Do alto do morro, Nando viu aquela onda vindo lá do mar, a maior de todas, sem dúvida. De manhã, ele sentava num muro de contenção a uns vinte metros abaixo de onde morava. Só pra ficar olhando lá longe, a água como num desenho em movimento até espumar na areia. Mas hoje alguma coisa estava errada.
Quando a onda não parou na areia, quando engoliu toda a orla e mesmo assim continuou avançando, Nando ficou em pé e um pensamento o amedrontou: será que a mãe ia acertar quando sempre dizia "é o fim do mundo"?
A onda era gigante, o mar todo até onde sua visão alcançava transformara-se numa bolha gigante. A praia desaparecera lá embaixo. Nando agora estava em pé sobre o muro e arregalou uns olhos deste tamanho: "cacete". O "ce" escapuliu de sua boca tinindo, pois Nando ficara banguela havia poucos dias com a perda dos dois dentes de leite da frente.
As árvores da avenida à beira-mar tinham sumido. E, sem encontrar sequer força para urrar, Nando soltou um grunhido abafado quando viu despencar o primeiro prédio.
Olhou para trás, para a direção de sua casa, pensou na mãe, mas ela saíra logo cedo para o trabalho de doméstica. Nando olhou lá para baixo outra vez. Sua mãe fora para lá. A água consumia rapidamente toda a cidade sob seu intraduzível olhar.
Foi quando, ao seu lado, apareceu a Tita. Ao menos foi o que ele entendeu quando perguntou seu nome em meio aos gritos e à correria que se instalaram na favela. Aterrorizada, ela agarrara a mão dele e agora estavam os dois como namorados observando, maravilhados, o Rio de Janeiro.
Nenhum dos dois lamentou a cidade submersa, pois não tinham acesso a nada daquela cidade, não a conheciam e não podiam antecipar qualquer saudade sobre o que não faziam ideia. Ambos temiam isto sim pelo morro e pelo quase nada que o morro lhes dava.
Quando perceberam a água subindo já bem perto, quiseram correr, mas não puderam sair do lugar. O terror os imobilizara.
Então, Nando apertou ainda mais a mãozinha de Tita. E ela apertou ainda mais a dele. E Nando sentiu um aperto tão forte no coração que sem saber soube do que se tratava: que ele amaria Tita para sempre.
E a água veio. E tomou tudo.
Não há mais cidade, não há mais morro. Mas Nando e Tita estão lá sim. Porque quando se sente o que Nando sentiu, quando se sente um amor de verdade, aquele instante não há água nem fim de mundo que desmanche. Aquele instante fica lá pra sempre.
E daqui a dois mil anos, quando alguém passear de barco por lá, vai sentir o ouvido zunir e vai pensar - errado - que em seus tímpanos há um som, como se rompesse distante: tuntum-tuntum-tuntum-tuntum.
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