retrocedesse ileso.
Fim do breque. Segue a bateria.
“¡No es posible!”, disse minha avó com os olhos arregalados, agarrando-se tanto ao meu avô que quase se excitaram dentro do paiol.
O caso era este: possivelmente horrorizado com seus companheiros de quarto e com toda certeza esfomeado (porque, no calor das discussões sobre que alternativa adotar e preocupados em isolar o paiol da curiosidade dos filhos, o senhor Bartholomeu e a dona Salvadora simplesmente se esqueceram de levar comida ao hóspede), lo hijo de una gran puta meteu-se, ele mesmo, dentro de uma das ratoeiras. Dentro de uma das ratoeiras!
Narra o historiador S.L.Bento em seu livro proscrito: “o que os sitiantes, meeiros, colonos e demais moradores da zona rural da Lagoa Seca não compreendiam era como um ser humano poderia, mesmo lançando mão de todos os malabarismos possíveis e mesmo tendo sido a engenhoca construída para apanhar ratos descomunais, como um ser humano poderia acomodar-se em seu interior”.
No mesmo capítulo, entretanto, o historiador faz alusão a uma explicação razoavelmente sensata para a charada. “Dizem que anos depois, quando perguntada a respeito do detalhe por curiosos, dona Salvadora erguia as mãos para o alto e, visivelmente contrariada, pronunciava em alto e bom som: ‘¡Ai, Dios mío! Como si fuera hombre lo gusano’. “
No fim das contas, não havia melhor lugar para ele do que aquele, concluíram meus avós. E lá o deixaram, até que um dia amanheceu morto.
É importante dizer que boa parte dos historiadores cafelandenses recusa-se a aceitar o episódio como objeto de estudo. Para eles, tudo não passa de suposições, boatos e sensacionalismo. Num dos informativos da OPC (Ordem dos Pesquisadores da Grande Cafelândia), há um texto publicado há alguns anos por um dos integrantes da diretoria da entidade, o também pesquisador A.M.Graneiro, colega de S.L.Bento, mas de outra corrente de pensamento.
Diz ele a certa altura do artigo: “Não se trata de duvidar da palavra ou da sanidade daqueles que tomaram como fato verídico um lapso da história, como tantos outros. Mas é necessário alertar aos desavisados que nos anos quarenta, por toda a zona rural do município, eram conhecidas a fama e as façanhas daquele animal roedor que, mesmo caçado por legiões de sitiantes e fazendeiros, insistia em assaltar paióis, tulhas e celeiros durante a noite, e que por sua incrível astúcia foi apelidado de ‘Zorrato’. Sabe-se também que, tão logo a figura do ditador alemão tornou-se conhecida no Brasil, Zorrato, por sua estranha fisionomia e seu fabuloso bigode, passou a ser chamado de ‘Hitlerrato’. Portanto, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém, nem mesmo aos ratos. Já a Hitler, não sei dizer”.
Há realmente quem entenda a passagem histórica desse modo. E muito provavelmente a polêmica perdurará até que não haja mais ratos nem homens no mundo, embora nesse caso ainda seja possível que algum novo Hitler e as baratas fiquem para continuar alimentando a discussão.
O que eu sei é que o êxodo rural e suas consequências colaboraram para que a passagem fosse, aos poucos, esquecida ou desvirtuada, transformando-se às vezes em piadas grotescas de ignorantes pouco afeitos à preservação da história.
Sei também que quase no fim da vida, meu avô estava na cidade fazendo compras num sábado e o dono do armazém perguntou a ele: “Seu Bartolo, eu acredito no senhor, mas me diga uma coisa: onde foi parar o corpo?”.
Enquanto pedia para que o balconista acrescentasse um saco de arroz à sua compra, meu avô tirou os óculos e disse em português: “Para que revirarmos lixo, meu amigo? Saiba que depois que homens e ratos morrem seus corpos não servem mais para nada, tanto faz que sejam homens ricos ou ratos pobres”. E, em espanhol, acrescentou: “Hay que tomar la muerte como si fuera aspirina”.