Vítimas do trem noturno

Só mais dez minutos, eu disse baixinho sem quase mover os lábios para que eles não me ouvissem. Apesar de tudo, eu tentava mostrar naturalidade. Juliana apertava tão forte minha mão que chegava doer.

De rabo de olho procurei espiar ambos os lados, e pelo que vi éramos só os cinco, nós duas e eles. Eu sabia que pegar Juliana pela mão e sair correndo não devia ser a opção aconselhável, mas foi a primeira coisa que me passou pela cabeça, sair correndo sem olhar para trás, sem olhar para eles, como um peso arremessado adiante nas olimpíadas.

Mas o grande entrave, a grande merda, é que talvez essa hipótese tão enérgica morresse numa presunção irônica, pois me faltaria exatamente energia suficiente para minhas pernas sustentarem o peso do corpo, tal o pavor que me percorria em ondas como numa cólica de rim: a dor está ali, mas você não sabe de onde vem.

Comecei a formular mil abstrações, uma tarde de sábado com as unhas de Juliana sobre a mesa e eu fazendo aqueles enfeites coloridos que ela adora, eu levando para casa o cachorrinho que Juliana tanto me pede, Juliana lendo pela enésima vez o livro que ela mais gosta, mas nenhuma dessas fantasias que vão se distanciando de nossas vidas malucas colava.

A força integral do meu pensamento, cem por cento de minhas ideias, o rolo compressor de toda a engenharia neurônica afluía para a percepção de que desta vez poderíamos, Juliana e eu, estar no papel de todas as vítimas anônimas dos noticiários da televisão, para quem geralmente olhamos com robótica compaixão enquanto mastigamos o jantar.

Tentando disfarçar ao máximo os movimentos, saquei o celular para enviar uma mensagem de socorro ou algo parecido, talvez eu nem conseguisse formular um período coerente, uma ideia vaga ou mesmo uma dessas medonhas frases truncadas que habitam nossas conversas nas redes sociais.

Mal pude tocar o aparelho, meus dedos tremiam e eu tive a certeza de que ele rolaria pelo chão e me denunciaria, quem sabe antecipando a ação dos três. Desisti de uma vez porque também não era possível soltar a mão de Juliana. Até consegui, mas ela a agarrou novamente um segundo depois.

Minha cabeça parecia girar, o tempo parecia avançar e retroceder simultaneamente. Eu sabia que após o desfecho dessa noite nada mais seria como antes, fisicamente, mentalmente, eticamente ou qualquer que fosse a base em todos os gêneros possíveis que permitam uma análise do antes e do depois de um momento crucial de sua vida.

Olhei o relógio e vi que o tempo caprichava terrivelmente em seu escárnio. Talvez ainda faltassem sete ou oito minutos! A velocidade diminuiu pouco antes da estação seguinte, planejei saltar ali com Juliana, mas não havia uma alma na noite lá fora. Eu estava tão atordoada pela circunstância que por pouco não gritei quando um deles se levantou bem na nossa frente.

Achei que fosse sufocar quando ele resvalou em minha bolsa, não havia mais os dedos de Juliana e os meus dedos, eram corpos únicos, colados, integrados, metamorfoseados em um só organismo amorfo, como nos potes dos laboratórios de ficção científica, por favor, me mate, por favor, me salve, mas a massa humana simplesmente passou por mim e desceu.

Minha respiração era dolorida e lenta, as costas me doíam, o corpo todo latejava, eu procurei esconder ao máximo essa descarga de adrenalina e ao mesmo tempo tentei compreender o que me motivara a pensar que os três estavam juntos, combinados, que faziam parte de um mesmo grupo, uma gangue pronta a atacar, exatamente do tipo que apareceu ontem no Jornal Nacional, dessas que fodem com nossas vidas no meio da rua sem que alguém possa nos salvar.

Mas a nova arrancada, a oscilação do vagão conforme a velocidade aumentava, a noite lá fora, o sentido vertiginoso do nosso destino e, claro, os dois que tinham restado diante de nosso banco, sentados à nossa frente como homens inocentes, cidadãos até que se prove o contrário, tudo isso me devolveu ao pesadelo anterior, à ameaça à nossa integridade física, à escolinha de Juliana, ao apartamento que pretendo comprar em infinitas prestações, ao terror, enfim, de vítimas que vivem a remediar suas dores pela eternidade de sua existência. Na estação seguinte, para minha surpresa, mais um deles saltou.

E depois, na última antes da nossa, o outro.

Faltavam dois ou três minutos para descermos. Sem disfarçar, olhei para os dois lados. Avistei o horizonte quase vazio dos vagões vizinhos. Enfiei a mão livre na bolsa, agora sim segurei com firmeza o celular. Acessei o WhatsApp, vi que havia várias mensagens de casa, de amigos, do grupo de trabalho.

Lembrei do dinheiro guardado num dos compartimentos, abri o zíper como uma tola, como se uma mão invisível pudesse ter se metido ali, apalpei as cédulas, mas eram tão poucas que senti a face incendiar. Dali a pouco o trem iria reduzir a velocidade, mas ainda corria a toda pelos trilhos, vi o rio refletindo luzes distantes, árvores que se reduziam a sombras, um céu invisível mas inequívoco que parecia guardar lamentos e deslumbramentos.

Fizemos o restante do percurso em silêncio, Juliana ainda com as mãos cravadas nas minhas. Eu não tentei dizer nada a ela. Não sei se conseguiria dizer algo a ela, talvez minha voz falhasse feio ou simplesmente não soasse natural ou quem sabe, o que é bem provável, viesse acompanhada de um pranto amargo, amargo de pavor, amargo de medo, amargo de raiva.

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