É no mínimo estranha a sensação de olhar para si mesmo de fora, como se você fizesse parte da lista de personagens de um relato de ficção, como se você, por menos importante que tenha sido seu próprio passado, pudesse bisbilhotar seu próprio passado, pudesse bisbilhotá-lo através do olhar de um terceiro. Essa sensação me atravessou por vários momentos do último fim de semana e continuou na terça-feira pós-feriado, quando na mesa ao lado no café um grupo de rapazes comentava coisas que tinham lido ou visto em reportagens na televisão.
"Acho que foi no Globo Rural", disse um deles, ainda com certa curiosidade diante do que tinha visto. "Naquelas fazendas de café, não havia banheiros dentro de casa, as pessoas levavam jarras com água e também uma bacia para fazer o dois durante a noite", continuou. "Aí, quando usavam a bacia para fazer o dois, jogavam serragem e tampavam".
Eu não me lembro da serragem, mas ainda sinto fugazmente o friozinho das bordas do penico nas minhas pernas de criança fixadas em algum lugar do tempo que consigo memorizar. Eu sou, afinal, um dos personagens da história da mesa ao lado no café. Através dos olhos deles, eu pude me ver num lapso.
A sensação a que me refiro deve ser a mesma daquelas experiências metafísicas em que você dá uma escapada do corpo e pode olhar para si mesmo de fora.
Mas, muito além do metafísico ou mesmo da simples sensação diante de uma percepção inusitada ou à qual você não está habituado, situa-se o aspecto histórico. Geralmente, olhamos para trás como o narrador e poucas vezes como um personagem real da narrativa. Quando nos tornamos um personagem real, rolamos para o limbo da impotência. Estamos lá, metidos em meio ao caos que nos torna simples bonecos de pano pendurados por cordõezinhos cuja origem nos é desconhecida.
No fim de semana, numa extensa e deliciosa reunião familiar, senti vivos os reflexos de uma época sobre a qual não posso mais exercer qualquer função ativa. Todas aquelas passagens, independentemente de seu teor, compõem hoje um arquivo de difícil e complexo acesso cuja senha na maioria das vezes não me vem fácil à cabeça. São, em geral, atos já calcinados pelas intempéries do tempo, embora estejam eternamente vinculados à minha capacidade de interagir com o passado.
Eu tento interagir com esse passado que se pulveriza entre as nuvens do presente e as luzes ralas que procuro não perder de vista lá naquele túnel que chamamos de futuro. Eu tento, mas não é fácil. Porque quase sempre me pego na vez do narrador. As entranhas do personagem, no fim das contas, parecem ser inacessíveis. Porque a sensação de olhar para si mesmo de fora é abrupta e veloz, dura pouco. É como um sonho que dura nada mais do que um segundo. Talvez haja uma explicação científica. Mas acho que é apenas uma defesa que nós mesmos providenciamos inconscientemente. Para nos privar de nós mesmos.
Como disse o rapaz da mesa ao lado no café, “é difícil imaginar a gente dormindo com a merda toda bem ali, não é?”.
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