Cruz

Nos dias em que Tancredo Neves agonizava no Incor, em São Paulo, uma fileira de populares postava-se diante da entrada do hospital para acompanhar as notícias frescas e o trabalho dos jornalistas, especialmente o dos repórteres de televisão. Profissionais que estiveram lá contam que as pessoas aguardavam as entradas ao vivo das emissoras para desabar em prantos. Acho que não faziam algo assim voluntariamente. A televisão costuma, nessas horas, fazer desabrochar nos mais duros a flor macia da sensibilidade.

Lembrei-me desse assunto no último sábado, quando fui ver o famoso filme de Mel Gibson. "A Paixão de Cristo", dentro de minha rude (in)formação na arte cinematográfica, é um filme cuja via crucis vai do razoável ao bom. Acho exageradas as considerações a respeito das conseqüências do possível caráter anti-semita. Mesmo que o filme lance sobre os judeus a decisão pela crucificação de Cristo, e ao mesmo tempo mostre um Pilatos pra lá de politicamente correto, livrando os romanos de qualquer culpa, não considero sensato concluir que isso pode acirrar ou acender qualquer tipo de ódio contra os judeus.

As religiões e seus sacerdotes desencadearam, através da história, as mais absurdas e sangrentas opressões às quais já foi submetido o ser humano. Talvez todas as religiões tenham suas páginas vermelhas de sangue. Talvez todas tenham suas marcas de graves equívocos. Mas dificilmente em alguma dessas ocasiões a grande massa de fiéis deixou de ser manobrada por meia dúzia de mandatários que sempre se locupletam, em todos os sentidos, com o que sugam de seus grandes rebanhos.

Daí minha conclusão de que é exagero temer qualquer onda de ódio, antipatia ou coisas do tipo contra os judeus. Se realmente aqueles gatos pingados que o filme de Mel Gibson sugere como responsáveis pela morte de Cristo assim o forem, não será possível afirmar que eles representavam o pensamento e o desejo de seus seguidores. Assim, acredito, também o deve ter sido na época da Inquisição, a página enlameada dos católicos.

Da mesma forma, discordo da tal "satanização" da mulher, que no filme encarna o diabo. Como bem me lembrou nossa colunista Fernanda Villas Bôas, o diabo de Mel Gibson está mais para uma figura andrógina do que para uma Eva.

Parece-me que, muito mais do que concluir sobre culpas, essas polêmicas importam pelo seu caráter retórico. Reféns de uma modernidade que nos faz conversar muito mais com engenhocas (como se refere o Gilmar Dias em sua coluna neste site) do que com pessoas, e também reféns do freqüente isolamento que nos exige a detestável luta pela sobrevivência, encontramos algo raro na oportunidade de discutir sobre assuntos que possam nos arrebatar verdadeiramente. Quando surge essa oportunidade, independentemente de suas versões e diferentes conclusões, nós temos a chance de novos descobrimentos.

Os populares que choravam quando as câmeras de televisão as focalizavam diante do Incor, na época de Tancredo Neves, decerto foram manipulados pela incrível força da comunicação. Eles iam para a frente do hospital preparados para chorar. Em seu choro, rolavam outras tristezas, como as frustrações do cotidiano. Boa parte dos que vão ao cinema ver o filme sobre Cristo também já vão dispostos a chorar. Vêem no escurinho do cinema a possibilidade de extravasar as emoções da vida que passam quase sempre enclausuradas. Vêem a possibilidade de amenizar o peso da cruz.

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