Chega à rua quase sem fôlego.
Esqueceu de respirar. Bateu a porta depois da briga, nem sabe como apertou a tecla do térreo. O garoto parou à sua frente bem aí, quando ele se preparava para puxar o ar, encher os pulmões, tentar voltar à razão.
Vai pra puta que o pariu, moleque, não tenho dinheiro nenhum.
Aperta o botão para desligar o alarme do carro, entra como um cão raivoso, bate a porta, sai cantando os pneus.
Roda dois minutos e aquele pesinho na consciência começa a atormentá-lo. Trabalha a tarde inteira dizendo a si mesmo que é bobagem. A briga na hora do almoço, o rompante de ódio contra o moleque, tudo bobagem.
À noite, bebem e fazem as pazes na cama. Dorme com aquele pesinho. Bobagem. Amanhã vai encontrá-lo e botar dez paus nas mãos dele, só pra ver a cara de felicidade.
Sai à rua devagar. Espera a voz infantil chamá-lo de doutor, moço ou... não se lembra bem do que foi. Depois do almoço, demora-se para entrar no carro. O pesinho. O maldito pesinho. Dá voltas pelo bairro, olha para as lojas próximas, as portas dos restaurantes, as esquinas com semáforos onde outros garotos jogam limões para o alto. Nada!
Trabalha, volta, bebe, transa, acorda, sai. Trabalha, volta... É um peso, decide-se. É um peso.
Doutor, grita-lhe um rapazinho do outro lado da calçada.
Você não, ele avisa, cadê o outro?
Que outro?
O menor.
Que menor?
Aquele que...
Entra no carro, respira fundo. A nota de dez reais no bolso da camisa parece incomodá-lo. Tira-a de lá e a enfia no da calça. A cara do menino está no retrovisor, no volante, no botão do rádio.
Todos os dias, quando sai de manhã, quando volta para o almoço, quando olha da sacada, quando vai à padaria, quando, quando... Todos os dias ele procura aquele garoto. É uma obsessão. Conta à mulher, detalha cuidadosamente sua descrição, tem cabelo quase raspado, uma cicatriz bem no alto da testa, sabe?
Ao sair para o trabalho, também ela procura observar os meninos das ruas próximas.
É este? E mostra-lhe uma foto roubada no celular.
Não, é menor, tem a cicatriz, lembra?
Talvez ele tenha se mudado, ela sugere.
É, pode ser.
Melhor esquecer isso, afaga-lhe o ombro.
É, vou tentar.
Hoje, na calçada, antes de entrar no carro, vê um garoto vindo em sua direção. Sente uma tremenda alegria porque parece ser ele. Quando o observa de perto, contudo, tem dúvidas. Não, não é o mesmo do outro dia. O menino não lhe pede dinheiro. Passa como se não o tivesse visto.
Sente a nota de dez reais umedecer na palma da mão.
Quem sabe, amanhã.
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