Hoje foi um dia muito especial pra mim.
Mas o que aconteceu?
Nada.
Quer dizer, nada que seja digno de nota (do tipo que nos acostumamos a considerar importante – passei num concurso, fiz um ótimo negócio na minha empresa, ganhei na loteria, tive aumento salarial, comprei o carro que sempre quis, estou mudando para a casa dos meus sonhos, aquela menina finalmente me enxergou).
Nada disso.
Apenas o seguinte:
a) Saí para almoçar a pé e na volta, nas imediações de onde moro, ao passar em frente à casa de um cachorro grande, pelo curto, cor creme (acho que é labrador), eu o ouvi correndo ao portão. Num outro dia, ele estava latindo feito louco, empinado na grade do portão que dá para a rua, como se fosse acabar com todo mundo. Bom, aí hoje eu estava passando lá e percebi que ele vinha correndo, ofegante, para a grade. Pensei lá vem ele latir que nem um louco. Diminuí o passo e esperei por ele. Só que, ao invés de latir, ele trazia uma bola vermelha na boca e ficou fazendo aqueles movimentos típicos de cachorro que quer brincar, a bola colada ao chão, ele a segurando com a boca, orelhas empinadas, olhos cravados em mim, "vem pegar, vem!".
b) Depois de tomar café com um amigo, fui ao supermercado comprar umas coisinhas que estava precisando. No caminho, peguei o DVD do filme Anna Karenina. E então me vieram à cabeça Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov, Turgueniev, Pasternak, gigantes russos da literatura cujas obras tornam possível acreditar na humanidade. Respirei o ar quente do inverno bauruense, tão oposto ao ambiente quase sempre gelado dos livros de todos eles, e respondi com bom humor à pergunta de um cara que procurava um lugar para fazer a recarga do celular.
c) No supermercado, vi um saco com uma verdura tão bonita que me deu vontade de abrir o plástico e enfiar a cabeça lá dentro, e nisso me lembrei da terra ao qual sou ligado por uma fibra potente que não me faz perder a esperança de um dia voltar a ela (e isso, bem entendido, não tem nada a ver com a morte, pois na verdade eu, quando morrer, serei cremado!). Comprei a verdura, claro. E vou comê-la!
d) À noitinha, saí para minha andança diária de dez quilômetros e por acaso encontrei um cachorro que mora aqui perto de casa, um pastor com cara de velho, meio desengonçadão, que às vezes late pra mim como se desejasse me trucidar e outras vezes, deitado no cimento e sem mexer um único músculo, me olha com cara de coitado, hoje não, Márcio, to meio caidaço, fica pra outro dia. Um cara, acho que o dono (que nunca vi), estava dando umas corridinhas com ele, mas ele, pelo que percebi, não estava aguentando o tranco. Corria por alguns metros e parava, e assim por diante. Fiquei contente porque gosto dele (do cachorro). E sempre que passo em frente ao quintal onde ele mora, penso será que não passeiam com esse cachorro, será que não tiram ele do quintal uma ou outra vez, será que não o levam para mijar na rua, para cheirar a bunda das cadelas, para gastar a energia bruta dos cães? Hoje, quando o vi, comecei a rir sozinho.
e) E assim as coisas foram rolando. E eu, na volta da caminhada, ouvindo no MP4 ou sei lá o que se chama esse troço que a gente bota no ouvido para ouvir música, ouvindo as músicas que minha filha gravou pra mim, pensei que eu, se fosse necessário, daria a vida por ela (minha filha). Dizem que o amor paterno não chega aos pés do amor materno. Mas quem pode provar algo tão subjetivo? Existe a mãe, que sente o amor dela. E o pai, que sente o amor dele. Não dá para comparar. Não existe um termômetro para medir a febre do amor. Eu só sei, fiquei pensando, que venderia minha alma por ela (minha filha), que passaria a eternidade no fogo do inferno ou na incerteza do purgatório ou na monotonia celestial por ela (minha filha). Até aqui na terra! Até aqui na terra eu ficaria para sempre (veja onde é capaz de chegar um amor paterno!) por ela (minha filha).
f) Enquanto as flores de São João (minhas preferidas) rabiscavam meu rosto, pensei também que todos esses pensamentos pensados num dia qualquer podem não ser lá essas coisas para muita gente. Mas eu tenho certeza de que um ou outro compreenderá este meu rompante, uma quase felicidade impetuosa que varre você em minutos e depois vai embora com a maior cara de sacana. Porque gente como eu, que carrega consigo uma eterna angústia, uma tristeza enraizada, uma inevitável queda pela solidariedade ao sofrimento mundial, aquele aperto no coração que ninguém jamais poderá traduzir ou nem mesmo tentar explicar, gente assim se surpreende quando, por alguns minutos ou algumas horas, entra nesse estado, digamos, de satisfação cuja origem e cuja consequência não passam de um suspiro. E é só isso mesmo. Não há nada a acrescentar, coisas como “então ele sentiu o sopro da felicidade e sua vida se transformou”. Não! Transformou coisa nenhuma. Em seguida é a angústia outra vez, é a tristeza enraizada outra vez, é o aperto outra vez, até que, num belo dia, não sei quando, você sente novamente a presença de um dia especial.
g) Com todas essas ideias chafurdando meu crânio vazio, onde há apenas uma espuma que um dia desses pode se desfazer como a espuma de um detergente vagabundo que deixa a buchinha da pia na mão, com todas essas elucubrações, essa verdadeira masturbação existencial, cheguei ao portão do prédio onde moro. E estava saindo um casal com um cachorro na coleira. Para passear. Olhei para ele (para o cachorro) e ele imediatamente se empinou nas minhas pernas. Um buldogue campeiro, disseram os donos. Seis meses. É bravo? Não, mas cuidado com as unhas dele. E ele me cravando as unhas na bermuda, me lambendo as mãos, grunhindo baixinho, como se fosse meu amigão de velhos tempos. Mike, o nome dele. Me deu vontade de ajoelhar e abraçá-lo, mas tive vergonha. Mike, pra fechar o dia. Como se me conhecesse há um tempão. Como se gostasse de mim.
E é isso. Não tem conclusão. Não tem fim. Não tem lição de moral. Não tem o que compreender.
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