Antes que Lola lhe dissesse qualquer palavra, ele compreendeu. Não sabe explicar se foi pura intuição, se foi o resultado de reflexos apreendidos da fisionomia pesada da mensageira ou, até, se foi algo tão previsível que ele próprio já sabia antes mesmo que acontecesse. Num ato de desespero, tentou reconstruir os últimos dias, talvez para enfiar-se num melodrama capaz de esvaziá-lo da angústia que subiu pela garganta feito um arroto amargo.
De imediato, viu que Assunta lhe sorria a partir de uma imagem incerta serpenteando no ambiente bem à sua frente ou, decerto, fixada em sua retina. Sorria como todos os dias em que se encontravam e deitavam sobre a roupa de cama vermelha que ela substituía por outra da mesma cor e depois por mais outra e assim por diante no decorrer de seu cansativo cotidiano no hotelzinho do centro. Viu-a bem perto dele, os lábios ainda com o batom intacto roçavam de leve seu nariz, Bem na pontinha, meu lindo! Teve vontade de chorar, Por quê? Por quê? Desabou na poltrona da salinha ao lado da recepção.
Ela deixou um bilhete. Como que amedrontada, Lola esticou o braço para entregar o pedaço de papel dobrado e redobrado, preso nas bordas por um pedaço de durex que começava a soltar-se. Lola manteve o braço no ar até que ele reuniu coragem. Eu já sei, Lola, eu já sei de tudo. Fui uma besta quadrada, puta merda! Levantou-se bruscamente, Lola deu um passo atrás: Assunta sempre falava que ia com você, sempre!
Ia comigo, ia com o japonesinho do jornal, ia com o playboy da moto, ia com a puta que pariu, Lola! Percebeu-se gritando de repente, não para Lola nem para a imagem de Assunta que agora lhe escapava, mas para si mesmo. Da recepção, veio um O que foi, Lola? Tá tudo bem, ela foi até a porta, tá tudo bem. Você não vai ler? Virou-se para ele apressadamente, como se também aguardasse, ela mesma, uma mensagem importante da amiga, um recado inadiável, uma palavra que lhe dissesse respeito.
Ainda ontem ela me falou que como a gente, não tinha igual, ele pensou em voz alta enquanto entre os dedos fechados da mão direita amassava e reamassava o papel. E não tinha mesmo, sorriu com amargura, como se tivesse descoberto uma palavra de consolo. Mas sabe, Lola? Agora estava sentado outra vez, os cotovelos apoiados nos joelhos, o tronco envergado à frente, segurando o bilhete pelas beiradas. No fundo, a gente sabia que ia acabar assim. Um bunda mole, isso é o que eu fui, Assuntinha. Sorriu com ternura para o bilhete fechado. Depois, para Lola. Assuntinha, repetiu entre dentes, com uma dor feito quando se morde a língua.
Pediu para usar o banheiro. Jogou o papel sem abrir no vaso sanitário, mijou em cima e deu descarga.
No cano de esgoto que, por baixo do asfalto, vira numa esquina da Rua Augusta, bem ao lado do hotelzinho discreto, uma ratazana arrasta com o rabo um pedaço de durex e zanza sobre Eu decidi que vamos ser felizes, meu lindo, te espero no posto da Dutra, no Km tal.
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