Naquela casa triste da minha rua morou um dos mais sublimes amores de que se tem notícia. Fosse em outros tempos e atrevo-me a dizer que talvez servisse de matéria-prima para escritos de Shakespeare esta lancinante história que, por falta de quem a transforme num belo romance, será contada por mim mesmo.
Do quarto com janela para a calçada, ainda dava para ver anos depois o resultado dramático do impensável caminho escolhido por nosso protagonista em busca de sua obsessiva conquista. Sobre a cama, inerte, repousava seu corpo sem uma marca visível sequer da virulência com que desconhecidos organismos patogênicos acercam-se da vítima fragilizada pelas intempéries do coração.
Alguém soube de tal caso? Quem poderá dizê-lo, se apenas a mim, então uma curiosa criança e nada mais, ele parecia desafogar a intensidade de seus sentimentos? Por motivos que excluem a necessidade de explicações, vamos chamar Romeu o sujeito de nosso drama, pois seu nome de batismo me encarregarei de ocultar por razões que, da mesma forma, não exigem esclarecimentos.
Minhas tardes, depois de haver concluído as tarefas trazidas da escola, eu as passava alguns dias em redor das residências vizinhas, todas elas com largos quintais que se esticavam até misturar-se com um amplo fundo de vale. Era ali o lugar de tantas brincadeiras de uma época em que a internet com seu poderio hipnótico nem mesmo fazia parte de nossos sonhos. Os menores, em sua intocável inocência, levavam a cabo apenas seus objetivos pueris de intermináveis algazarras. Outros, como eu, cuja infância travava um lento mas inevitável embate com os sinais da adolescência, dividiam-se entre os resquícios das tardes descompromissadas e os planos de novos horizontes, entre os quais todos aqueles que levam aos atrativos de lúbricas origens. Além dessas duas formações, perambulavam também nos nossos campos uma terceira categoria da juventude: a que está pronta a receber, e após isso adentrar férteis terrenos de prazeres e sofrimentos, as flechadas desses eternos cupidos viajantes incansáveis da imensidão. E neste fundo de vale, aberto aos amores, é que aparece nosso Romeu.
Ele ainda não passou dos 16 anos, mas é daqueles capazes de avançar além dos limites previstos. Sabe de poemas distantes e de notícias incomuns à realidade da maioria. Tem idéias que ninguém entende e outras que fazem rir. E assim vive ele, entre a admiração e a zombaria dos demais. Embora seu interesse em muitas ocasiões se avizinhe das buscas comuns de todas as criaturas que convivem ali, há em seu mundo hábitos que ainda fogem ao domínio de nossas vontades. Não sei, por exemplo, desse sentimento estranho que, às vezes, ele deixa escapar num breve lamento ou num instante de felicidade. Aos poucos, talvez porque só encontre em mim a paciência inesperada para os de minha tenra idade, entrega-me suas dúvidas e convicções. Vai mesmo, dia após dia, contando-me seus pensamentos, todos eles, até estes que repasso adiante.
Mora muito perto de nosso vale a menina que surge sempre ao fim das tardes. Não sei se o acaso a traz desse modo ou se ela confabula com o pôr-do-sol. Na linha do horizonte, acima dos pastos que sobem a encosta até dar no outro lado da cidade cortada ao meio pela serra, nascem junto à vermelhidão do crepúsculo seus lentos passos. Fica em meio às brincadeiras e às conversas até a noite fechar-se e, então, retoma o caminho de volta. Ela invade, desde as primeiras vindas, os pensamentos de Romeu.
Naquela época, eu não sabia ainda desta verdade escrita por Bernard Shaw: “há duas tragédias na vida: uma, a de não alcançarmos o que o nosso coração deseja; a outra, de alcançá-lo”. Qual terá sido a pior para Romeu? Como nos contam os escritos biblícos sobre Pilatos, assim o farei: lavo as minhas mãos e deixo nas do leitor a difícil escolha.
Em tardes seguidas, vem a menina (Pode apostar: recuso-me a chamá-la Julieta. Imagino que o leitor me tomaria por piegas. Tomaria? Na dúvida, chamo-a apenas deste modo: a menina. Foi assim que a conheci e jamais a vi numa outra fase da vida. Não sei dizer se ela deixou de sê-lo). Houve dias, logo no início, em que Romeu a tomou por amiga. Depois, dizia-me, enxergava nos olhos dela motivos para novas esperanças, estas ainda distantes da minha percepção infantil. Chegou, entretanto, o momento em que os organismos patológicos desconhecidos mesmo à prova da intromissão dos mais poderosos microscópios agiram de forma irremediável.
Nossa vítima da mais terrível das doenças humanas ou, caso prefira o leitor, do mais delicioso êxtase da existência conta-me, então, neste fadício dia, que suas defesas foram vencidas. Diz-me que depõe suas armas. Imagino, entrementes, e por pura mofa, um soldado em guerra à minha frente, mas, como disse antes, estando numa categoria em que os restos da inocência vão sendo vencidos pela abertura de novas frentes, logo também eu procuro encostar à margem minhas poucas armas. Escancara-se Romeu a uma destemida intenção, a ponto mesmo de afastar-se seguidamente de todos aqueles hábitos alheios a quase todos aqueles freqüentadores do nosso vale. Nisso, ao menos assim, devia parecer-nos mais comum, mais próximo de todos nós. O novo comportamento põe um brilho estúpido no olhar, uma boca constantemente entregue a sorrisos, um humor sem lugar para picuinhas ou queixas contra os mais novos. É outro, enfim.
Felicito-o, numa das nossas tardes, pela nova aura que o segue. Ele sorri, animado pelos sinos da igreja que badalam outra vez, prenunciando a chegada veloz do entardecer. Seu olhar perde-se em meio ao horizonte rubro, à espera da menina. E ela vem outra vez, como sempre. Em meio a revoadas de pássaros e a danças fugazes de coloridas borboletas, desce pela encosta e logo deixa-se levar pelo murmúrio que adentra a noitinha. Está quase na hora de voltarmos, mas para os maiores, e entre eles está Romeu, o prazo é mais longo, ainda há tempo para tanta coisa que nem mesmo eu sei dizer. Curioso, esqueço dos meus horários, ando ocupando-me de ouvi-los: as conversas banais, as queixas que se fazem de qualquer coisa, as trocas de palavras carinhosas, mesmo o silêncio constrangedor pode-se escutar. Um dia após outro, voltamos para casa juntos. A menina toma o rumo inverso, ele a segue com o olhar triste de quem só poderá vê-la amanhã. No trajeto, Romeu me empurra, bate em meus ombros, dá saltos sem rumo no meio da rua, chama-me a sair em disparada numa corrida em que não importa o vencedor: é sua felicidade.
“As páginas da vida vão passando umas sobre as outras, esquecidas apenas lidas”, escreveu Machado de Assis. Talvez o leitor as esqueça mesmo. Quem pode dizer o que sente cada um diante das tragédias? De minha parte, não poderei jamais esquecer aquelas páginas tingidas por uma vermelhidão que, pensando bem, deveria, sob o manto da sábia natureza, tentar nos avisar, a mim e a ele, do que viria. Seriam da mesma cor as tardes que lá hoje habitam nosso doce vale?
Passam os dias. As conversas, à sombra da noite, evoluem a outros encantos. Nosso protagonista troca carinhos com a menina, as palavras ouvem-se menos, as queixas são abandonadas, cresce o silêncio. Há dias em que Romeu não retorna mais comigo. Agora, volta-se inteiro à menina, da hora em que chega à hora em que a acompanha até certa altura do caminho. Quando nos encontramos, sucedem-se as alegrias. Ele por ela, eu por vê-lo assim. Quero-o bem, não há motivo para ser de outro modo. Com ele, vou entrando num terreno desconhecido. Preciso saber como pisar, como abrir passagem em meio a tantos espinhos. E onde há espinhos há flores, alguém dirá. É até lá que desejo ir. Romeu apaixona-se pela menina, e eu pelo novo.
O caso é que onde há flores também há espinhos. Recorro a Shakespeare: “Devemos aceitar o que é impossível deixar de acontecer”. O leitor, que jamais será menos sábio do que todos que lhe escrevem, pode adiantar-se a imaginar o insucesso de nosso herói. Não porque eu mesmo já o disse, expondo-o atirado a uma cama onde é possível vê-lo através da janela que dá para a rua, mas porque se lograsse êxito na sua jornada, raramente haveria lugar para esta narrativa. Ah, sim! Desde que fosse outro a rabiscar estas linhas, não duvido: alguém que pudesse extrair da felicidade de um casal palavras capazes de garantir-lhes curiosidade. Não, este não é o caso. Nem meu interesse. Que fiquem os felizes livres de atenções. Que gastem sua felicidade um no outro. Os felizes valem-se por si e encantam-se sem nenhuma companhia a mais. Deixemos que eles se valham.
E, aqui, passemos aos finalmentes. Numa tarde vermelha de um dezembro ainda novo houve de a menina, como agem os que buscam algum atalho, desviar-se da trilha. Romeu, em sua sensível percepção, volta comigo para casa sem dizer palavra, enfiado em seu desassossego. De nada adiantam meus incentivos, meus convites para as corridas, minhas perguntas e, enfim, também o meu próprio desassossego. Correm os dias. Ouço-os cada vez menos. Romeu diz pouco a ela. Desaparecem as carícias. Os beijos não mais se roubam. Aos poucos, afastam-se mesmo os olhares. Numa noite, ele me diz algo assim: não pode se conformar. Na outra e dali a mais duas ou três, um estranho modo de agir apodera-se dele. Então, em uma semana, vem-me com esta: precisa dizer-me uma coisa na qual não poderei acreditar. Fala-me e estampa um sorriso. Mas ainda assim assusto-me. Parece ser outro Romeu aquele. Conta-me o que se passa há duas noites. Vara as madrugadas em longos sonhos nos quais encontra-se com a menina, e neles pode sentir mesmo a fragrância de seus cabelos negros, a maciez de sua pele jovem, o gosto dos lábios grossos. Acorda molhado de suores, debate-se pelo impacto da nostalgia, padece diante da ilusão que se esvai com a sobriedade da insônia que sobrevém. Ao levantar-se, no entanto, recupera suas esperanças. O sonho às vezes é um aviso, acredita meu amigo.
Assim, com os sonhos noturnos, encorpa-se a ilusão diurna. Uma depois da outra, as tardes pintam o mesmo quadro: em meio à agitação do vale enfeitado por tantos jovens, há um Romeu sentado à beira de seu abismo, soturno, como quem chamasse aqueles versos de Manuel Bandeira: “o sol tão claro lá fora, o sol tão claro, Esmeralda, e em minhalma — anoitecendo”. À noite, no retorno à casa, acompanha-nos a aura do fracasso. Vendo que dele se afasta a menina, sem que seus sonhos se realizem, entrega-se a um pesado desalento. A mim, que viajo por essas novas estradas, custa-me também uma parte do ânimo. Mas nem por isso deixa Romeu de adiantar-me, nos dias seguintes, o que se deve passar à tardezinha. Nas fantasias da madrugada anterior, veio-lhe a menina trazer uma boa nova: confundira-se por dias a fio sobre seus sentimentos, mas agora nada mais podia afastá-la da certeza que a empurrava para ele. Já no vale, esboça uma felicidade ao vê-la descer. Vem ela confabulando com o crepúsculo, a lentos passos, e quando chega exprime sem graça um cumprimento por educação. Passa por ele sem que, de ontem para hoje, uma só alteração em seu semblante o faça crer da possível boa nova. Vai-te embora, Romeu – conta-me depois ter ouvido uma voz que lhe sussurrou algo nesses termos. Nem no outro dia, assim como nunca mais, Romeu volta ao nosso vale. O vazio deixado por sua ausência chama a atenção nos primeiros tempos, mas depois perde-se o interesse.
A vida segue. Vejo a menina levar-se por outros caprichos. Nem uma vez sequer preocupa-se em gastar seu tempo para saber de meu amigo. Perceba o leitor que também minhas apreensões sofrem uma brusca interrupção. Dos clarões que se abriam à minha frente, dos caminhos que me levariam a saber de novos sentidos para a vida, resta-me apenas a incerteza. Acho-me só em meio às tardezinhas. Como escreveu Antônio Maria, “só se está só ou acompanhado dentro de si mesmo”. Sim, é verdade! Tantos em redor e tão sem ninguém eu me via! Então, por necessidade, vou ao encontro de nosso Romeu. Quando o vejo, é como se me acudissem cavaleiros prontos a tirar de meu lombo as cangalhas. Um princípio de conforto toma-me ao vê-lo sorridente. Mas tão veloz quanto chega é assim que se vai essa sensação. Sua expressão, como aquela à qual já me referi antes, passa a intimidar-me. Sobra-me ainda uma pausa para temer tal sentimento, origem de minhas expectativas sobre o que eu queria conhecer talvez antes mesmo que me fosse possível o acesso. Ainda é meio da tarde e só agora, sob as queixas reservadas da mãe, é que Romeu deixa os lençóis. Apressa-se a contar-me do que se passa em suas madrugadas, e o que se passa agora estende-se também às manhãs e, como quer ele, também haverá de as tardes concederem os sonhos de seus desejos.
A menina, conta-me Romeu, visita-o em tais sonhos como numa verdade que se confirma todas as noites. Admira-se, mesmo ele, com a certeza de que ao dormir irá ao encontro dela. Quantos amores! E quanta fé! Por vezes, extasiado, expressão misteriosa, aperta-me os ombros com os dois braços estendidos a confiar-me este segredo: estão para se casar. De seus olhos, caem lágrimas que me fazem estremecer. Sua felicidade é assustadora, mete medo. Cuidadoso, pede-me para sair. Voltará à cama agora mesmo. Não importa mais a hora, mais nada conta. Seu mundo encerra-se nos sonhos. São eles sua realidade. Lá está o que não encontra aqui fora. Pela porta entreaberta, vejo-o deitar-se. Uma expressão serena cola-se em sua face. Estas palavras de Cecília Meireles eu ainda não conhecia, mas hoje, ao lembrar-me disso tudo, não posso deixar de escrevê-las: "Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Naquele instante, Romeu liberta-se de todos os sofrimentos que aos poucos lhe sugam a vida e mergulha em profundezas das quais ainda não temos notícias. Lá está ele, do mesmo jeito, ainda anos depois, como havia sido informado ao leitor no início deste relato. Nosso herói, revelou-me antes de dormir, partiu para amar.
E naquela casa triste, onde todos velam um sono desconhecido, habita um homem feliz.