Quando eu sair na Rondon – acho que depois do Trevo da Eny, e depois também do Alameda, acho que naquela descida onde a gente quase se sente um pássaro, talvez por lá –, vou precisar pensar em coisas malucas, coisas curiosas, engraçadas, impossíveis, surreais; afastar pensamentos que me joguem nos braços das lembranças; tentar a criação de um vazio momentâneo que possa me salvar do mergulho; vou precisar mentir pra mim mesmo: vamos só dar um pulinho ali em São Paulo, só mais uma dessas muitas viagens que já fizemos tantas vezes. Mas desde já tenho a impressão que vai ser tarde: o nó efervescente na garganta me terá feito engolir, engolir e engolir, mas sem qualquer efeito prático. Tudo virá à mente outra vez como o insaciável conteúdo de um daqueles filmes que revelávamos em complexos processos de laboratórios fotográficos no século passado, o conteúdo de um interminável álbum do instagram, de um livro ilustrado ou de um site de imagens gratuitas. Pessoas, coisas, memórias, ocasiões, circunstâncias. Ah, Bauru, minha honey baby. Tenho que confessar: não achei que fosse tão difícil. Olhar para tudo que é seu nestes últimos dias foi de uma angústia quase palpável. Viver antes a saudade que só virá mais tarde machuca por dentro, deixa a gente como depois de uma cólica, depois de uma longa sessão de vômito, depois de coisas assim, cujo alívio é impreciso e incerto, e cuja sensação é a mesma (se fosse possível imaginar) que uma casa sentiria diante de paredes que descascam, diante do reboque que descola dos tijolos, diante de uma rachadura por onde penetram os efeitos das intempéries, talvez uma goteira intermitente e tristonha que ficasse ali batendo no chão até o fim dos tempos. Um dos primeiros pensamentos quando me dei conta de que já estava descendo por todas as ruas para ir embora foi que Bauru me deu tanto e sou tão grato por isso que meu coração dói de um jeito insuportável. E a seguir tive vontade de mandar a mesma Bauru à merda porque houve momentos em que a mesma Bauru também me tirou quase tudo, me sugou, me explorou. Quase pensei “estamos quites, então”; quase consegui me convencer de que poderia dizer a Bauru, na cara de Bauru, que não acredito mais em você; quase. Mas no fundo era só aquele rancor súbito que antecede o reconhecimento. E é isso. Reconheço que Bauru me tirou da boa vida de moleque e de filho e me fez homem e pai. Não um pai modelo ou um modelo de pai desses em que os filhos devem se espelhar de olhos fechados, mas um pai meio inseguro meio irresponsável pronto a entregar a jugular pela felicidade do que lhe é mais caro nesta vida. Não o homem machão e resistente que eu um dia bobamente achei que fosse. Mas um homem, como agora, capaz de se entregar de peito aberto à imensa fragilidade que é não ter mais o amparo simbólico de Bauru, cujo solo eu sempre pisei como se fosse a terra da Lagoa Seca, minha Macondozinha perpétua onde nasci de um puxão que meu pai deu para me arrancar de dentro da minha mãe porque a parteira não deu conta, meu pai rústico e quente como um fogão a lenha, minha mãezinha boa e doce como suas rosquinhas de pinga e seus mantecais; um homem que se entrega à imensa fragilidade de não ter mais o mais lindo céu vermelho do poente que já existiu na fileira de planetas, de não ter mais o cafezinho das duas olhando para os ipês, de não ter mais o cara que na rua me confunde com alguém que não conheço, de não ter mais o quintal vazio do cachorro que sempre latia pra mim, de não ter mais o calçadão da Getúlio, de não ter mais os amigos que ficam, de não ter mais os bares conhecidos, de não ter mais as músicas do vinil que só nós gostamos como se fossem sinfonias de uma vida, de não ter mais a mulher que me viu na tevê e me fez chorar na frente do Correio da Rio Branco ao dizer que rezava por mim, de não ter mais tantas e tantas outras coisas. Um dia, bem lá atrás, fui fazer uma das minhas primeiras reportagens em Bauru. Era sobre um abrigo para meninos deficientes mentais e que passava por sérias dificuldades financeiras. Tão sérias que depois de quase três décadas eu ainda posso me lembrar das condições miseráveis do lugar. E nem é difícil explicar. Basta dizer que era como um chiqueiro. Mas não como costumamos dizer sobre o quarto de alguém relaxado, por exemplo. Não. Era um chiqueiro, mesmo. O chão cheio de fezes e urina. Muitos garotos sem uma peça de roupa sequer. Uma tragédia. Eu era quase um garoto também. Tinha uns vinte e dois anos. Saí de lá quase eufórico com o conteúdo que iria produzir, uma bela denúncia que rendeu uma página dupla da edição de domingo. Mas, depois, quando a matéria já tinha saído, quando comecei a me dar conta do que realmente tinha visto naquele buraco imundo, a memória me deu um tranco. Até hoje eu me recordo onde estava nesse momento: numa lanchonete pertinho do jornal, almoçando lasanha. Não houve qualquer motivo aparente, mas eu me lembrei que depois de ter feito a matéria e quando já estava de saída, um daqueles meninos, quase da minha altura (eu tenho um metro e oitenta e quatro), com a cabeça raspada e cheia de pequenas feridas, completamente nu, veio em minha direção. A pessoa que nos atendeu durante a reportagem caminhava à minha frente conversando com o repórter fotográfico. Quando percebi, ele já estava bem perto, à minha direita. Então, esticou os braços e praticamente me abraçou. Não um abraço como conhecemos, um abraço apertado em que juntamos os corpos etc e tal, mas apenas os braços esticados sobre meu ombro, os olhos baços fixados em mim e ao mesmo tempo vagamente perdidos, um fiapo de baba ligando o queixo ao peito, um sorriso sem sentido colado ao rosto triste. Não sei o que pensei na hora. Não é que eu não me lembre o que pensei. É que eu não sei o que pensei. Eu me lembro que não soube o que pensei. Acho que dei uns tapinhas no braço dele enquanto seguíamos em direção à saída. E foi quando percebi que ele estava mijando sem qualquer controle, talvez sem nem mesmo saber que estava mijando. Também percebi que havia molhado um pouco minhas calças. Eu não contei o episódio a ninguém. Pensei em livrá-lo daquela vergonha, livrá-lo de um constrangimento público, pensei heroicamente em manter a dignidade do garoto. Manter a dignidade! Naquele inferno! E de volta à lanchonete e ao tranco que a memória me deu, eu tive naquele dia, há quase três décadas, a chance de descobrir que eu não conhecia o cara que estava comendo lasanha, eu não conhecia o cara que tinha vibrado ao fazer uma matéria pensando apenas em sua vaidadezinha egoísta, que tinha tocado com certo desdém o braço do menino abandonado e deficiente como alguém que pensa “é, faz parte da profissão”, que tinha passado uns dias sem se comover claramente com o drama de seres humanos atirados no lixo por uma sociedade tão egoísta quanto ele próprio, e que agora, perdida a fome, estava tentando de todas as maneiras disfarçar os olhos úmidos, e que por fim não sabia porra nenhuma sobre si mesmo. E se você não sabe porra nenhuma sobre você, você não sabe porra nenhuma sobre o mundo. E isso, eu penso até hoje, tem seu lado bom. Porque, sendo assim e se você tem a intenção de compreender a vida, você vive numa constante busca de você mesmo. E do mundo. É isso que fazemos aqui, afinal. É isso que, bem ou mal, fiz nestes anos todos em Bauru. E é isso que pretendo fazer agora em São Paulo. Procurar por mim. Com aquele mijo ainda quente em minhas calças. Procurar por alguém que, felizmente ou não, ainda não conheço inteiro. Mas em quem, felizmente, ainda boto uma pontinha de fé. E é com essa pontinha de fé que eu vou tomar aquele velho navio.
(Para Ana Clara, que levo aqui dentro;
para Nina, que fica...)
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