Ver o filme francês “Polissia” é, ao invés de “obrigatório” (termo que não gosto porque me parece pedante), uma “obrigação” nos dias atuais, quando a exposição dos absurdos cometidos contra crianças (quase sempre dentro do próprio núcleo familiar) é terrivelmente chocante e, mais do que terrivelmente chocante, é um chamado a qualquer pessoa que não se conforma com as feridas abertas da humanidade.
O filme retrata o trabalho de uma brigada de Paris cujo objetivo é detectar e combater a pedofilia e também outros abusos a que são submetidos os menores de idade. É baseado em casos registrados pela polícia francesa, um recorte impressionante sobre a realidade que esmaga a infância e a juventude no mundo inteiro.
Mas cuidado. É que imaginar e, mais do que isso, ter a certeza de que você faz parte deste tecido humano não é tarefa das mais fáceis. De todo modo, é necessário encará-la. A bem da verdade, é preciso vasculhar a si próprio para que seus ferimentos não sejam graves quando o assunto é a pedofilia e todos os abusos que orbitam sua atmosfera irrespirável.
E, de fato, durante o filme eu me lembrei de uma passagem da minha infância em meados da década de 1970. Eu tinha uns oito anos e na minha escola, na minha sala de aula, havia um garoto com quem eu mantinha uma boa relação de amizade, acho que até ao acaso, o acaso de morarmos bem próximos.
Por isso mesmo, era natural que, sem nenhuma justificativa mais séria, às vezes um fosse chamar o outro em sua casa para jogar bola, por exemplo. Numa dessas ocasiões, sem qualquer preocupação, abri o portão da casa desse amigo, um portãozinho rústico feito de varas de bambu cortadas pela metade de ponta a ponta e amarradas com arame à guisa de cerca, e fui chamá-lo.
Não me lembro se ele se encontrava ali. Só me lembro de ter percorrido a estreita calçada em torno da casa ao mesmo tempo em que tentava olhar o interior de seus cômodos a fim de achar meu amigo.
Havia do lado direito para quem entrava pelo portãozinho uma pequena varanda e logo à esquerda da varanda, uma janela. Foi ali que eu enfiei a cara, escorando-me com os pés na própria parede e o queixo no batente da janela. E eu os vi. O pai do meu amigo e a irmã do meu amigo.
Ela devia ter, sei lá, uns dois ou três anos mais do que nós, talvez onze. Eles eram mulatos. A menina tinha um cabelão que a fazia parecer muito maior do que realmente era. Mas com toda certeza tratava-se apenas de uma criança.
Não sei se eu interpretei mal, mas ele estava sobre ela em cima da cama. Agora, quarenta anos depois, fuçando as profundezas de meu cérebro, chego à conclusão que na época, por um motivo ou outro, devo ter pensado que ele a castigava com uma surra ou algo assim. E realmente era bastante comum que aquele homem bruto e sem educação batesse nos filhos. Eu o testemunhei em várias ocasiões.
E talvez por isso mesmo tenha pensado, com minha mente de oito anos, que não se tratava de outra coisa senão mais uma das surras que ele aplicava nos filhos. Sem encontrar meu amigo, chispei de lá depois de ter visto o pai sobre a filha na cama por dois ou três segundos.
E nunca mais pensei no caso. Até hoje.