“No velório de Adão, a serpente – que havia ficado amicíssima de Eva – pergunta à viúva: vai enterrá-lo vestido com a folha de parreira? E ela responde: ah, vou, mas nem precisava, viu, querida? Uma folhazinha de laranjeira já resolvia. E diz que as duas não podiam mais olhar uma para a outra sob a ameaça de passarem o velório inteiro rindo.”
– Ai, só você mesmo, Altair – reagiu milhares de anos depois, entre a lamúria e o divertimento, outra viúva, derramando duas ou três lágrimas que enxugava com um lenço branco, diante da piadinha contada pelo amigo do marido, que sentara com ela ao lado do caixão e pegara sua mão direita com as duas dele.
- Teté adorava piadas – ainda disse ele em tom nostálgico, com o olhar perdido.
- Quem? – a viúva perguntou sem compreendê-lo.
- Ah, era um apelido do Telmo – respondeu Altair, como se tivesse acordado de suas quimeras, dando palmadinhas na mão da viúva, que ainda segurava entre as suas.
Passaram-se alguns instantes de silêncio. A viúva enxugou mais algumas lágrimas.
- Éramos apaixonados um pelo outro – disse de repente Altair, então com setenta e poucos anos.
- Eram mesmo – assentiu emocionada a viúva, balançando a cabeça para baixo e para cima, para baixo e para cima.
- Sabe, Irene? – tornou Altair, como se voltasse a uma longínqua divagação. – Nós não íamos a jogo de cartas nenhum. Ficávamos por aí, rodando de carro à noite, conversando sobre a vida, depois...
- Que importa isso agora? – cortou a viúva sob amargura própria da circunstância. – Vocês tinham uma bela amizade e é isso que ficou.
Uma mulher de preto veio cumprimentá-la. Ela ergueu-se para receber os pêsames e em seguida foi dar mais uma espiada no defunto.
- Irene – ela ouviu a voz de Altair bem perto, feito um sussurro, – ele queria que eu contasse a você depois de sua morte: nós éramos amantes.
A viúva, então, levou o lenço branco à boca como se segurasse o vômito ou uma tosse repentina. Mas não lhe foi possível. Assemelhando-se ao som de um tecido se rasgando, mesmo tendo ela apertado o mais que podia o lenço contra os lábios, de sua boca escapou uma gargalhada que quase a sufocou diante de veladores atônitos.
- Ai, só você mesmo pra me fazer rir numa hora dessas, Altair! – disse ela, empurrando de leve o velho amigo do marido para o lado.
E novamente, entre lágrimas e lapsos de sorriso que procurava disfarçar com o lenço à boca, pôs-se a ajeitar o veuzinho da cabeceira do caixão para que a fita de seda não continuasse a incomodar a calvície do defunto.
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