Faz tempo que conheço o M. A gente se encontra por aí de vez em quando, troca umas ideias, bate um papinho rápido e até mais. Hoje eu estava no café, numa mesa que dá para a rua, e o vi passar na calçada.
- Grande M! Vem cá tomar um café comigo.
- Bom, se você está pagando.
O M. é um desses sujeitos que parecem estar sempre de bem com a vida, mas desta vez eu o percebi desanimado logo que apertou minha mão e se sentou.
- E aí, rapaz? – ele disse como se não tivesse nada melhor para dizer.
- Dois cafezinhos – pedi à garçonete. – E as novas? – olhei para ele em seguida.
- São velhas – coçou a cabeça. – Tudo na mesma.
Da última vez que a gente se viu, o M. estava com alguns projetos em andamento, mas todos meio que patinando, segundo suas próprias palavras.
- As coisas melhoraram? – perguntei.
- Nada – balançou a cabeça por um tempão. – Acho que pioraram, isso sim.
- Que aconteceu?
- Olha – ele abaixou a cabeça, – quando o dinheiro não entra, meu caro, é foda.
- Ânimo, cara!
- Quando as dívidas começam a te coçar – ele olhou amargamente para mim, – tudo desaba. Márcio – ele pensou um pouco, – você acredita que preciso trocar o colchão e não tenho dinheiro?
- Puxa, eu lamento – despejei o açúcar no café fumegando. – Tem alguma coisa que eu posso fazer por você?
- Se você tivesse grana, sim – ele finalmente riu, – mas como eu sei que você não tem... – riu outra vez.
- A coisa não está fácil pra ninguém, meu caro.
- A gente pensa em cada besteira... – ele estava de cabeça baixa outra vez.
- M. – eu peguei no braço dele, – você tem a vida pela frente, as coisas uma hora melhoram, você vai ver.
- Não sei – ele cruzou os braços. – Mas não tenho uma vida pela frente, não; minha vida está toda aí atrás, já cheguei aos 50!
- Então somos dois.
Tomei o café sentindo um gosto amargo. A verdade é que, como disse, conheço o M. faz tempo. Sei que trabalha desde cedo. Cara dedicado, esforçado, todos que o conhecem dizem que é ótimo profissional e que tem talento. Será que este país não tem espaço para sujeitos experientes que passam dos 50 anos? O mercado será assim tão cruel?
- Quando você olha para trás – ele me disse – e vê quanto trabalhou, é difícil aceitar que nada dê certo pra você.
Ficamos nos olhando por alguns instantes.
- Bom – ele fez um movimento com o braço, – deixa pra lá. E você o que tem feito de bom?
Continuei olhando para o M. O cabelo penteado com gel, uma meia-lua escura sob os olhos, os lábios apertados, uma expressão pesada.
- Hoje cedo, fui buscar minha filha no estágio... – de repente, me peguei falando isso.
- Estágio? Caramba, ela já está na faculdade?
- Sim, está no terceiro ano de psicologia.
- Parabéns, rapaz!
- Bom, eu estava lá esperando minha filha, e bem à minha frente, na calçada, um cachorro preto desses vira-latas brincava com um cara que devia ser ali do bairro. O cachorro se empinava nas pernas dele, corria feito louco para lá e para cá, girava ao redor do cara, o cara fazia carinho em seu focinho, o cachorro voltava a correr, pulava sobre uma touceira de capim e desaparecia atrás de um muro, depois lá estava ele de novo, uma energia impressionante. Repetiu essa correria por várias vezes, acho que ficou ali por uns dez minutos, até parecia sorrir. Engraçado isso, né? Como é fácil perceber um cachorro feliz.
- Isso é verdade – riu o M. – Tenho dois vira-latas...
- Quando minha filha saiu, dei partida no carro. O homem que brincava com o cachorro já não estava mais lá. E o cachorro tinha desaparecido atrás do muro. Quando, dirigindo, ultrapassei o muro, vi uma casa de madeira muito pobre fincada no lugar, as paredes judiadas, a base da construção com várias partes apodrecidas. O cachorro mora lá.
- É... – o M. cruzou os braços de novo. – E amanhã ele vai fazer tudo de novo, pode acreditar.
- É... – eu também cruzei os meus. – E com a mesma felicidade, independentemente de tudo, né?
- Sem nem se lembrar de hoje.
- Sem nem se lembrar que hoje ele deu mais esperança a uma manhã de outono.
- Você paga? – o M. perguntou.
- Claro, vai lá.
O M. saiu e eu fiquei mais um pouco ali aproveitando um solzinho gostoso das duas e meia. Só então me dei conta que o M. não bebeu seu café. Estava todo na xícara. E lá ficou. Quem é que bebe café frio, afinal?
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