Moro num bairro rico de São Paulo. Por conta da localização do escritório de trabalho, resolvi pagar um aluguel mais caro e ficar bem perto. Em compensação, economizei em outros gastos com locomoção. E, claro, com saúde. Suportar o trânsito diariamente por aqui é arriscar coração, fígado etc. Faz 21 meses que vim pra cá. E uma das coisas mais perceptíveis nas ruas é o vertiginoso crescimento de uma população invisível para os carniceiros que comandam o país: pedintes, desempregados, moradores de rua.
Nas esquinas, e também entre elas, aumenta diariamente o número de pessoas que serpenteiam sem rumo entre paletós e colares, empobrecendo cruelmente: é a menininha loira que vende guardanapos com enfeites trabalhados manualmente pela mãe, o menino negro que pede um trocado para a marmita, o garoto magro e de olhos tristes que quer porque quer engraxar o sapato, a garota decidida que interrompe meu cafezinho na padaria para pedir um doce, a família que se reveza para abordar a multidão apressada no início da noite, e por aí vai.
Não encontro serenidade. É uma angústia aqui dentro que só vendo. Compro o guardanapo, completo o dinheiro da marmita, mando engraxar, pago o doce, vejo a família conseguir umas moedas aqui e ali, mas sei que nada disso resolve. Qual a perspectiva para essas crianças? Nem adianta mais se referir aos pais delas. Estes estão mortos para o país. Aliás, o país os matou. E agora, com a absurda e mentirosa reforma da Previdência, jogou sobre eles a última pá de cal. Portanto, fiquemos apenas nas crianças.
Elas, as crianças, estão crescendo na rua, pedindo esmolas, humilhando-se sem perspectivas. São sonhos estuprados e abortados. Elas muito provavelmente farão parte da massa clandestina que também se avoluma e marcha firmemente na direção do crime. Parem com bobagens e saibam que não é do coração que vem o que os ingênuos chamam de "maldade". Essa "maldade" vem do estômago.
Isto posto, senhor juiz, requeiro desde já o seguinte:
- Quando uma dessas crianças, transformada e alheia à dignidade da vida humana, me matar por conta de seu terrível mergulho no abismo imposto pelos carniceiros da pátria, evite condenar o que restou de sua infância efêmera e já distante, pois com toda a certeza ela não sabe o que faz. Aplique uma pena cujo fim seja capaz de transformá-la, de dar a ela a oportunidade que nunca teve, apresente-lhe a escola e os livros, a mesa e a comida, o trabalho e a consciência. Abra a ela uma possibilidade.
Peço à minha filha, herdeira talvez de uns parcos recursos, que os divida com a criança que ajudei a criar para me assassinar. À família e aos amigos, uma prece. Não a mim, mas ao adulto que ainda poderão salvar.