Boletim de ocorrência

1

Com certa dificuldade, ela se virou para o meu lado e me pregou um olhar de fome, mas não era o olhar lascivo, não era a fome de sempre. Era outra fome… Eu poderia começar assim. Ou dizendo que o focinho frio da vaca resvalando em minha bunda nua me fez aumentar o ritmo do sexo. E que por conta desse contato inesperado e inusitado, também mordi involuntariamente o pescoço de Júlia... Também seria adequado no início confessar que as histórias que se passam no mar e em seus arredores compõem meu repertório favorito. “O velho e o mar”, “Moby Dick”, “No coração do mar” e “A carta esférica” estão entre meus livros preferidos...

No entanto, a despeito de todas as situações acima se adequarem perfeitamente a este meu relato (sim, é apenas um relato, pois apenas disso sou capaz), não é assim que vou começar.

Neste princípio, quero traçar algumas linhas que combinem mais com nossas personalidades e com nosso moderno estilo de vida, que talvez se apresentem como um desafio a você, embora saibamos que qualquer resposta de sua parte a algo assim nunca passará de um simples pensamento, no máximo um resmungo qualquer. Mas, assim mesmo, aí vai.

Você pode dizer que já fez sexo em mil lugares, em tantas posições que até perdeu a conta; você pode contar quantas vantagens quiser; entretanto, esteja certo disto: dificilmente você levou suas aventuras a fronteiras tão arriscadas e excitantes capazes de, num só instante, transformar prazer em dor, euforia em frustração, felicidade em tragédia, vida em morte.

Dito isso, detenho-me a um detalhe bastante íntimo, mas que a esta altura dos acontecimentos, já pouco me importa que você saiba: às vezes, acho que Júlia está muito próxima de ser uma ninfomaníaca. Em outras, passa pela minha cabeça a certeza de sua absoluta normalidade, já que seus atos se tratam nada mais nada menos do que a extensão de desejos encarcerados na mente da maioria das mulheres, geralmente desencorajadas pela vida a assumir tais atitudes.

Pois é ela quem dá as cartas em nossa relação. Não sei dizer se isso acontece porque ela é mais velha ou se esse aspecto nada tem a ver com sua ascendência sobre mim e na verdade a explicação surge simplesmente a partir da conjunção de nossos espíritos, o dela mais expansivo e decidido, o meu um tanto carente de estímulo para finalmente pegar fogo.

Nós nos conhecemos no ano passado, nas férias de julho, num cruzeiro pelo Atlântico, e desde então tivemos a certeza da necessidade de ficarmos juntos. A gente se ama muito, certo? Eu estava com meus pais e ela, com amigos. Foi ali, note bem: no mar, que tudo começou.

Houve uma atração irresistível à primeira vista. Eu me lembro que estávamos à beira da piscina, o navio contornando lentamente a costa, o sol fervendo o ambiente, quando trocamos uns olhares e, então, nenhum dos dois teve como escapar.

Eu sei que os amigos dela andaram de gozação comigo por causa de minha pouca idade, mas dei de ombros e, com certeza, ela também. Devo dizer aqui que desde os quinze ou dezesseis anos eu posso me considerar um homem feito. A presença de uma garota de 22 anos à época em que eu tinha 18 não meu assustou nem um pouco.

Seria precipitação lhe contar o que se passou logo na primeira noite em que nos conhecemos? Bom, nós transamos numa beirada do navio, banhados por um pálido luar. Lógico que nós podíamos ter ido à cabine dela, mas não. Desde aquele momento, senti a excitação de fazer sexo perigosamente.

Depois, em terra, foram tantas escapadas absurdas que o conteúdo daria um livro erótico. Vou citar apenas algumas, necessárias para que você compreenda o que nos levou a esta terrível situação.

Júlia é apaixonada por esportes, quase sempre radicais, e a cada nova situação vivida, ela sugere que incluamos o sexo no roteiro. E assim já estivemos em meio à sujeira de um curral, onde aquela vaca branca de focinho frio bisbilhotou minha bunda; em cima de uma árvore com as pessoas passeando logo abaixo; no lombo de um cavalo numa trilha eqüestre; dentro de um jipe em pleno rali; num salto de pára-quedas, os dois nus lá em cima.

Todas essas experiências, garanto, acabaram bem. Esta última, no entanto, esta à qual me deterei em seguida, foi a que nos jogou neste pesadelo que, à mão, e num velho caderno de anotações que porventura carrego em minha mochila, tentarei descrever, embora sem saber que proveito você possa tirar disso.

2

Há uma semana, Júlia me procurou esbaforida: descobrira por acaso, por meio de um amigo, um lugar fantástico para praticar rapel. Ela é maluca por rapel e, talvez por isso, talvez por causa desse ímpeto amoroso que nos une, de uns tempos para cá eu também passei a gostar. Ela me olhou assim, assim, com um jeito maroto que logo me fez compreender o tamanho interesse.

Por conta dos lugares quase sempre bastante freqüentados pelos adeptos dessa prática esportiva, jamais tivemos a chance de “batizar”, como ela costuma dizer, esse tipo de aventura. Muito depressa, explicou-me que o lugar descoberto por ela se tratava de um paredão numa ilha a uns vinte quilômetros da cidade, mas que ficava a pouca distância da costa.

Uma ilha? Não sei dizer o porquê, mas, apesar da excitação que me dominou quando pensei em fazer sexo com Júlia pendurado numa corda, um certo receio também se apoderou de mim quando imaginei a necessidade de nos isolarmos numa ilha. Lógico que minha namorada, toda cheia de lábia, não demorou nem um pouco a me convencer. Além do mais, eu não poderia impedi-la caso ela quisesse ir só. Nossa relação moderna, livre de amarras hipócritas ditadas pela sociedade antiquada, impede naturalmente esse tipo de comportamento possessivo de um ou de outro. Tampouco poderia ficar longe dela numa aventura dessa. Quero estar com ela nos grandes momentos de sua vida, e ninguém melhor do que eu para saber que essas aventuras fazem parte, ao menos hoje em dia, de seus momentos mais importantes.

Na antevéspera de Natal, saímos bem cedo, o sol ainda despontando bem fraco no horizonte. Pelo jeito, o dia seria de tempo bom. Menos mau, pensei sem dizer isso a ela. Na verdade, nunca me senti à vontade para demonstrar qualquer tipo de hesitação a uma pessoa tão decidida como Júlia. Além disso, eu não queria estragar a perfeição de nossa química. Nunca um ou outro rejeitou proposta para qualquer aventura. Somos muito avançados para ceder a bobagens como pressentimentos ou temores infundados.

No dia anterior, também com a ajuda do tal amigo, ela já havia alugado um barco por telefone num lugarejo perto da ilha. Chegamos lá em minha moto. Um sujeito de poucas atenções pediu o dinheiro adiantado e indicou onde o bote estava ancorado. Aliás, um barquinho que não me inspirou a menor confiança, mas a ilhota parecia realmente ser bem próxima à costa e isso afastou outros pensamentos ruins de minha mente.

O mar estava simplesmente calmo. O sol, muito quente. Deixamos a moto num estacionamento próximo, atiramos nossa tralha sobre a embarcação e rumamos para a ilha. Já bem perto, Júlia soltou um grito de euforia. Podia-se ver que o penhasco era fabuloso: do topo, pendia um paredão quase na vertical, excelente para o rapel. Mais abaixo, quebrava-se em rochas cobertas por longas folhagens e de cujas fendas, em vários pontos, escorriam fios de água, todos brilhantes à luz solar, até o sopé, onde as ondas se espatifavam com certo barulho.

Calculei: haveria ali, somando-se a descida vertical ao restante, uns duzentos metros de extensão, embora a altura não chegasse a tanto. Procuramos um acesso adequado ao barquinho e em poucos minutos estávamos pisando terra firme fora do continente. Não parecia haver gente. E isso era bom.

A ilha é pequena, quase se completa com a massa de pedra que compõe o monte. Entre as primeiras rochas e o mar, contam-se não mais que dez passos, e assim mesmo na parte mais acessível, a leste. O paredão, na parte oeste, mergulha direto na água.

Depois de ajeitarmos o barco, fomos procurar uma passagem acessível à subida, e a encontramos facilmente. Em quinze minutos, no máximo, chegamos ao cume.

Desculpe-me se avanço rápido em demasia, omitindo passagens que poderiam ilustrar ainda mais a nossa relação de absoluta paixão e desejo, mas também penso ser um equívoco impor a este relato contornos de exagerado erotismo. Basta a você saber isto: o jeito que nos amamos estabelece entre nós um vínculo que exclui tudo o mais ao nosso redor.

Esta aventura, saiba você, começou e continua sem que nossas famílias desconfiem deste propósito. Mas isso também pode ser perfeitamente dispensável à sua leitura. Neste instante, acredito ser mais honesto lhe confessar algo crucial ao texto: se escrevo muito, certamente me faltará o papel.

3

Pelo meio da manhã, depois de avaliarmos as condições climáticas, o relevo do paredão e a composição de suas rochas, meu ânimo cresceu bastante. Ao contrário do que eu imaginara em segredo, podíamos descer em total segurança. Nisso, olhei lá longe e observei um navio dos grandes. Ele navegava rumo ao alto mar, compondo uma paisagem bonita num horizonte incrivelmente claro. Senti uma imensa felicidade por estar ali com a pessoa que eu amo.

Passamos a conferir nossos equipamentos. As cordas, os mosquetões, os freios oito, as cadeirinhas, tudo em ordem. À medida que nos aprontávamos, uma excitação extra crescia em nós. Fiquei imaginando como seria extraordinário transar ali, acompanhando o leve balanço das cordas, vislumbrando o mar aberto à nossa frente, sentindo na pele a brisa morna e respirando o marulho.

Todos esses aspectos eram estimulantes demais para nos mantermos no topo. Então, começamos a descer. Nossa intenção era escalar a extensão vertical do paredão e só “batizar” o rapel quando a inclinação das rochas se tornasse um pouco mais favorável ao nosso projeto. Fomos trabalhando lado a lado. A visão realmente mostrava-se exuberante. Talvez esse tenha sido um dos motivos para nossa desatenção num momento crucial da escalada.

Pouco antes de concluirmos a primeira fase da descida, um nó mal feito rompeu-se no equipamento de Júlia e ela certamente iria abaixo caso não estivéssemos tão próximos. Num rápido impulso eu a amparei junto ao paredão, mas dessa vez foi a minha corda que não suportou sustentar os dois. Coisa de amadores, com toda a certeza.

A verdade é que desde o início, desde que fizemos as primeiras aventuras de rapel, nunca nos dedicamos a aprender minuciosamente as técnicas dos nós, tampouco ouvimos as recomendações sobre a qualidade necessária aos equipamentos. Enfim, pagamos o preço.

Quando num segundo percebi que deslizaríamos coisa de dois ou três metros até a junção do paredão vertical com várias outras rochas que iniciavam um declive mais ameno, onde certamente poderíamos frear a queda, segurei o corpo de Júlia com toda a minha força. Calculei que o máximo que poderia nos acontecer era uma ou outra fratura de membro, o que àquela altura não seria nenhuma tragédia.

Escorregamos realmente os poucos metros até as rochas sem nos ferir gravemente, mas o caso é que não paramos ali. Naquele ponto, as rochas estavam úmidas, impregnadas de um lodo verde liso que colaborou para nos mandar ainda mais abaixo. Conforme escorregávamos, tentávamos encontrar apoio em pequenos galhos que às vezes despontavam por entre as junções das rochas, mas não foi possível.

De repente, sentimos algo abrir-se sob nossos pés. Pequenos cipós cobriam a entrada de uma gruta e não nos barraram a passagem. Por ali, entramos e, através de paredes muito escorregadias, fomos dar no fundo. Minutos após a queda, quando nos certificamos de que os ferimentos à primeira vista não eram graves, procurei atinar para a situação. E era a seguinte: tínhamos caído numa gruta formada entre rochas que se juntavam abaixo do paredão vertical. Da entrada do buraco até o mar não restariam mais que vinte metros de altura. No entanto, o fundo da gruta fica a cerca de dez metros abaixo dessa entrada. Isso levou-me a calcular que outros dez metros, talvez até menos, separam o fundo da gruta do nível do mar. Essa era a posição em que nos encontrávamos quando caímos, há três dias. De lá para cá, a posição continuou a mesma. Aqui estamos, no mesmo lugar.

4

Você deve estar se perguntando: mas como? Ficaram presos numa gruta? Logo no primeiro dia, tentei desesperadamente subir até a entrada, embora só nos restasse minha mochila, que salvei da queda e onde não havia cordas e equipamentos suficientes para qualquer escalada. Procurei subir à unha, mas as paredes destas rochas são lisas como sabão.

O máximo que consegui foi chegar à metade do caminho, de onde berrei até ficar rouco na esperança de que alguém pudesse me ouvir. Também recolhemos várias pedras pequenas e as atiramos pela boca da gruta. Certamente, elas deslizaram até o mar e fizeram algum barulho, mas pelo jeito não havia ninguém para perceber algo assim.

Nossos telefones celulares perderam-se durante o acidente. Nada nos resta além de alguns biscoitos que estamos economizando diante de nossa terrível situação. Eu tinha algumas frutas na mochila, mas já as comemos. Uma sorte foi ter encontrado, numa pequena greta de nossa prisão, um fio de água doce que escorre em gotas. Lambe-se muito ali na tentativa de matar a sede, mas o gosto absorvido da água e da rocha não é dos melhores. Além do quê, é deprimente observar Júlia, e ela a mim, passar horas a fio à espera das gotas que rolam lentamente.

Buscamos apurar a audição esperando ouvir algum barco que possa chegar à ilha, mas o ruído das ondas quebrando-se na costa rochosa impede que tenhamos noção do que possa estar se passando lá fora.

Ontem à noite, depois de lembrarmos que era Natal e que nossas famílias deveriam estar à nossa procura, pensei numa hipótese que me desesperou. Escondi de Júlia, mas não é difícil imaginar que aquele sujeito mal encarado do barco já poderia nos ter salvado caso tivesse boas intenções. Se não voltamos no mesmo dia, como é que ele não deu conta de algo estranho? Outra coisa: em três dias, ninguém teria vindo à ilha e visto nosso barco?

Imagino que o desgraçado tenha vindo e, não nos encontrando facilmente, levou embora a embarcação. Penso também que ele pode ter ficado com minha moto. Essa gente é capaz de tudo.

Júlia chora muito. Como três dias são capazes de mudar uma pessoa! Confesso que isso tem me irritado um pouco, embora eu procure não demonstrar. Jamais previ que ela poderia abdicar tão facilmente de sua personalidade forte e decidida.

Agora há pouco, com certa dificuldade, ela se virou para o meu lado e me pregou um olhar de fome, mas não era o olhar lascivo, não era a fome de sempre. Era outra fome. Ela quer comer, eu também. Dei a ela um dos últimos biscoitos. Acho que só temos mais dois, que comeremos mais tarde, à noite, quando a luz do dia, que já começa a se esvair, abandonar novamente este buraco. Aliás, já é difícil enxergar estas letras. Por isso, continuarei amanhã.

5

QUARTO DIA

Acordei sem saber onde estava, com uma insuportável vontade de comer. Ontem à noite, como havia escrito, acabamos com nossa ração. Não há mais nada para comer aqui. Também incomodam os cortes e lesões causados pelo acidente, e a lamúria intermitente de minha namorada.

Antes que ela despertasse, fiquei olhando para seu rosto cansado, enquanto um mau pensamento se aproximou: se não fosse por suas loucuras, nossa situação seria outra. Por alguns instantes me aborreci. Os caprichos dela! Sempre os caprichos dela! E agora aí, dessa maneira, toda chorosa...

Depois, quando ela começou a se mexer, senti certa culpa. Que bobagem! Se eu a acompanho nessas aventuras é porque também é meu desejo. Durante o dia, estivemos nos revezando entre a água miserável que brota da parede e as terríveis cólicas provocadas pela falta de alimentação.

Mais uma vez, tentei subir na direção da entrada da gruta, mas em vão. Pior ainda: descobri que estou bem mais fraco do que nos outros dias. Depois de algum esforço, senti que meus braços e minhas pernas tremiam bastante. Também repetimos o ritual de todas as manhãs ao gritarmos feito loucos esperando que alguém nos ouça lá fora, mas nada. Da mesma maneira, sentimos nossas vozes mais fracas e um cansaço exagerado após o esforço. Passamos quase a tarde toda sentados, encostados um ao outro, sem nem mesmo conversarmos, procurando reter o máximo de energia possível.

6

QUINTO DIA

Fui acordado pelos gritos de Júlia. O mar calmo permitiu, segundo ela, ouvir o barulho de um motor de barco, talvez o nosso próprio sendo roubado, sei lá. Pobrezinha, seus gritos serviram para me acordar, mas jamais seriam ouvidos por quem quer que fosse. Não eram mais gritos, eram apenas guinchos, guinchos desesperados.

Acho que por conta do esforço, ela voltou a dormir. Para mim, foi um alívio. Não posso me conformar com essa fraqueza emocional de Júlia. Ela não parece ser a mulher que eu conheço tão bem. Se é para estar assim, por que empreendeu esta aventura? Por que nos arriscou dessa forma?

Hoje não tentei subir até a boca da gruta. Meu ânimo mal me permite ir até o fio d’água que escorre com avareza. Júlia pediu-me que lhe trouxesse água na boca. Fiz que não a ouvi. Deu-me vontade de dizer-lhe poucas e boas, outra vez aquele desejo de despejar sobre ela meu desabafo guardado, dizer-lhe que deveria ter sido mais comedida em suas ações, coisas assim. Rasguei um pedaço de minha roupa e o ensopei com a água barrenta. Júlia me agradeceu. Seus olhos estão tristes.

7

SEXTO DIA

Não sei dizer se o dia está nublado ou se minha visão já não corresponde à normalidade. Digo apenas que está mais escuro aqui dentro. Há pouco, uma pomba sentou, arisca, num dos cipós que atravessam lá em cima a boca da gruta. Júlia a viu e num ímpeto ergueu-se com os olhos esbugalhados. Curiosamente, quando vi o pássaro, surgiu-me uma idéia nada nova, a do pombo-correio, mas logo essa bobagem dissipou-se. As intenções de Júlia eram mais razoáveis. Se houvesse um modo de atrair aquele pedaço de carne, nós o comeríamos de bom grado. Nem me arrisco a dizer que antes lhe arrancaríamos as penas.

8

OUTRO DIA

Dormimos um tempo que não mais podemos medir. Era noite e depois já era noite outra vez ou talvez ainda a mesma, não sabemos ao certo, embora neste momento tenhamos certeza de que estamos no período da tarde, pois a luz do sol ilumina diretamente a parte superior interna da gruta. Sendo o paredão voltado para oeste, o sol vai na descendente.

Júlia anda dizendo palavras incertas, desconexas, depois volta à consciência, altera períodos de juízo e insensatez. Hoje não resisti à tentação e lhe disse o que tinha vontade. Para resumir, que ela é a culpada de tudo isto. Se eu não tivesse conhecido certas pessoas...

No entanto, meu esforço para acusá-la foi em vão. Ela pareceu não ter compreendido. Fiquei imaginando se também não estou na mesma situação. Quem sabe? Em outra oportunidade, voltei à carga, repeti as reprimendas. Dessa vez, ela entendeu. Tanto é que me respondeu com chateações. Chamou-me de garoto mimado, veja se pode! Em resposta, disse-lhe que então, ao me considerar um garoto mimado, ela mostrava total desconhecimento a meu respeito. Cansada, ela atalhou: talvez.

9

NOVO DIA

Despertei com medo. Vi Júlia sentada, bem perto de mim, como se estivesse velando meu sono, os olhos vidrados. Com a fome soberana rumando para a inanição, passou-me pela cabeça algo que não tenho coragem de confessar. Talvez esse também fosse o pensamento dela naquela hora.

A partir dali, eu tento evitar que o sono me pegue antes dela. Decerto, ela também faz esforço semelhante. Perdoe-me se omito tantas coisas, inclusive nossos freqüentes desentendimentos e o ódio crescente que nutrimos um pelo outro, o que torna ainda mais insuportável esta prisão, mas o caso é que levo horas para firmar-me sobre as letras. Quase não posso mais vê-las. Para escrever todos os desaforos ditos a mim, seriam necessárias ainda muitas folhas em branco.

Conto-lhe apenas este: diz ela que eu me permito à submissão porque não tenho caráter, pois se o tivesse não deixaria de me incomodar com os namorados que ela arranja sob meu nariz. Que namorados? Minhas poucas forças não me capacitam a agredi-la, a esfolá-la viva. Contento-me em atacá-la a socos e pontapés, mas apenas mentalmente.

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MAIS UM DIA

Júlia ainda não acordou, enquanto enfrento doloridas contrações. Uma absurda ânsia de vômito me faz rolar no chão da gruta. Não tenho nada a jogar fora. Os poucos minutos em que a dor desaparece representam quase um prazer. Esta noite passada, acordei com o luar bem sobre a entrada. Por um certo tempo, a luz passeou pelo fundo da gruta, iluminando nós dois. Sentei-me e olhei para nossos corpos sujos, machucados e quase imóveis. Um tremor súbito lembrou-me de uma coisa que até então eu não havia considerado: estamos morrendo.

ÚLTIMO DIA

Não posso dizer que este será o último dia de nossas vidas, mas com toda certeza será o último deste relato. Os motivos são dois. Um você já sabe: mal posso agüentar com a caneta. O outro é que o papel está no fim. Faço apenas mais esta observação, aproveitando-me de um raro instante de lucidez: perdemos o controle de nossas ações, aos poucos estamos nos matando um ao outro, às vezes debaixo de um insano prazer. Penso em conseguir matá-la antes para poder fazer sexo com ela depois. Se não for possível, vou comê-la de outro modo.

a)Tom Menezes Ganduar

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10 DE JANEIRO (MANHÃ)

Chegaram-me às mãos hoje estes papéis. Assinados por Tomás Antonio Menezes Ganduar, assinatura reconhecida pela família. Julguei tratar-se de mais uma de suas loucuras. Tomás conta hoje 24 anos e vive trazendo problemas à família. Ele mesmo enviou o texto ao distrito, como se faz a um concurso de literatura ou algo assim. Pedi que viesse e ele logo atendeu ao chamado. Com um sorriso insano, sentou-se à minha frente e disse-me ter tirado um peso das costas.

- Cinco anos não passam num dia, doutor.

Calei-me por um momento. Ele estava diferente das outras vezes.

- Não é uma boa história, doutor? Eu a fabriquei...

Não nego: senti um alívio. Perguntei-lhe por que enviar um texto assim à polícia. E ele, sério:

- Para o senhor dar fé, doutor. Quero que o senhor faça um boletim de ocorrência caprichado.

E assim eu fiz.

BO nº 814/2004

Delegado: Plácido Antunes Felinto
Agente plantonista: Graciela Marquezal Oriente
Natureza da ocorrência: duplo homicídio
Data: 10/01/2004
Local: Ilha do Monte
Hora da comunicação: 10h.

INDICIADO:
Tomás Antonio Menezes Ganduar
Doc. Ident. nº: 15.611.518
Pai: Juvenal Astor Ganduar
Mãe: Josefa Jacinto Ganduar
Cor: branca
Idade: 24 anos
Estado Civil: solteiro
Profissão: estudante
Nacionalidade: brasileira
Natural: Natal/RN
Residência: Rua dos Faraós, 132, Bairro Nova Enseada

VÍTIMAS:
Júlia Cunha de Voltair
Nestor Donatelo Souza
Obs: dados serão pesquisados.

TESTEMUNHAS:
1)Juvenal Astor Ganduar, residente na Rua dos Faraós, 132, Bairro Nova Enseada, RG 999.638.209 SSP/RN.
2)Josefa Jacinto Ganduar, residente na Rua dos Faraós, 132, Bairro Nova Enseada, RG 803.740.500 SSP/RN.

HISTÓRICO:
Relata o próprio indiciado que em dezembro de 1998 soube através de Júlia Cunha de Voltair que ela e o namorado, Nestor Donatelo Souza, que eram seus amigos, iriam participar no dia 23 daquele mês de uma aventura tida por rapel. Esclarece que conheceu Júlia antes de Donatelo, sendo que ela apresentou um ao outro. Explica o denunciante/indiciado que o rapel se trata de uma prática esportiva em que o praticante utiliza-se de cordas e outros equipamentos para escalar montanhas, paredões ou relevos dessa espécie. Declara que, por indicação sua, os dois amigos citados dirigiram-se à Ilha do Monte, utilizando-se de um barco alugado. Como no dia de Natal, ele não os encontrasse e suas famílias não soubessem informar seu paradeiro, esclarece que no dia 26 de dezembro se dirigiu ao local descrito, do qual tinha prévio conhecimento, por ter estado na ilha dois ou três anos antes. Declara que um piloto de aluguel levou-o até a ilha e que tão logo chegou a seu destino, encontrou o barco dos amigos em meio à vegetação e então dispensou o piloto. Em seguida passou a escalar o monte que praticamente toma toda a extensão da ilha. Lembra que no topo havia marcas da passagem dos dois amigos por ali e que logo pôde observar partes dos equipamentos na base do monte. Declara que se preparou com o equipamento próprio que levava e desceu pelo paredão até ouvir os gritos de Júlia e de Nestor, e que não foi difícil encontrá-los. Esclarece que após perguntar-lhes se estavam bem, a primeira idéia que teve foi içá-los, mas que, pensando melhor, resolveu brincar um pouco com os dois, ameaçando deixá-los ali mesmo até o Ano Novo. Informa que no início os amigos pensaram se tratar de uma brincadeira, mas ele logo fez questão de assegurar que não era uma brincadeira, embora ainda fosse uma brincadeira. Declara que depois de alguns minutos, teve a idéia que levou a cabo em seguida. Deixou os dois amigos presos na gruta, limpou toda a área para que se alguém aparecesse na ilha não desconfiasse de nada, devolveu o barco à barraca de aluguel com a desculpa de que os amigos haviam solicitado isso a ele e depois, durante vários dias, visitou os dois com a promessa de libertá-los assim que o amigo de nome Nestor lhe escrevesse apontamentos sobre sua relação com Júlia. Afirma ter perguntado a Nestor se havia papel e caneta com eles. Esclarece sobre esse assunto que não queria lhes dar qualquer objeto, com receio de que mais tarde sofresse qualquer tipo de acusação. Declara que todos os dias esperava o amigo Nestor concluir a redação para que, através de um gancho com arame, ele içasse o papel até a entrada da gruta. Que avisou a Nestor conhecer Júlia e ele próprio há um bom tempo e que por isso não se atrevesse a escrever bobagens ou mentiras. Que se isso acontecesse, ele não dava garantia alguma aos dois. Quando os amigos já se encontravam em situação desesperadora, esclarece que foi preciso acenar a Nestor com pães e frutas para que ele se dispusesse a continuar escrevendo. Declara ainda que não se sente culpado pelo crime, pois os dois amigos a que se refere viviam em outro mundo e precisavam cair na realidade. Esclarece que pensava em libertá-los, mas quando decidiu por tomar a atitude já era tarde demais. Perguntado pelo delegado se Júlia alguma vez foi sua namorada, esclarece que sim. Declara que essa foi a primeira e única vez que agiu dessa forma. Sobre o texto enviado à polícia, afirma tratar-se de cópia dos originais escritos pelo amigo Nestor, os quais ele também entrega à responsabilidade policial. Nada mais.

EXAMES REQUISITADOS:
Psiquiátrico.

Elaborado por Graciela Marquezal Oriente ( Mat. 003.989/91) - Agente de Polícia de plantão
10 de janeiro de 2004.

10 DE JANEIRO (TARDE)

Uma equipe de investigadores levou Tomás à Ilha do Monte. Lá, numa gruta completamente ocultada pela vegetação que cobria sua entrada, acharam as ossadas de Júlia Cunha de Voltair e Nestor Donatelo Souza, dados como desaparecidos havia três anos. As ossadas encontravam-se longe uma da outra. Sentadas, estavam encostadas a paredes extremas, cada qual com um canivete preso à mão direita, encarando-se, como se ainda pudessem vigiar-se mutuamente.

a)Plácido Antunes Felinto
Delegado de Polícia

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