Esta noite, ele voltou.
Mas vamos contar desde o início.
Há vários episódios que considero sobrenaturais em minha vida. O primeiro deles se passou ainda na infância. Eu devia ter uns quatro ou cinco anos. Mas me lembro perfeitamente.
Foi assim.
Morávamos no sítio e a notícia de que um ladrão havia acabado de espalhar o pânico ao entrar em várias casas correu as imediações. Segundo se soube, ele teria fugido para a estrada.
Quando chegamos à estrada, soubemos que o homem havia entrado num matagal ali perto. Todos fixavam seus olhares na direção das moitas. Já tinham ido buscar a polícia.
De mãos dadas com minha mãe, olhei para trás, para o alto da estrada. E foi quando aconteceu.
Nossa estrada rural devia ter mais ou menos sete metros de largura. Altos barrancos margeavam o trilho fundo. Eu tinha o olhar voltado para o morro, queria ver surgir o carro da polícia lá em cima.
Mas o que vi foi um homem pular a estrada, de um barranco ao outro, da direita para a esquerda. Um único salto! Sete metros de distância sobre uma altura de três metros com um único salto! Bastou que ele abrisse as pernas e a vencesse.
Contei esse caso apenas trinta anos depois. Talvez porque eu mesmo não acreditasse ou tivesse receio de ser tomado por louco. Hoje, após descobrir que provavelmente sou mesmo louco, eu o conto livre de qualquer preocupação quanto aos reflexos de minha sanidade.
Passei por várias situações desse gênero, inverossímeis para a razão. Às vezes, demoram a acontecer. Em outras, encadeiam-se em série.
A década de 1990, por exemplo, foi bastante “produtiva”. O caso do Simca Chambord talvez seja o que mais se aproxima do que chamamos de realidade. Parece-me ser o mais próximo do palpável.
Em 1997, a avenida Getúlio Vargas, em Bauru, era quase um trilho de gado a partir da rotatória onde hoje fica a Polícia Federal. Dali em diante, principalmente em dias de chuva, trafegar de carro se tornava um martírio. Eu morava um quilômetro à frente.
Um dia, voltando para casa, ultrapassei os limites do asfalto e entrei no trecho de terra batida. Havia chovido. As condições não eram nada boas. O sol acabara de entrar e sobre Bauru pairava apenas uma rala claridade vermelha.
Eu tinha freado e reduzido drasticamente a velocidade por causa dos buracos e da lama. Atrás de mim, ainda com as luzes apagadas, vi um veículo se aproximar. Era um Simca Chambord.
O Simca, para quem não sabe, é um dos automóveis mais charmosos da história. Pelo que vi na internet, sua produção começou em 1958 e foi até 1967. Na década de 1980, a banda “Camisa de Vênus” o homenageou com a música “Simca Chambord” (álbum “Correndo o risco”, 1986, WEA).
Pois bem, lá estávamos na Getúlio, ano 1997. O Simca no meu retrovisor, forçando a ultrapassagem. Como o caminho era estreito e estava em péssimas condições, procurei levar meu carro até o máximo que podia para o lado direito. E assim o fiz, aguardando que o motorista apressado saísse da minha cola.
Entretanto, ninguém me ultrapassou naquele início de noite. Num piscar de olhos, o Simca Chambord simplesmente havia desaparecido. Parei, abri a porta e desci. Não sei quanto tempo fiquei ali com as mãos na cintura, tentando compreender a charada. Naquele ponto não havia por onde sair a não ser seguir adiante. Não havia esquina. Não havia rua a dobrar. O Simca Chambord evaporou no ar.
Um risco frio me percorreu a espinha. De repente, tive pressa. Entrei no carro e me mandei dali.
Agora há pouco, três da manhã, dezessete anos depois, acordei sobressaltado. Sonhei com o Simca Chambord. Já no asfalto da Getúlio, eu o vejo se aproximar pelo retrovisor. Como em 1997, eu trafego pela direita, dou passagem a ele.
E ele passa. Elegante e, claro, sem ninguém ao volante.
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