O homem sem nome

Capítulo 1

UMA CARTA

Ao acaso, encontrou-me o escritor naquele dia, há pouco mais de seis meses, envolvido num desses episódios que, a despeito da admiração de quem quase nunca os presencia, constituem-se, nas grandes cidades, em ocorrências tão comuns quanto chocantes. Entretanto, acho que não devo interferir nessa parte. Talvez o senhor possa, se assim desejar, contá-la com mais detalhes, pois acompanhei apenas o desfecho. Mas veja como a vida é curiosa, às vezes nos levando a crer, por meio de caprichos, que em seus meandros há muito mais do que possamos enxergar a princípio. Quando o senhor me propôs escrever o tal diário, forneceu-me um alento cujo benefício, acredite, não se pode mensurar. E, por essa oportunidade, sou-lhe grato. Antes de passar ao que deve de fato mais lhe interessar, creio se tratar de algo conveniente ratificar as informações que forneci a meu respeito, se é que o senhor ainda as guarda na memória.

Fui professor de ginásio durante algum tempo. Lecionei em diversos colégios. Casei-me aos vinte anos, mas só pude me formar mais tarde. Primeiro, porque minha vida sempre foi difícil. Filho único, perdi meus pais muito cedo e, antes de ir para a faculdade, tive que ganhar dinheiro para poder pagar os estudos. Depois, precisei interrompê-los por conta da morte de minha mulher. Ela morreu quando nosso filho mal tinha ingressado na escola. Sozinho, com sacrifícios, eu o criei. Formou-se contabilista e não demorou a se fixar num emprego que, embora não fosse uma mina de ouro, servia ao menos para cobrir seus gastos. De minha parte, talvez por ter já certa idade, não conseguia uma cadeira fixa de professor. Perambulava de bairro em bairro, sempre atrás de preencher vagas para substitutos. Mesmo acrescendo à minha renda os resultados de outros bicos, recebia parcos vencimentos, que mal podiam me sustentar.

Num certo dia, apareceu-me o filho com uma namorada, uma moça vistosa e muito comunicativa. Sempre me tratou muito bem, até que após um ano decidiu se casar. Morávamos numa casa modesta de dois quartos. No começo, tudo correu bem, mas passando um certo tempo, coisa de meses, percebi alterações no comportamento dos dois. Viviam aos segredos pelos cantos, muitas vezes tensos, inquietos.

Coincidentemente por esses dias, minha saúde pifou. Fui parar no hospital com suspeita de infarto, que não se confirmou. O médico do serviço público me atendeu e recomendou que eu me cuidasse. O senhor tem o coração muito fraco – lembro-me de ele ter dito. Fomos para casa, onde permaneci em repouso por dias seguidos. Também não deveria fazer esforço por alguns meses, até que minha saúde pudesse se estabilizar. Sem poder trabalhar, minha situação financeira se tornou insustentável. Eu não tinha mais dinheiro algum. Nisso, os dois decidiram, sem me consultar, buscar socorro numa instituição assistencial, um desses depósitos de velhos e doentes. Eu nunca pude entender essa atitude de meu filho. Também não posso culpar sua mulher, já que nada comprovei. Mas a verdade é que eles me abandonaram numa casa de repouso e depois disso nunca mais os vi. Quando consegui escapar do lugar, pude tomar conhecimento de que minha casa, cuja escritura eu passara para o nome dele desde a morte da mãe, havia sido vendida. Outra família já a ocupava.

Sem ninguém, sem dinheiro e sem destino, procurei a ajuda de algumas pessoas com as quais eu trabalhara nos colégios por onde passei. Alguns prometeram empenho na tentativa de que aulas me fossem atribuídas, outros se justificaram expondo-me condições nada animadoras. Enfim, com as esmolas que me deram para que eu pudesse sobreviver por uns poucos dias, andei por albergues uma ou duas semanas. Nesse período, sempre voltava às pessoas que me auxiliariam em busca de trabalho, mas elas minguavam a cada nova conversa, até que não havia mais a quem recorrer. Ainda deixei meu nome em várias agências de empregos, mas, admito, minha aparência a essa altura já não deveria ser das mais agradáveis, não apenas pelos problemas de saúde, mas principalmente pelo cotidiano que passou a me atormentar. Não era todo dia que havia um chuveiro para tomar banho ou mesmo creme dental e outros produtos de higiene pessoal. Minhas roupas, carregadas numa pequena bolsa, estavam sujas e amassadas. Tudo em minha vida se tornara precário. Aos poucos, eu me transformava num andarilho.

O senhor sabe, já foi nessas condições que nos encontramos naquele dia, na porta do hospital. Então, o escritor me pediu o tal diário, para um livro ou uma reportagem, se bem me lembro. E agora eu lhe digo: melhor que o diário é a história que tenho para lhe contar...

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Capítulo 2

O ENCONTRO

Isto mesmo, foi na porta de um hospital que eu o encontrei. Dentro de um paletó surrado e visivelmente roído em algumas partes, aquele sujeito magro, de olhos cansados, pele sardenta e cabelos já muito brancos, embora vastos, procurava informações sobre um companheiro de rua. Já era o terceiro hospital que percorria. Enfim, você o localizara. Seu amigo Donato estava ali, passando por uma cirurgia que, ao final, amputaria pela metade sua perna direita. Mas esse episódio teve origem dois dias antes, quando um parente me convidou para uma aventura inusitada: caçar roedores. Exatamente isto: ele e mais dois amigos são caçadores de ratazanas. Trata-se de uma espécie de lazer misturado à prática de um bem público. Permita-me, leitor, deter-me um instante a essa curiosidade, tentando explicar como é o procedimento. Tudo começa com o preparo das iscas. Os restos de pizza – canapés prediletos dos animais – são acondicionados em invólucros plásticos e guardados no freezer. No dia da caçada, os alimentos são retirados e devidamente aquecidos. Ficam perfeitamente saborosos. Os caçadores, então, apoderam-se de suas armas (pequenos rifles com munição específica para os roedores) e se lançam aos locais onde provavelmente encontrarão esse tipo de animal, como em beira de córregos ou becos imundos. Lá, espalham as iscas e aguardam para abater esse que é um dos principais transmissores de doenças e por isso uma das grandes ameaças à saúde do homem.

Bom, nem é preciso dizer que aceitei o convite. Num fim de tarde, fomos de carro a um córrego poluído, onde pudemos desde logo visualizar em suas margens dois ou três desses bichos asquerosos. Não foi difícil atraí-los com o cheiro das pizzas ainda quentes, que eram retiradas da caixa de isopor apenas de acordo com a necessidade. Só ali, foram abatidas doze ratazanas, uma delas considerada a maior até então já vista pelos experientes caçadores. Confesso que sua fuça horrenda e seu rabo avermelhado chegaram a me dar medo. Depois de juntá-las num recipiente próprio fornecido pela secretaria do meio ambiente para o fim de transportá-las visando a incineração, deixamos para trás o riacho podre. Entretanto, antes de entregarmos a encomenda, um deles sugeriu que déssemos uma volta pela área mais central da cidade. Já era noitinha e sua finalidade não era outra senão somar mais dois ou três animais mortos. Pelo que eu entendi, eles tentavam obter um número recorde. Acho que por isso, os demais logo concordaram. Fomos então para uma área próxima a um desses mercadões de hortifrutigranjeiros. Quando entramos numa das estreitas ruas que circundavam a construção, logo percebemos o movimento de uma ratazana que se esgueirava em meio a engradados de madeira e restos de produtos. Com cuidado, procuramos segui-la até uma esquina. E foi ali, nessa esquina, que pudemos assistir ao monstruoso episódio.

Devo dizer que a princípio nada naquela cena acrescentava mais aversão ou assombro do que já tínhamos acumulado até ali. Encostado a uma parede de um negrume tal que se tornava difícil visualizá-lo no escuro, dormia, aparentemente embriagado, um homem de cor negra. De nosso ângulo de visão, pudemos ver também do lado oposto, mas na mesma calçada, uma ratazana fuçando em meio a trapos velhos. Entre os dois, interpunha-se uma lata de lixo das grandes, de cuja boca pendiam cascas de frutas e outros objetos que não pude identificar. Estávamos a quinze ou vinte metros do local. Como o roedor se mostrasse apenas do meio do corpo para a traseira, detendo-se de resto a esmiuçar algo comestível em meio aos panos, um de meus colegas procurou aproximar-se o mais que pôde, tentando assim uma situação melhor para o disparo. Cauteloso, eu o segui. Já muito perto e como a ratazana não se incomodasse com nossa presença, a cena nos deixava a cada instante mais curiosos. Então, em vez de nos aproximarmos ainda mais, decidimos melhorar nossa posição e descobrir o que tanto prendia a atenção do animal. Ao contornarmos a lata de lixo, um terrível torpor se apossou de meus sentidos. Poderia ser mesmo o que eu via à minha frente? Olhei para meu colega de caça e seu semblante não escondia pavor menor do que o meu.

A verdade nua e crua é que o homem, que depois viemos a saber se tratar do tal Donato, jazia mesmo bêbado, tendo ao seu lado uma garrafa de aguardente e um par de muletas. Suas pernas estavam esticadas e uma delas, embrulhada em faixas hospitalares e gazes. Era ali, metida meio corpo no emaranhado de tecidos imundos, que a ratazana se alimentava. Ávida, triturava e devorava aos bocadinhos o pé desse Donato. Mais tarde, no hospital para onde o levamos, você me contou sobre a perna aleijada de seu amigo. Então, o episódio ficou explicado: embriagado, Donato não viu que sua perna morta começava a se transformar em comida para ratos. Aliás, confesso a você que até hoje sinto um certo incômodo quando penso nisso: involuntariamente me flagro a observar meu próprio pé, procurando me certificar de que não há bicho algum roendo minhas carnes.

Bem, mas naquela noite, enquanto os médicos amputavam a perna do Donato, lembro-me de lhe ter feito a proposta. Depois da breve conversa que tivemos, não me foi difícil constatar que você não se tratava de um morador de rua qualquer. Seu jeito de falar e os conhecimentos demonstrados em nosso diálogo bem explicavam a formação que agora me é revelada em detalhes. Eu lhe pedi algo como um diário, no qual você contaria como é o cotidiano de pessoas que vivem nas ruas. Você não se recusou. Apenas manteve-se, por um instante, alheio a tudo, o olhar perdido. Depois, disse-me que não tinha papel suficiente para tanto, tampouco lápis. Então, dei-lhe dinheiro. E, para dali a algumas semanas receber os escritos pelo Correio, anotei num pedaço de papel meu endereço, pois você não quis dizer onde eu poderia lhe encontrar. Aqui, é preciso lhe confessar duas coisas: exatamente porque você pretendeu omitir onde dormia, eu o segui naquela mesma noite e pude conhecer o viaduto sob o qual alguns andarilhos se juntavam à beira de um córrego. Depois, vivi um bom tempo arrependido por ter feito o pedido. Remoí um amargo sentimento de egoísmo. Eu deveria tê-lo ajudado, isto sim. Mas, ao mesmo tempo, eu pensava de que maneira eu poderia tomar alguma atitude diferente daquela que só o levaria novamente a um albergue ou algo parecido. O tempo passou e a vida atribulada que todos vivemos hoje em dia se incumbiu de, aos poucos, ir apagando você de minha mente. Desculpe-me, eu já não esperava mais as folhas de papel sujas e amassadas que recebi pelo Correio e que trazem a sua história nas ruas.

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A HISTÓRIA

Capítulo 3

No começo, não havia um dia sequer sem que eu me desesperasse. Quando tudo me foi arrancado de maneira tão rude, subitamente o medo e a revolta penetraram em minha alma, deixando-me à mercê da mais profunda desesperança. Meus pensamentos me remetiam irremediavelmente ao passado. As lutas que travei para a sobrevivência de minha família, os sacrifícios, as frustrações e mesmo os momentos de felicidade permeavam minha mente. Como tudo aquilo podia ter se dissipado de uma hora para outra? Às vezes, nos bancos das praças ou nos becos onde eu buscava abrigo, em meio às turbulências de meu sono, tudo parecia convergir para um medonho pesadelo, mas logo eu acordava sobressaltado e o pavor daquela verdade voltava a me oprimir de forma a não se poder mensurar. Assim, vários meses se passaram, compondo um período de angústia e insondável solidão. Muitas foram as ocasiões em que implorei a Deus para que meu coração enfim ratificasse o diagnóstico médico a respeito de sua debilidade. A cada dia, entretanto, esse órgão de meu corpo parecia se petrificar. Meu medo se converteu em desdém, e minha revolta, em resignação.

Depois de um certo tempo, quando minhas esperanças se esgotaram por completo, concluí que não havia outro modo senão me adaptar a uma nova e cruel realidade. Curiosamente, lembro-me de, por esses dias, ver minha imagem refletida numa vitrine do comércio. Não sei dizer por quanto tempo permaneci ali, estático, estupefato com a transformação que havia se operado em minha figura. Meus cabelos, em toda a vida sempre muito bem penteados, estavam inteiramente desgrenhados e tinham adquirido um tom amarelado; meus olhos se afundavam em duas covas de margens arroxeadas; a barba cheia e desajeitada me conferia um aspecto de homem das cavernas. Um sentimento de fracasso comprimiu meu peito por um momento, mas logo algo me chamou a atenção no lado de dentro da loja: uma das vendedoras aproximou-se da vitrine, creio que para pegar algum produto, e num olhar de relance se deteve em minha triste figura. Eu, para ser gentil, característica que jamais perdi, procurei lhe abrir um sorriso, à medida do que me era possível fazê-lo dentro de minha melancolia. E nisso, ao sorrir, em vez de me fixar na improvável reciprocidade da moça, não tive como evitar o susto que levei com minha boca. Meus dentes apodreciam a olhos vistos, enegrecidos pela falta de escovação ou qualquer tipo de higiene bucal. Então, súbito, apressou-se em minha mente a certeza de que ali estava outro homem, não existia mais resquícios do professor que um dia sonhara com uma vida melhor.

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Capítulo 4

Perdoe-me se evitei adentrar imediatamente meus piores pesadelos, e talvez, daqui para frente, também os do escritor, mas julguei ser necessário demonstrar, embora de maneira apenas breve e superficial, como se deu a transformação de meu ser, como um homem convicto de suas crenças foi levado a se perder por um caminho tortuoso e desconhecido. Manifestar-me sobre essa alteração em meu espírito será importante para que, mais adiante, eu tenha certo crédito para reclamar um indulto diante da eventual condenação por meu comportamento. Por ora, compreenda-me assim, caro escritor, que será o bastante.

Nesse mesmo dia em que pude observar meu flagelo no reflexo da vitrine, deixei-me abandonar, sem norte, sob a cobertura de um ponto de ônibus numa rua secundária. Até altas horas, assisti a chegadas e partidas, a rostos alegres e tristes, preocupados e distraídos, um movimento contínuo que de pouco em pouco, à medida que a madrugada se aproximava, foi se arrefecendo. Num dado momento, peguei-me completamente só. Estávamos no outono e, junto com uma garoa incessante, a temperatura havia caído razoavelmente. Meu desalento diante da descoberta daquele homem da vitrine me impedia de tomar qualquer atitude na busca de um refúgio mais apropriado para uma noite fria. Apenas procurei me abrigar da melhor maneira possível com minhas próprias vestes, encolhido sobre o banco de cimento gelado e vez por outra sorvendo um resto de cachaça. A certa altura, adormeci em meio a sonhos inquietantes que misturavam lembranças de minha família com situações inusitadas que só os sonhos são capazes de produzir. Assim, nesses enredos da mente, minha mulher e meu filho vinham a meu encontro, abraçavam-me e eu lhes dava, com intensa satisfação, alguns embrulhos contendo alimentos. Feito isso, eu logo retrocedia e retornava a meu trabalho, que então me era ofuscado por essas características tão próprias dos sonhos. Essas cenas se repetiram por diversas vezes, até que de súbito me encontrei em frente a um posto de combustíveis, atendendo a um cliente. Enquanto abastecia o carro, eu podia sentir o cheiro da gasolina. Entretanto, sem uma justificativa plausível, meu cliente arrancou com seu veículo, deixando-me com a pistola jorrando o combustível, e nisso o cheiro se intensificou de forma brusca, o que me fez despertar assustado. Então, muito próximos de mim se encontravam dois rapazes. Um deles, tendo à mão um desses galões plásticos, só fazia me encharcar com gasolina, enquanto seu companheiro se preparava para me atear fogo. Por um instante, desesperei-me, mas, em poucos segundos, e sem que os dois pudessem me compreender, um desejo tão forte de morrer se manifestou em meu âmago que eu comecei a sorrir. Logo, eu gargalhava. Meus algozes se entreolharam indecisos, mas muito depressa resolveram pôr fim a seu propósito. O galão vazio foi jogado dentro do porta-malas do carro que eles tinham estacionado a poucos metros dali, e quando uma pequena tocha que serviria para me incendiar foi acesa, surgiram não sei de onde três sujeitos que, ameaçando os rapazes, intercederam a meu favor. Antes que me pusessem fogo, o grupo os dominou. O cheiro de gasolina, o frio e a cachaça me entorpeciam. Sei dizer que meus defensores se precipitaram de maneira decisiva para cima dos criminosos e sem que houvesse tempo para quase nada, despiram os dois e, depois de fazerem o mesmo comigo, vestiram ambos com minhas roupas, enfiando as calças num e a camisa e o paletó em outro. Em seguida, enquanto eu vestia as roupas secas de um dos dois, fui tomado por um grande susto: meus salvadores puseram fogo naqueles panos encharcados de gasolina e os assassinos de mendigos rolaram no asfalto para controlar as chamas antes que elas os ferissem gravemente. Mas disso não tenho mais qualquer certeza, pois deixamos o lugar às pressas. Acompanhei o grupo até seu abrigo, debaixo de um viaduto, onde passei a noite sem tomar chuva e sem sentir frio.

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Capítulo 5

Ainda muito cedo acordei com o tremor do concreto sobre as nossas cabeças. O tráfego intenso de veículos pesados era um despertador e tanto. Mas apenas para mim. Olhei para o fundo daquela morada, que se estreitava conforme o viaduto se encravava no solo, e observei mais cinco homens dormindo, talvez já acostumados à balbúrdia matinal. Aproveitei para investigar o lugar, correndo os olhos sem deixar minha cama improvisada. Os trastes se amontoavam: dois pequenos armários velhos de madeira carcomida, um fogão, uma mesa e algumas cadeiras, um sofá velho e várias panelas penduradas nas extremidades, além de um filtro de barro e uma enxada encostada num canto. No lado de fora, entre a barranca que descia a partir de uma extensa pedreira e o córrego que passava à nossa porta, havia também uma churrasqueira improvisada, feita a partir de um desses latões cortados ao meio, e sobre ela, uma grelha toda enferrujada, cuja utilização certamente deveria ser muito rara. De qualquer maneira, aqueles homens viviam ali como se o lugar fosse uma casa, embora muito miserável. O primeiro a se levantar foi um negro aparentemente forte, que se apresentou a mim como Donato, o mesmo que mais tarde seria atropelado e perderia completamente os movimentos de uma das pernas. Antes de tudo, entretanto, buscou água num balde e se lavou. Depois, enquanto me dizia algumas palavras, acendeu o fogo e se pôs a fazer um café que, a despeito de se mostrar bastante ralo, acomodou-se muito bem em meu estômago. Donato, então, passou a me falar dos moradores de rua que ali estavam. À medida que ele se referia aos seus companheiros, uma sensação desconfortável me consumiu. Ao contrário do que meu pensamento egoísta sempre me levou a acreditar, aqueles miseráveis, aos quais eu havia agora me juntado, também tinham suas histórias, um passado, enfim. Como o resultado de uma lâmina que nos fere, doeu-me constatar que mendigos não nascem necessariamente nessa condição, que sobre eles quase sempre recai o peso de uma terrível transformação social, cujas conseqüências são ignoradas por todos os demais em nome da malfadada guerra pela sobrevivência.

Em meio a um pensamento assim é que procurei, à medida do possível, permanecer atento a seu relato, levado a cabo com certa gravidade. Pude saber que ele próprio, o Donato, vivia nas ruas há menos de dez anos. Antes disso, fora operário e comerciante. Os descaminhos da economia o haviam atirado à margem. Sua família se espalhara e ele, agora afundado na mendicância, abandonara qualquer ambição de revê-la um dia. Outro deles, de nome Braguinha, passara mais de vinte anos no presídio. Quando saiu, embora tendo cumprido sua pena e pago seus pecados à Justiça, jamais conseguiu ser aceito num emprego sequer. O mais velho, um tal Carijó, Donato não soube explicar de onde veio. Os demais, Américo e Sergipano, repetiam histórias semelhantes à minha: desentendimentos familiares, filhos que se vão para não se sabe onde e coisas assim. Conheceram-se, lógico, nas ruas, cada qual buscando ajuda para não ficar à mercê dos perigos de se viver só, perigos como o que eu tinha enfrentado na noite passada. Pouco a pouco, obtiveram a confiança recíproca, o suficiente para dividir o mesmo teto – o concreto do viaduto. Assim, ao passo que Donato se adiantava em suas apresentações e logo eu também contava minha origem, os outros se levantaram e vieram nos fazer companhia. Ao final, detiveram-se por alguns instantes, até que Donato se virou a mim e me ofereceu um lugar entre eles. Não somos um bando – disse-me, explicando que cada um contava com sua própria vida durante o dia e que apenas à noite procuravam se manter unidos quando saíam. De pronto, aceitei. Ao menos, teria um buraco para me esconder. Mas havia algo mais, alertou-me Donato, algo que eu compreenderia naturalmente com o passar do tempo e que de nada me valeria saber de imediato. Nessa hora, percebi que o tal Braguinha passara a se sentir incomodado, desviando o olhar para algum ponto distante. O escritor que atente para este detalhe na seqüência de meu relato, pois verá como sou bom observador. Bem, quanto ao aviso, não posso negar que me causou certa inquietação, embora eu tenha procurado não demonstrar, afinal, se eu aceitara viver numa comunidade, decerto também seria necessário obedecer a determinadas regras de convívio. Como meu estado de espírito não estava para me permitir qualquer tipo de iniciativa, muito menos questionamentos complicados, abandonei-me ao acaso.

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Capítulo 6

Os dias se seguiram sem sobressaltos. Eu saía pela manhã e só retornava à noite, quando nos reuníamos para somar os resultados de nossas mendicâncias. Raramente era possível comprar mais que pão, leite e cachaça. Entretanto, cerca de dois meses mais tarde, ao voltar para casa num fim de tarde, um fato inusitado me chamou a atenção, causando-me, sem que eu pudesse contê-la, uma repentina alegria. Donato e Carijó se ocupavam de estender sobre a grelha da velha churrasqueira improvisada um belo naco de costela, já condimentado e fervido. Ao lado, num varal onde geralmente pendurávamos nossos trapos, pendiam tiras de carne devidamente cozidas e salgadas para consumo posterior. Os dois vieram ao meu encontro, felizes, e quando lhes perguntei como haviam conseguido a carne, apenas me disseram que o melhor era me preocupar com o milagre e não com o santo. Em seguida, também chegaram Américo e Sergipano, que, entre brincadeiras e comemorações, juntaram-se a nós para o banquete. O único ausente era Braguinha. Diante de minha curiosidade, disseram-me simplesmente que ele já participara de outros e que aquele não lhe faria falta. Enquanto a carne assava, meu estômago dava mostras inequívocas de ansiedade. Era-me possível sentir suas paredes se contraindo e libertando roncos constrangedores. Os outros riam. Nem sei há quanto tempo não comia um churrasco. Minha alimentação, desde que não estivesse em albergues, sempre se restringia a porções muito limitadas que quase nunca continham carne. Num relance, desfilaram em minha mente imagens de churrascos que às vezes fazíamos em casa nos almoços de domingo. E nisso me dei conta de que havia um bom tempo eu não me recordava de minha mulher ou de meu filho. Aos poucos, minha situação de miserável cuidava de ofuscar minhas lembranças. A cada dia, pareciam se fechar os acessos às recordações que diziam respeito ao meu passado. Se eu tentasse, creio que não conseguiria enumerar claramente nem mesmo os colégios onde tinha dado aulas. Até mesmo o rosto de minha nora eu já o perdia em meio às imagens de meu novo mundo. Quando meus companheiros interromperam aquelas meditações, já tinham trazido para cima da mesa a costela grelhada. Tomamos um gole de cachaça e nos pusemos a comer. Não posso afirmar que estava saborosa. O gosto não me fazia lembrar nem um pouco dos churrascos que nós tão bem preparávamos em casa, talvez o tempero fosse inadequado ou algo assim. Mas sei dizer que esse sabor estranho não me impediu de devorar minha parte com avidez. De pedaço em pedaço, meu estômago se acalmou. No entanto, durante a noite, tive a certeza de haver cometido exageros. Também me lembrei daquele sabor singular quando muita sede e contínuas ânsias me atormentaram madrugada adentro. Por diversas vezes, retirei-me para a beira do córrego, onde pretendia me livrar do incômodo estomacal, mas não conseguia verter o que me fazia mal. O estranho era que esses resultados só atingiam a mim. Os demais dormiram durante a noite toda, como se tivessem saboreado um manjar de deuses. Somente quando o dia começava a raiar é que eu peguei no sono. Então, nem mesmo os ruídos dos carros em cima do viaduto foram capazes de me acordar.

Lembro-me de ter dormido a manhã inteira. Quando despertei, por volta de uma hora, não havia ninguém “em casa”. Imaginei que todos tivessem saído porque eu tinha ficado. Nunca o lugar era deixado sem ninguém. Mesmo a miséria corre riscos nesse mundo – costumava dizer o Donato. As panelas, que no dia anterior serviram para cozinhar toda aquela carne, já se encontravam lavadas e penduradas. A churrasqueira, lá fora, também estava em ordem. Não havia mais resquícios do jantar, a não ser pelas tiras de carne salgada penduradas numa das extremidades internas do viaduto. Meus companheiros as tinham posicionado atrás de um dos armários, de modo que sua visão era impossível para quem olhasse de fora, da beira do córrego. Antes de me levantar inteiramente, certifiquei-me de minhas condições. As ânsias haviam cessado, restando apenas uma sede brutal. Então, enchi um caneco de água do filtro e me sentei próximo à churrasqueira, aproveitando-me do pequeno declive, onde uma terra dura como pedra me serviu de assento. Em pequenos goles, fui sorvendo a água, enquanto me detinha a algo que até então não havia percebido em meio à vegetação ciliar do diminuto fio d’água que corria por ali: a aproximadamente trinta metros margem abaixo, seguiam-se vários outeiros, todos eles cobertos de capim, mas que faziam o terreno oscilar claramente. Como não houvesse outro plano possível, senão o de permanecer tomando conta do lugar, resolvi investigar de perto aquelas saliências. Esse lado do córrego margeava também uma comprida barranca de pedra. Esgueirei-me pela beira da barranca até que pude chegar ao primeiro monte. Dali em diante, emparelhavam-se outros sete praticamente idênticos, a não ser por um detalhe: o capim do último se encontrava apenas espalhado sobre ele, sem estar ainda enraizado, deixando à mostra a terra revolvida. Procurei me aproximar e pude ver também, à medida que deixei para trás o sopé da barranca e me infiltrei pelo brejo, diversas pegadas recentes que circundavam o solo remexido. Nisso, atendo-me com mais cautela às proporções de comprimento dos pequenos montes e virando-me para observá-los sob um ângulo de visão que os perfilava em seqüência, uma sensação indescritível enregelou-me a alma: nitidamente, eles se assemelhavam a covas rasas de cemitérios.

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Capítulo 7

Ao mesmo tempo em que eu procurava afastar de minha mente idéias absurdas, um turbilhão de pensamentos ruins me acudiu imediatamente. A princípio, imaginei se tratar de um lugar onde talvez traficantes desovassem corpos de inimigos assassinados. A direção dos veículos no viaduto era exatamente inversa, o que ajudava ainda mais a esconder o lugar por entre o capinzal e pequenos arbustos. A essa hipótese, acrescentei a possibilidade de meus amigos estarem envolvidos. Quem sabe não acobertariam os criminosos em troca de alguma ajuda? O churrasco do dia anterior me pareceu explicar em parte essa teoria. A carne poderia ter sido fornecida pelos traficantes que usavam o terreno para cometer tais heresias. Um dado importante ainda me ocorreu: quando me convidaram para morar com eles, Donato e seus amigos me alertaram sobre algo que eu só ficaria sabendo mais tarde. Portanto, minhas suspeitas não eram de todo descabidas. Restavam-me duas opções: ir embora dali e não mais voltar ou contestar abertamente o comportamento de meus colegas. A primeira logo se tornou inviável, pois fugir sem dar qualquer explicação poderia levantar suspeitas a meu respeito, e assim eu levaria comigo para sempre o receio de ser perseguido. Eu precisaria lhes pedir explicações. Mas, antes, era necessário ter certeza de tudo aquilo, que ali realmente havia um cemitério de corpos. E para isso, para levar adiante a iniciativa da qual eu não tinha como me omitir, tive de juntar todas as forças que ainda restavam em torno de meu espírito destroçado.

Deviam ser umas quatro horas quando voltei para baixo do viaduto e, decidido, tomei em minhas mãos a velha enxada. Eu ia abrir aquela última cova, onde a terra fofa certamente me permitiria um acesso menos trabalhoso. Antes de enterrar o aço no solo, ainda me detive um instante. A partir dessa descoberta, minha vida poderia correr constante perigo. Mas, então, mais convicto do que nunca, desci a enxada com força: minha vida se transformara num desastre e nada poderia me causar mais desgosto do que sua própria ocorrência. Depois de vários golpes seguidos, senti a lâmina se chocar contra algo que não era terra. Apressei-me na tarefa, até que em poucos minutos, afastando os últimos torrões de areia com as mãos, alcancei um saco plástico amarrado pela boca. Ao rasgá-lo, uma onda fétida encheu, densa, o ar das proximidades, enquanto, completamente atordoado, pude observar que ali jazia o cadáver do Braguinha. E o que vi me causou tamanho transtorno que mal posso me recordar: o corpo estava mutilado em vários pontos. Haviam arrancado grandes pedaços de carne. Então, obedecendo a um movimento involuntário causado pelo mais intenso terror, fui atirado violentamente para trás. Caído ao chão, de costas, era difícil me levantar. Quando reuni forças para me reerguer, uma horrível ânsia me fez verter sobre o cadáver do Braguinha todo o vômito originado pelo churrasco de suas próprias carnes.

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Penúltimo capítulo

Depois de cobrir o cadáver novamente e ajeitar o capim por cima da terra, voltei desesperado ao viaduto, onde Donato e Carijó me esperavam sentados à beira do córrego. Vendo-me com a enxada na mão e em minha face lívida o resultado do pavor, não foi preciso qualquer introdução, nem mesmo perguntei o que significava tal ultraje. Calmamente, eles me disseram tudo, o que procurarei resumir em seguida.

Por mais demente que pudesse parecer o resultado de suas ações, ambos demonstraram absoluta convicção ao me reportarem suas justificativas. Há entre todos eles uma espécie de pacto. Mas não se precipite, meu caro escritor. Não se trata de qualquer ritual ligado a uma seita maluca que possa sacrificar seus seguidores, nada disso. O grupo de homens que então incluía Donato, Carijó, Américo, Sergipano e o próprio Braguinha apenas se propôs a uma autodestruição que, segundo seu julgamento, representa o último recurso contra sua medonha indigência. Outros já tinham sido sacrificados em nome desse pensamento. Dito isso, ambos olharam para o cemitério à margem do córrego. Lá estavam oito corpos. Mas não são apenas aqueles. Em lugares distintos, espalhados pela grande cidade, mais grupos agem dessa maneira, garantiu-me Carijó. O que mais podemos esperar? – perguntou-me Donato. Sem tropeçar nas palavras, enumerou tantas justificativas quantas fossem necessárias para mostrar a inexistência de perspectiva para eles. Diante do descaso que enfrentam, tratados como seres alheios ao mundo das ditas pessoas normais, que sonhos eles poderiam acalentar? Não souberam me informar quando tudo começou. Faz muito tempo, limitaram-se a dizer. Também se anteciparam à minha inevitável pergunta sobre o consumo daquelas carnes. Isto sim não vem desde o começo. Só de um certo tempo para cá é que adotaram tal procedimento. Que carne se pode comer entre nós? - perguntou-se Carijó, em tom de desabafo. Além do mais, corre entre os mendigos o comentário de que alguém propôs o consumo como uma homenagem ao morto. Não é em vão que se morre – definiu-me Donato. Nas primeiras vezes, também sofreram de problemas digestivos, mas com o passar do tempo se acostumaram, além de terem melhorado o tempero, seguindo instruções de outros grupos mais experientes. Está aí a história que eu tinha para lhe contar, caro escritor. Ela é tão assustadora quanto real. E o curioso é que faço este relato de uma maneira que só agora, bem agora, lembro-me que também eu integro este submundo. Portanto, é também minha própria história. Só a conto, compreenda-me, por ser improvável que um dia o senhor ou qualquer outra pessoa se sinta incomodado com o desaparecimento de uns poucos mendigos das suas ruas. Fora isso, lançando mão do recurso que aqui eles chamam de livre arbítrio, jamais teremos outro contato. Amanhã será a minha vez de me libertar de todas as misérias que recaíram sobre minha vida nestes últimos anos. Adeus.

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Último capítulo

A BUSCA DESESPERADA

Recebo esta sua carta numa manhã de sábado. O sol está radiante lá fora e a primavera enche minha rua de flores. As árvores encantam os passantes com o sussurro leve de um vento que teima em forrar o chão de pétalas. Quando saio para atender ao carteiro, um ônibus de excursão passa bem em frente cheio de crianças fazendo uma algazarra ensurdecedora. Elas gritam, acenam para os pedestres, são um espelho de pura excitação e felicidade. Aquele sentimento em trânsito vai deixando um rastro entre as pessoas, que também se agitam, brincam com elas, gritam palavras engraçadas. Isso tudo me dá uma intensa satisfação. Logo que o ônibus desaparece na esquina, parece ter havido uma aparição, uma fada que, enjoada da fuça sisuda de todo mundo, resolve colar um sorriso em todas as faces. Enquanto penso nessas bobagens gostosas, o carteiro já se foi, apressado em sua bicicleta. Fico com seu envelope na mão, mas ainda não faço idéia de quem seja. Só ao voltar para casa e me sentar à mesa do escritório é que tomo conhecimento do remetente em branco. Então, eu estranho. Abro a carta e lá estão seus papéis. Corro rapidamente os olhos sobre suas linhas escritas a mão e daí me recordo perfeitamente de você e do que tínhamos combinado. Começo a ler sem nenhuma demora. Logo, à medida que você se adianta na narrativa, meu coração começa a bater mais forte. Uma sensação que soma comiseração, arrependimento e revolta cresce em meu peito. Depois, vem o medo. Nas linhas finais, o desespero. Num ímpeto, agarro as chaves do carro e me lanço à rua sem avisar ninguém em casa. Você escreveu “amanhã será a minha vez...”. Amanhã, meu caro, é hoje. Estamos pelo meio da manhã. Você e seus amigos não fariam nada tão cedo, certo? Acho que ainda me lembro do viaduto até onde o segui naquela noite. É para lá que estou indo, apavorado, o remorso me corroendo as entranhas. Eu poderia ter ajudado você, de alguma maneira eu poderia... Vou pensando assim, atravesso semáforos e mal sei se estão abertos, buzino para os carros saírem da frente, tento atalhos, tenho vontade de gritar para que você e seus amigos esperem um pouco mais, meus olhos embaçam debaixo dos óculos. Dirijo me lembrando de seu rosto cansado daquela noite, de seus olhos fugidios, de sua hesitação em se reportar a mim, como se fôssemos diferentes, como se houvesse seres inferiores e você fosse um deles. Procuro me controlar ao volante, o carro sacode sobre o asfalto mal cuidado, vou dobrando curvas, vou vencendo retas, estou me aproximando do lugar onde você deve estar, vivo ou morto, onde você deve estar. Preciso acreditar que vou chegar a tempo, que ainda há tempo para você, que ainda há tempo para mim, que ainda há tempo para todos nós...

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