Descascávamos as laranjas miúdas e doces, e as cascas desprendendo sumo que impregnava as mãos e os braços caíam sobre o capim, onde aos poucos, e com o passar dos dias, misturavam-se ao solo, talvez alimentando suas raízes ou apenas fundindo-se naturalmente com a história de seu bioma, por assim dizer, num sexo elementar em que a terra imemorial penetra o vegetal úmido, ou vice-versa, tanto faz, porque no prazer e na dor a ordem dos fatores não altera o produto, e assim descascávamos as laranjas miúdas com pequenas facas cujo metal dourava-se aos últimos raios de sol espiando-nos por detrás das árvores, e assim morria a tarde devagarzinho enquanto a seiva da fruta escorria por nossa pele, já pertinho da noite, quando a tristeza dos campos mói nossas carnes e lambe de leve os ossos, ao menos essa é a memória agora daqueles dias, da paisagem desmanchando-se minuto a minuto, num grande borrão que me apertava, sei lá, o peito, e avisava, quem sabe, das coisas cegas da vida que uma hora nos chegam como num clarão atômico sem que tivéssemos nos dado conta de suas consequências porque, afinal, nem mesmo dávamos pelota para a possibilidade de sua presença, quem sabe, avisava que ficássemos atentos, que velássemos por todas a vidas, todos os objetos, todas as cascas de laranjas e os mais diminutos torrões de areia, que velássemos por tudo o que nos cerca, pois tudo o que nos cerca é o que nos completa, a Brasília e a Mariana, a Damasco e a Paris, pois tudo o que nos cerca é o que temos, enfim, na vida e na morte, porque na morte, por mais que tenhamos vivido cheios de amigos,cheios de filhos, cheios de gente, na morte seremos só um, ai, que saudade de descascar laranjas miúdas ao cair daquelas tardes tristes que eu encarava feito esperança na tragédia, mas não quero voltar, não, quero seguir, pois acho que depois do atoleiro tem que haver terra firme, sem lama, e com sumo nas laranjas, e com sangue nas veias, sangue correndo nas veias, em Mariana, em Paris, em Damasco.
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