Gravado para sempre em minha retina, há um olhar; um triste e inquieto olhar. Foi num Sete de Setembro. Desempregado há seis meses, com contas e mais contas enfiando-se sob a porta, eu procurava juntar os cacos que ainda restavam de minhas parcas economias, mas por maior que fosse, o contorcionismo nunca se mostrava suficiente para estancar aquela verdadeira sangria desatada. O salário de professora de ensino médio recebido por minha mulher mal servia para o mercado. Devíamos na farmácia, na padaria, no açougue e por aí afora. As roupas da menina de sete anos se perdiam rapidamente, o garoto de quatro anos arrebanhava os brinquedos em pedaços sem ter nada novo à mão. Nossos parentes mais próximos, coitados, viviam (e vivem) como todo mundo hoje em dia: rezando para o mês acabar logo. Como diz um ex-colega meu, a encrenca era grande.
No meio de tudo isso, ocorreu um episódio curioso. Apareceu-me no feriado da Independência um primo que eu não via fazia já um bom tempo. Chegou dirigindo um desses carros importados. De cara, confesso, até imaginei-o chofer de algum empresário rico, mas logo ele mesmo desfez minha impressão. Desceu com uma mulher muito bem alinhada que ele chamou de "meu bem" e com um garotinho, também de três ou quatro anos, que vinha dentro de uma roupa muito aprumada. Esse meu primo, numa certa fase de nossas vidas, fora para mim como um irmão, éramos unha e carne. Nunca tivemos posses. Por isso, foi-me difícil, à primeira vista, imaginá-lo montado num bom dinheiro. Bom, de qualquer maneira, ia muito bem o primo.
Ficaram para o almoço. Minha mulher, aliás, superou-se na hora de pôr à mesa. Fez, por assim dizer, uns milagres para construir aquele cardápio a partir de uma geladeira quase vazia. Busquei umas cervejas e ficamos ali, batendo papo até o meio da tarde. O primo explicou que estava de passagem, gozava férias da multinacional onde trabalhava havia cinco anos e ao cruzar com minha cidade decidira entrar para matar as saudades. Claro que não houve qualquer possibilidade para queixar-me a ele de minhas pendências financeiras. Às pessoas bem colocadas quase sempre é difícil enxergar as angústias alheias. E no mais, procuramos evitar a todo custo demonstrar essas angústias. Sabe aquele orgulho próprio? Pois é.
Pouco antes das despedidas, um casal amigo cujas crianças se equivalem nas idades com as nossas pegou os pequenos e levou-os para o parque, como já estava combinado desde a semana anterior. Os dois, que para dizer a verdade não se bicaram muito com o filho do primo, disseram um tchauzinho breve e se mandaram. Em seguida, as visitas também começaram a se despedir, mas eis que, por alguma razão que só o destino é capaz de explicar, nosso cão, chamado Gordo pelas crianças, escapuliu do fundo do quintal e adentrou a sala onde tínhamos acabado de almoçar. De uma dessas raças de cães pequenos, e mal saído dos primeiros seis meses, veio esfregar-se em nossas pernas, debaixo da mesa. Naturalmente, o menino, que até ali só abrira a boca para comer duas ou três garfadas de arroz e carne, animou-se muito. Enquanto tomamos mais uma gelada, o filho do primo arrebitou-se da cadeira e pôs-se a brincar com o cãozinho. Na hora de sair, fez cara de choro, bateu o pé: queria o Gordo para ele. O primo se fez de durão, levou-o pelo braço e atirou-o dentro do automóvel importado. Nós nos despedimos e eles se foram.
Passada coisa de meia hora, estávamos terminando de enxugar os pratos, soou a campainha. Eram eles novamente. O primo sorriu amarelo na porta de casa e contou-nos uma história assim: na verdade, o menino fora criado muito cheio de dengos e desde cedo dera muito trabalho com suas tristezas profundas, que o levavam à depressão. Enquanto o primo falava, eu observei dentro do carro o garoto em prantos sendo confortado pela mãe. Por um instante, tive muita pena daquela família. Lembrei-me de meus filhos, tão alegres e companheiros, embora com poucos bens materiais. Mas, sabe como é o ser humano, esses sentimentos nobres quase nunca nos protegem contra as idéias mundanas que nos envolvem quando nossa própria sobrevivência está em jogo. Rápido, pensei que se o primo quisesse levar o Gordo, se fosse aquela a sua intenção, então que preparasse o bolso para me ajudar a pagar as contas atrasadas. Bem, nem é preciso dizer que o primo me pediu para vender-lhe o cachorro. Então, convidei-o a entrar novamente.
Sentamos na sala, minha mulher trouxe-nos um cafezinho. Em poucas palavras, expliquei-lhe nossa situação. O caso era que, além de todos os problemas que vínhamos enfrentando, se entregássemos o cachorro por nada ainda ganharíamos uma crise a mais, pois certamente as crianças, apegadas que já estavam ao Gordo, não iriam aprovar nossa atitude. O primo olhou-me com comiseração e questionou-me a respeito de meu silêncio sobre nossas necessidades financeiras. Em seguida, disse-me algo como "uma mão lava a outra". Propôs levar-me o cachorro e em troca deixar-me uma razoável quantia num cheque cujo talão ele já sacava de um dos bolsos da calça. Olhei para minha mulher, aparentemente ela não discordava. Fechei o negócio.
Busquei o Gordo, que a princípio veio todo feliz no meu colo. Com jeito, levei-o ao carro. Só então, ele começou, acredito eu, a compreender o que se passava na realidade. Eu e o primo nos despedimos novamente, ele ligou o carro. No banco de trás, o menino pôs o Gordo sobre as pernas, tentando afagá-lo ao mesmo tempo em que limpava o rosto cheio de lágrimas. O cachorro, inquieto, procurava esgueirar-se por entre os braços finos do garoto, espichava o pescoço em direção ao vidro e lançava-me aquele olhar cuja expressão jamais me deixará. O vidro subiu automaticamente, o primo acelerou e o importado afastou-se. Pela traseira, ainda pude ver o Gordo de orelhas em pé empinar-se sobre o banco para olhar-me no meio da rua.
Com o dinheiro deixado pelo primo rico, pagamos praticamente todas as nossas contas atrasadas, o que nos permitiu um fôlego extra até que eu conseguisse um novo emprego. Claro que meus filhos sentiram muito a partida do Gordo. Por mais que eu tentasse explicar-lhes o motivo, eles jamais me perdoaram. Arrumei um bom trabalho nos meses seguintes e muito depressa tomei uma decisão que, após aquele olhar, sempre esteve nos meus planos. Resolvi ir falar com o primo a respeito do Gordo. Iria dizer a ele sobre o mal estar que teimava em estremecer minha relação com meus filhos. Iria pedir a ele que me vendesse de volta o cachorro. Para isso, juntei exatamente o dinheiro que ele me entregara. Viajei ao seu encontro sem avisar.
Ao receber-me em seu escritório, num desses prédios luxuosos da capital, ele abraçou-me com carinho. Contei a ele meu drama e pedi que me devolvesse o Gordo. Antes de sua resposta, entreguei-lhe as notas contadas. O primo olhou-me admirado. Disse-me que por nada receberia aquele dinheiro, que se eu não tinha entendido, entendesse agora: o dinheiro ele me havia dado com a satisfação de poder auxiliar uma pessoa que ele realmente amava. Fez-me guardar o pequeno pacote e, então, deu-me as más notícias. O Gordo havia estado melancólico desde que o tinham trazido para sua nova casa. O próprio filho, desanimado com a falta de receptividade do cachorro aos seus carinhos, deixara-o de lado. Havia alguns dias, disse-me o primo, ele e a mulher, comovidos pela tristeza do cãozinho, ensaiaram inclusive levá-lo de volta, mas o trabalho os impedia de sair naquele momento. Diante da piora do animal, resolveram interná-lo numa clínica veterinária.
Não posso expressar o que senti ao ouvir as explicações do primo: uma mistura de felicidade e apreensão envolveu-me naquele instante. Onde ficaria a clínica? Eu precisava ir até lá, levá-lo de volta para as crianças! O primo vestiu o paletó e, abraçando-me, convidou-me para irmos até o Gordo. Mas também advertiu-me sobre sua saúde: o veterinário aceitara interná-lo, mas não garantia sua recuperação. Mesmo assim, lá fomos nós. Vou resumir as fases seguintes: ao ver-me, o Gordo passou por uma rápida recuperação, iniciada ali mesmo na clínica, para espanto do primo e do próprio veterinário. Levei-o para casa apenas no outro dia, seguindo a recomendação do médico, que o considerava muito fraco para ter alta imediatamente. Mas nem eu acreditei como ele melhorou de uma hora para outra. Parecia até coisa arranjada por aquele cãozinho simpático e outrora rechonchudo. Já com as crianças, refez-se em poucos dias. Meus filhos abraçaram-me como nunca o tinham feito.
A vida seguiu em frente, com seus altos e baixos. Há quatro meses, a empresa na qual eu trabalhava fechou suas portas, estou desempregado novamente. E nestas outras horas de aperto, olho preocupado para o Gordo, ao passo que ele vai se contorcendo em pequenos círculos ao redor do próprio corpo, torna a fitar-me e em seguida busca outra ocupação, sempre monitorando de esguelha meus movimentos, como se quisesse certificar-se de que eu não mais o agarrarei para entregá-lo a um primo ou a quem quer que seja. Mas, decididamente, não se trata disso, meu caro cão. Decerto, venderia a alma ao outro, mas nunca mais lhe passaria nos cobres. Penso nisso e, mesmo com todos os percalços de minha economia doméstica, fico sorrindo para você, descobrindo aos poucos que nenhuma dívida deste mundo pode importar mais do que aquela que saldamos com nossos próprios sentimentos. E você, parecendo compreender-me, vem a passinhos lépidos buscar um afago.