– Aêêêê, Marcião! – eu ouço a exclamação bem no intervalo entre as músicas. Acho que tinha acabado de tocar “Disparada” (com Jair Rodrigues).
Ainda meio confuso, vejo o carro estacionar no meio fio. Antes de processar o “Aêêêê, Marcião!”, chego a imaginar mais alguém pedindo informações sobre um endereço qualquer (sou vítima disso, mas não ligo). Só que não. É realmente um cara, num carro branco (que depois percebi não ter prestado atenção na marca), me chamando pelo nome. Ou pelo menos foi o que entendi.
- Opa! – tiro o fone de ouvido. – E aí?
- Tudo certo, rapaz? – ele fica dentro do carro, do lado do motorista, ou seja, do lado de lá, de onde estica a mão para que eu a aperte.
- Tudo e você? – preciso abrir as pernas desagradavelmente para falar avistando meu interlocutor. Ou é isso ou ajoelhar-me na calçada.
- Tudo certo! Há quanto tempo – ele tira os óculos escuros.
- Pois é – eu prefiro manter os meus.
Claro, eu não sei quem é o sujeito que parou o carro branco para falar comigo. Não me lembro. Aliás, minha meia dúzia de neurônios fuça, enfurecida, todas as possibilidades: jornal Bom Dia, Diário de Bauru, TV Tem, Bauru, Sorocaba, Rio Preto, Jundiaí, bares, restaurantes, cafés, festas, putarias... Nada!
- Continua em Bauru? – ele parece saber que eu sou de Bauru.
- É, estou por aqui. E você, tá onde?
Quem sabe vem uma informação aproveitável, uma dica, a centelha que me leve à salvação.
- Ah, o de sempre, cara!
O de sempre cara! Muito bem.
- E a família? - essa costuma ser infalível.
- Ah, depois daquilo fiquei meio esperto, a gente vai aprendendo, né? E você? Fez muito filho?
- Tenho uma filha.
- Legal. Menina é sempre um barato, né?
- É, sim.
(Nisso, como uma pedrada, me vem o seguinte: será mesmo que ele disse “Aêêêê, Marcião!”? Porque, não sei não, mas tem algo errado aqui ou, no mínimo, estranho. Volto o disco à medida do possível. Poderia ter sido “Aêêêê, Marcão”, “Aêêêê, Marlão!”, “Aêêêê, Martão!”, Marião, Carlão e até outros – lembre-se: eu estava tirando o fone de ouvido –, como Paulão, Tatão, Babão e até Malão, não sei, como saber? Na verdade, não sei se ele mesmo não me confundiu com outra pessoa!)
- A gente precisa tomar uma qualquer hora – arrisco porque essa é tipo bom, beleza, cada um pro seu lado, ok?
- Rapaz, vamos sim. Sabe quem eu encontrei outro dia? O Tinão. Tá parecendo uma bola. Ah! Ah! Ah! Puta merda, bons tempos aqueles, né?
Aqui começa uma etapa perigosa do processo. Bons tempos, muito “ão” daqui, “ão” dali, sabe aquele negócio de uma época distante que você não se lembra direito?
- Ahã...
Já estou ajoelhado. Ou pelo menos com o joelho direito colado à calçada. Debruçado sobre a porta. O vidro não desce totalmente. Fica aquele incômodo no antebraço. Agora vou tentar uma cartada que pode ser decisiva.
- Tá trabalhando onde agora?
- Mesmo lugar, cara! Você sabe, não sou muito de ficar pulando pra lá e pra cá.
Eu sei?
- Certo. É, isso tem lá suas vantagens. Mas e o seu pessoal?
- Ah, você sabe, daquele jeito de sempre.
- Sei... Bom, é isso aí, vamos que vamos, o negócio é não desistir - solto uma risada tão besta que dá vontade de, eu mesmo, me estapear.
- Rapaz, isso aí. Foi bom te ver, viu? - estica a mão novamente.
De imediato, eu me ergo da calçada e aperto a mão dele.
- Opa, idem! A gente se vê.
- Se vê sim, tudo de bom pra você!
- Pra você também!
Já em pé, enxugo o suor da testa. Passa um pouco das seis da tarde, mas o sol está de rachar (este fato rolou na quarta-feira, 12 de fevereiro, na avenida Getúlio Vargas, em Bauru). Quando boto novamente o fone de ouvido, já está tocando uma música do Titãs que eu gosto muito.
"Marvin, agora é só você
E não vai adiantar
Chorar vai me fazer sofrer..."
Retomo a caminhada e vejo lá na frente, vindo em minha direção, o Ademir Elias, jornalista que eu conheço. Ele também me conhece. Como é bom às vezes sentir os pés no chão neste mundo aqui da terra.