Quando nos mudamos, no início da década de setenta, para a propriedade rural de meu avô materno, jamais poderíamos imaginar como seria dramática aquela primeira semana que marcou para sempre nossas vidas. Fomos para o campo cumprir o que se estabelecera tão logo o vovô desistiu de continuar. Deu-se assim: brigando sem queixar-se há cinco ou seis anos com uma interminável seqüência de cânceres, ele cansou-se, mandou chamar as duas filhas, os genros e os netos, anunciou seu fim iminente e foi deitar-se, como se a morte o esperasse na cama, onde, aliás, encontrou-a poucas horas depois. A probabilidade do acontecimento já havia feito com que meu pai e meu tio tomassem a decisão de seguir com a fazenda de médio porte, uma boa produtora de café e melancia. Assim, três ou quatro dias após o enterro, juntamo-nos à vovó.
Éramos em nove: meus pais tinham três filhos, e meus tios, dois. De todos, eu era o mais velho, doze anos. Enzo, o caçula da família, meu primo, não havia completado dois. A fazenda, para nós todos, crianças cheias de energia e curiosidade, significava uma grande aventura. Já a conhecíamos muito bem. Vivíamos pisando em suas terras durante nossas férias. Meu avô, um italiano de nome Vincenzo, jamais abandonaria os netos à modorra de seus pequenos quintais da cidade. Mal acabava a última aula de dezembro e sabíamos que do lado de fora do grupo escolar encontrava-se, estacionada no meio-fio, uma caminhonete azul com um sujeito muito alto e sorridente apoiando-se nela. Aliás, eu nunca soube precisar se assim o era ou se na realidade a caminhonete é que se apoiava nele. Saíamos da porta da escola, passávamos em casa e chispávamos para a fazenda.
Como todo bom italiano, Vincenzo falava quase sempre em altos brados, gesticulando muito, enfim, fazendo-se entender. Outra característica muito latente em meu avô era sua pertinácia. Minha avó Sofia chamava-o de Senhor Teimoso. Talvez por essa razão, poucos encorajavam-se a participar de qualquer controvérsia em que ele estivesse metido. O maior exemplo de sua teimosia, e quem sabe o episódio decisivo para exterminar a menor esperança de poder contrariá-lo, ocorreu antes de meu nascimento. De uma de suas incursões a Minas Gerais, em busca de novas mudas de café, voltou trazendo, num engradado preso sobre a carroceria do caminhão, três cachorros irmãos, dois com idade em torno de um ano e o outro ainda filhote. Nada demais para uma fazenda, onde há espaço suficiente para muitos cães. Com o tempo, entretanto, minha avó, e mesmo os empregados, passaram a intrigar-se com algo curioso: a pequena cria crescia rapidamente, mesmo a ponto de igualar-se em tamanho aos demais. Quando perguntado a respeito, vovô riu-se com gosto e depois contou o caso: na verdade, tratava-se do cruzamento de uma cadela com um lobo. Bem, ao menos era o que lhe tinham explicado no tal viveiro de Minas.
Todos os protestos da vovó ou os alertas conduzidos com cautela pelos trabalhadores da fazenda foram refugados pelo Senhor Teimoso com muito bom humor. Enfim, desistiram da idéia de convencê-lo a livrar-se do lobo-cão. Já tinha, inclusive, dado um nome ao bicho: Dino, homenagem ao escritor Dino Buzzati, autor de “O Deserto dos Tártaros”, livro favorito de vovô. Dino cresceu em meio aos outros cachorros da fazenda. Em verdade, posso afiançar, não faria mal a uma galinha. Suas energias e seu instinto de lobo aproveitavam-se para a caça, nada mais. Lembro-me que em nossas férias, vovô costumava nos divertir fazendo do magnífico Dino um mini-cavalo. Chegou a construir um arreio especial para encaixar sobre seu lombo espesso e peludo. Como um cachorrinho novo, o portentoso animal permitia que lhe enfiassem na coleira, e lá ia Vincenzo, puxando-o lentamente, revezando-nos nos saborosos passeios. Hoje, fico pensando se nosso peso poderia incomodá-lo, mas acho que não – éramos muito pequenos e o próprio Dino parecia apreciar a diversão.
Assim, quando chegamos à fazenda, para morar, nem mesmo esse pormenor sinalizava empecilho. Com outras crianças, filhos de colonos, vivíamos entre nossos velhos conhecidos: cães, gatos, galinhas e também as pombas que ciscavam sem cerimônia aos nossos pés. Enquanto os adultos organizavam a nova vida dentro do casarão, tínhamos liberdade para brincar e correr pelos arredores. Entretanto, eu preferi deixar as algazarras para os menores e dedicar-me a uma tarefa que me enchia de prazer. Havia uma saleta onde Vincenzo poucas vezes deixara-me entrar. Era sua pequena biblioteca, organizada com esmero e dedicação. Ao menos uma vez por mês, ele retirava todos os livros das prateleiras para limpá-los e folheá-los em busca de traças. Meu ingresso ali era limitado, mas isso não quer dizer que eu não tivesse acesso aos livros. Ao contrário. Vovô fazia questão de ler histórias dos livros dele para os netos, e mais tarde, quando passei a compreender as letras, todas as noites ele trazia um exemplar para que eu mesmo saboreasse as delícias da leitura. Ele só guardava muitos ciúmes da biblioteca, apenas isso. Então, logo no dia de nossa chegada, a vovó chamou-me a um canto, entregou-me uma chave dourada e disse aquelas palavras que fizeram escorregar pelo meu rosto lágrimas de felicidade: de agora em diante, você é o chefe da biblioteca.
Acho que nem é preciso dizer que eu me fechei na saleta para deliciar-me com tantos livros, tantas histórias. Primeiro, percorri o pequeno quadrilátero de prateleiras, contornando-as e acariciando as capas duras, as plastificadas, as mais simples e judiadas pelo tempo. Em seguida, tomei dois ou três exemplares para cheirá-los. Eu sempre agia assim quando um daqueles livros chegava às minhas mãos, e agora podia meter meu nariz no meio das páginas de todos eles, embora surgisse uma ponta de tristeza a cada instante de recordação do vovô. Lembro-me de estar observando, extasiado, as fileiras de títulos, quando chamou-me a atenção uma caixa prateada de metal numa extremidade de um dos armários. Minha curiosidade infantil aguçou-se. De imediato, puxei-a sobre a escrivaninha, bem no centro da saleta. Sentei-me à cadeira confortável de madeira envernizada e cuidadosamente destampei o invólucro frio. Dentro, repousava um grosso livro de brochura, com uma capa em branco. Passei a folheá-lo, dessa maneira comum a quase todo mundo, do fim para o começo. As últimas folhas encontravam-se virgens, nada, só mesmo pequeninas manchas escuras do próprio papel. Impaciente, procurei abri-lo no início. Na segunda página, li: “Minhas experiências”.
O caderno continha cerca de cinqüenta páginas preenchidas, todas manuscritas e todas revelando, como anunciava o título, pequenos experimentos levados a cabo pelo vovô. Lá estavam explicados, incluindo algumas figuras muito bem desenhadas, uma forma de arado que sulcava a terra com mais eficiência; um método, que ele chamou de revolucionário, para levar água aos chuveiros; um sistema de irrigação para as pastagens; uma estufa para proteger as parreiras; e uma série de outras engenhocas a serem utilizadas no dia-a-dia do campo. Tenho esse manuscrito até hoje, guardado com muito carinho no melhor lugar de minha própria biblioteca. Basicamente, suas páginas contêm projetos, na maioria das vezes apenas superficiais, de vários aparelhos aprimorados de outros já existentes e, pobre vovô, bobagens que não servem para coisa alguma, mas, justiça seja feita, também reúnem boas idéias que ainda podem dar o que falar. Isso, contudo, eu prefiro tratar numa outra ocasião. O caso é que naquela época, com doze anos, tudo aquilo era muito estimulante, especialmente invenções criadas e descritas pelo meu avô. Por isso mesmo, abandonei momentaneamente meu interesse por todos os livros e detive-me à leitura explicativa daquelas parafernálias. E, assim como eu o fazia à noite, na cama, mantinha a saleta escura e utilizava a lanterna. Meu prazer nessas horas aumentava quando em minha imaginação habitavam as figuras de pesquisadores que vão sigilosamente às bibliotecas em busca de informações preciosas para suas grandes descobertas. A lanterna acendia minha utopia de menino.
No segundo dia, eu pesquisava a arquitetura do tal arado mais eficiente, quando, lá fora, ouvi gritos de minha mãe e minha tia, e depois de minha avó, e também de meus primos, e daí formou-se um grande alvoroço. O Enzo, o pequenino Enzo, desaparecera. Entretidas com a arrumação da mobília, das roupas e de todos os afazeres exigidos por uma grande mudança, as mulheres da casa descuidaram-se e deixaram-no em meio ao tumulto infantil no quintal. As próprias crianças deram por sua falta, mas já era tarde. Meu pai e meu tio foram chamados. Com eles, vieram os empregados. Uma busca incessante seguiu-se durante todo o dia. No fim da tarde, veio a polícia. Um jipe preto e branco com a luz vermelha da sirene apagada despejou quatro policiais na porta do casarão. Lá dentro, o pranto, que depois se estendeu pela noite, cortava um pesado silêncio. A varredura humana, a esta altura já com a presença da reportagem do jornal e da rádio, percorreu as ruas dos cafezais, as pastagens, as capoeiras e as manchas de matas, os pomares, os ranchos e os galinheiros, os chiqueiros e as mangueiras, um açude, as casas abandonadas. Os moradores da colônia reviraram seus móveis, olharam embaixo das camas, abriram armários, subiram nos telhados. Na madrugada, já quase pela manhã, o delegado chamou meu pai e meu tio e disse-lhes poucas palavras. Meu pai abaixou a cabeça, meu tio soluçou. Inconformados, pediram que as buscas continuassem, até que pelo meio da manhã houve algo que sacudiu o ar e gelou pavorosamente as nossas almas.
Um dos colonos lembrou-se da existência de um poço velho, próximo ao início das pastagens que desciam em direção ao rio. Todos correram, temerosos, ao local. Em meio aos restos da construção de um viveiro de café e da quiçaça, surgiam os tijolos cimentados que perfaziam a baixa defesa em círculo. Na verdade, havia ali um grave desleixo: uma leve folha de zinco, embora bem encaixada, cobria a boca do fosso. Qualquer criança poderia erguê-la para alimentar a curiosidade que todos temos de “olhar lá embaixo”. Eu acompanhei a rápida procissão de todos aqueles homens nervosos. Os policiais ergueram o zinco e não foi preciso lanterna para iluminar o buraco. O sol alto fazia-o bem. Vários deles olharam ao mesmo tempo. Eles ajoelharam-se à beira da mureta e debruçaram sobre o cimento. Meu pai e meu tio guardaram certa distância, ao menos até que os outros se certificaram de que ali não havia criança. Dava para ver a água lá no fundo, a água sem qualquer objeto ou corpo a boiar. Assim mesmo, providenciaram-se cordas e um dos soldados desceu. Com a água pela cintura, ele comprovou não haver ali qualquer coisa estranha. Meu Deus, lembro-me tão bem da sensação esquisita que me percorreu quando o soldado gritou do fundo do poço que a criança não estava lá: eu não sabia se ficava feliz ou triste. Eu sabia que se Enzo fosse encontrado no poço, dificilmente estaria vivo, mas e agora? E agora, que não havia mais onde vasculhar?
Enquanto, reunido com meu pai e meu tio, e os homens da fazenda os rodeando, o delegado levantava várias possibilidades para o desaparecimento de Enzo, surgiu por detrás de todos, como uma aparição perturbadora, o velho Dino. Acho que o Dino já contava mais de quinze anos naquela época, uma idade considerável para um cão, embora eu não saiba dizer o que isso representa para um cão-lobo. De todo modo, ele apareceu repentinamente e sua imagem, devo confessar, era terrivelmente assustadora. Trazia bem na cabeça alguns arranhões, a boca ensangüentada, o corpo muito sujo de uma substância esverdeada, como um lodo, e, entre os dentes, o que causou pavor a todos: um retalho todo rasgado, possivelmente de uma roupa. Bem, era exatamente um pedaço da camisa que Enzo vestia quando desapareceu. Tão logo confirmou-se o pano como sendo da blusa de meu primo, a cena continuou horripilante: meu tio sacou o revólver e disparou tantas vezes quanto pôde contra o Dino. À medida que as balas varavam seu couro, ele retirava-se lentamente, sem rosnar, sem latir, sem qualquer indignação, discreto como sempre vivera, até encostar-se ao tronco de uma jaqueira próxima e ali dormir para sempre. Apesar de tudo, apesar de todas as evidências, ainda tive muita pena daquele animal, abatido violentamente após tantos anos de submissão e amizade. Coisas assim nos marcam fundo. Eu tinha apenas doze anos, mas é como se fosse hoje. Naquela hora, vendo o Dino morto, pensei no vovô. Será que ele teria permitido? Seria mesmo o velho lobo culpado por tal desgraça? Não seria aquilo natural para um animal de origem selvagem? Em meio a esses pensamentos, vi quando os policiais aproximaram-se e, com punhais que refletiam o sol forte, rasgaram-no do peito às coxas, expondo suas vísceras abruptamente. Mas não havia nada lá, isto é, não havia partes de qualquer corpo humano. Outra busca seguiu-se. Agora, o fim era encontrar o corpo, mas este também não apareceu. Por fim, depois de contatos com a polícia florestal, chegou-se à conclusão de que talvez o Dino tivesse carregado o Enzo ou o que havia restado do Enzo para longe ou mesmo abandonado o corpo no rio. Talvez outros bichos silvestres das matas próximas tivessem auxiliado o lobo-cão em seu instinto selvagem.
Dois dias depois do desaparecimento, os policiais foram embora e uma onda de tristeza e melancolia invadiu a fazenda. Minha tia caiu doente, num terrível lamento pelo filho morto, enquanto minha mãe a socorria, ajudada pela vovó e parentes que vieram da cidade. Findas as esperanças, restou à família avaliar a possibilidade de providenciar o enterro simbólico. Ouvi quando vovó, cuidadosa, aventou a hipótese com meu pai e meu tio. Ambos choraram muito nessa hora, como se acordassem de um transe, como se apenas ali a realidade os tivesse despertado para a tragédia. Aterrorizado ao imaginar o enterro de Enzo sem seu corpo, entrei em desespero. É curioso, mas, embora afundado numa dolorosa angústia, eu não conseguia chorar, meu desabafo estava preso em meu peito, talvez porque uma raiva profunda corroesse minhas entranhas diante do frio assassinato do Dino. Acho que foi essa a causa de minha aparente frieza, mas que na verdade poderia ser definida como revolta. Enquanto avolumava-se a conversa em torno do enterro simbólico, trancafiei-me na biblioteca. Fiquei lá, lendo compulsivamente os projetos do vovô, fugindo de todos e de tudo que me oprimia do lado de fora. Não sei dizer ao certo, mas acredito que permaneci na saleta por mais de três horas. Eu lia e relia aquelas páginas manuscritas, a letra bem definida, quase mesmo enfeitada, agradável de olhar e que aos poucos foi me acalmando, mas só até o ponto em que encontrei, em meio ao texto sobre o projeto de irrigação das pastagens, este fragmento:
“...Assim, determinei que um poço fosse cavado e que a partir de sua parede, uma galeria de aproximadamente quinhentos metros de extensão e de médio diâmetro, em torno dos sessenta centímetros, rasgasse o solo, sob a pastagem, até desembocar no açude, já próximo ao rio. Essa galeria, construída com material vulcanizado, teve sua instalação previamente preparada com perfurações, por ora preenchidas, que permitirão posteriormente sua interligação a um sistema hidráulico, este à flor da terra, proporcionando assim a possibilidade de uma irrigação eficiente e ágil. Este sistema, tão logo testado, poderá ser estendido às diversas culturas que necessitam de água durante a estiagem. Tomei o cuidado de levar em conta, durante a construção da primeira etapa deste projeto, as características próprias do solo desta região. Em alguns locais, os lençóis freáticos apresentam certa irregularidade na vazão, ocasionando uma oscilação de seu nível produtivo. Assim, recorri ao expediente de instalar a galeria já em parte sob o nível da água, dando vazão seqüencial ao poço, mesmo que às vezes diminuta, até que seja instalada a bomba propulsora. Até que isso não ocorra, em certos períodos do dia a água do poço poderá escorrer pela galeria, em maior ou menor intensidade; daí, a preocupação de fazê-la findar-se no açude...”
Ao correr os olhos sobre essas letras, uma sensação inexplicável tomou-me de assalto. Com o coração aos solavancos, levantei-me já ofegante de uma emoção extrema, passei a mão na lanterna, destranquei a porta da biblioteca e pus-me a correr. Varei a roda de lamentação que se fazia no amplo alpendre do casarão e, como vão os cães à caça, lancei-me em disparada rumo a baixada cheia de pastos que levava ao açude. Vendo-me daquela maneira, meu pai, meu tio e os demais que ali se encontravam, também puseram-se ao meu encalço. Eu os ouvia gritando sem parar, perguntando-me o motivo da corrida desenfreada, mas eu não respondia, eu apenas chorava e corria, chorava e corria. Quem já pôde observar uma criança correndo e chorando, certamente visualizará a cena. Uma criança que chora e corre ao mesmo tempo, consegue correr muito, muito mesmo, e eu corria muito, muito mesmo, e atrás, todos eles. Rapidamente aproximei-me do açude e, sem que ainda me tivessem alcançado, contornei os pequenos arbustos da margem, tropeçando e chorando, afundei-me no barro perto da barranca que caía do gramado em declive e num segundo avistei a boca da galeria decerto abandonada há muitos anos, cercada de sujeira e muito lodo, praticamente escondida, avizinhando-se do lago num ponto onde floresciam os aguapés. Sem que ainda me compreendessem, entrei pela boca suja do cano e, com a lanterna segura numa das mãos, avancei, lutando contra o lodo escorregadio e as baratas que ali se aninhavam. Eu não sei explicar a fonte de minhas forças, mas, segundo disseram-me depois, rastejei por cerca de duzentos metros até uma junta da galeria, onde uma grade de ferro compunha uma espécie de filtro a impedir que animais do tamanho de uma pequena rã pudessem subir do açude ao poço. Eu já imaginava o que iria encontrar em algum ponto daquela galeria. Eu sabia que dali eu resgataria o corpo de Enzo, que desabara pela boca do poço e deslizara com a água pela galeria abaixo. Eu o resgataria para que ao menos seu enterro fosse cumprido com suas formalidades, inclusive com sua presença de carne. De tudo isso eu sabia, desde a hora em que li o manuscrito do vovô. Mas, admito, jamais seria capaz de imaginar que naquele corpo ferido pudessem ainda brilhar na escuridão dois olhos famintos pela vida que transcorria alguns metros acima. Eu não pude sequer balbuciar palavra, tamanha minha comoção. Lá atrás, os homens gritavam para mim. Era difícil que um deles pudesse entrar e movimentar-se como eu. Qualquer um corria o risco de ficar entalado no meio da sujeira que forrava a galeria. Amarrei a lanterna à camisa e forcei a grade de presilhas enferrujadas. Na tentativa de soltá-la, pude ver, à luz da lanterna, presos à grade, chumaços de longos pêlos levemente dourados. Quase ao mesmo tempo, senti algo macio decompondo-se debaixo de meus joelhos. Iluminei e o que vi me causou arrepio: duas ratazanas mortas, dilaceradas e exangues. Num lapso, compreendi então o que se passara, pude mesmo ver a tentativa desesperada do velho lobo-cão, do velho e decididamente bom Dino, para resgatar meu primo Enzo, estraçalhando os roedores e, através das falhas causadas pela oxidação da grade, investindo para puxar a criança pela camisa, até arranchar-lhe o fatídico retalho. Deus, a revolta pelo destino injusto do nosso Dino concedeu-me forças inefáveis, talvez dessas em que, inexplicavelmente, uma pessoa tomada pelo desespero de um acidente consegue erguer um carro com as próprias mãos. As presilhas cederam e a grade se abriu. O corpo cansado de Enzo escorregou aos meus braços e, então, rastejando ao contrário, mas agora contando com a ajuda da superfície escorregadia e do leve declive da galeria, fiz o caminho de volta. O que de resto decorreu esteve, ao contrário desta história, sempre dentro da total normalidade, o que por si só causa desinteresse a um relato mais extenso. Basta dizer que Enzo permaneceu sob cuidados médicos durante semanas, mas recuperou-se a tempo de conhecer a biblioteca, da qual passei a ser chefe, e o livro que o salvou da morte.
Hoje, trinta anos depois, um estranho impulso obriga-me a revirar com certa freqüência as gavetas onde guardo minhas velharias, apenas para rever dois registros da época. Num deles, uma folha de jornal amarelada pelo tempo traz a notícia sobre o incrível reaparecimento de Enzo na galeria abandonada. Por mais que eu a tenha lido e relido desde então, jamais pude aceitar a grave omissão a respeito da participação emocionante e perturbadora do velho lobo no episódio. É verdade que a injustiça não seria corrigida, mas nossa família poderia redimir-se em parte do absurdo cometido. O outro registro é o que eu gosto mais: uma foto em preto e branco mostra toda a magnitude do Dino ladeado pelos seus irmãos, digamos, comuns. Os cães divertem-se às suas custas, empinando-se e mordiscando-lhe o couro, mas ele parece ignorá-los, prega o olhar fixamente em direção à lente da máquina, olhos arregalados e a feição alegre oferecida, como se em sua sabedoria animal pudesse, inatingível, desprezar os ultrajes e a sordidez de seu mais terrível predador: o homem.
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