No filme “O ano em que meus pais saíram de férias”, há uma cena emblemática capaz de traduzir o sentimento que embala o torcedor numa Copa do Mundo. Um grupo de revolucionários assiste ao jogo Brasil x Tchecoslováquia e quando o país europeu (então um estado comunista que ainda reunia a República Tcheca e a Eslováquia) abre o placar, vários deles gritam gol, fecham os punhos, dizem palavras de ordem etc. No entanto, minutos depois, quando Rivelino cobra uma falta e empata, aí sim há uma explosão espontânea e eles se abraçam, vibram e comemoram independentemente de posições políticas.
Apesar da ação selvagem de facções bárbaras de torcidas organizadas, o futebol tem uma incrível capacidade de unir. Não é à toa que a política tente tirar proveito desse universo apaixonante. Poucos eventos pintam de cores tão fortes o imaginário popular brasileiro e também o de outros países.
Já chamaram o futebol de ópio e de religião. Já criaram um céu específico, onde deuses tecem em capítulos sua formidável história. Mas acho que nada pode ser mais palpável e mais acessível do que esse esporte. Basta uma coisa redonda e duas pedras para começar o jogo numa rua qualquer. O futebol nos iguala. O futebol nos torna mais humanos.
Vi um dia desses um documentário sobre a ditadura uruguaia em que um militante de esquerda dá um depoimento emocionante a respeito da vitória de seu país no Mundialito (torneio que reuniu as seleções campeãs do mundo e a Holanda entre dezembro de 1980 e janeiro de 1981). Diz ele que estava preso ao lado de centenas de uruguaios que contestavam a ditadura, vigiados por guardas e militares do regime. Mas quando o Uruguai fez o segundo gol sobre o Brasil na final, o presídio explodiu numa grande festa entre irmãos, detentos e libertos.
No Chile, adversário do Brasil nas oitavas de final desta Copa do Mundo, os prisioneiros da ditadura eram levados para o Estádio Nacional, em Santiago. Lá eram torturados e, às vezes, mortos. Isso, entretanto, não fez do estádio um lugar maldito, mas um símbolo de esperança e de liberdade. Também ali o futebol venceu a violência e a tirania.
Nesta Copa do Mundo, também está instituída uma tirania. Porque é uma pena que o aspecto financeiro tenha simplesmente alijado dos estádios as camadas mais pobres da população. Ao contrário dos perseguidos políticos chilenos, aqui a população brasileira foi presa fora dos estádios.
Não tenho nada contra as pessoas que podem pagar por um ingresso de mil reais e que mal sabem o que é um escanteio. O problema é a falta de consideração por aqueles que podemos até chamar de “verdadeiros torcedores”, aquela galera que “come grama” nos campeonatos de pernas de pau.
O governo e a organização da Copa deveriam ter pensando nisso. Teriam feito justiça a um país que está muito distante das condições favoráveis propiciadas durante séculos às elites. Já é tarde. Não dá mais. A Copa, para as massas populares, é aqui fora. Longe do hino que agora faz chorar. Longe da ostentação. Longe do desfile de vaidades nos camarotes e nas almofadas. Longe das caras e bocas para o telão. Mas perto do calor humano que só a rua é capaz de nos dar.