Formidáveis mostram-se as perspectivas da felicidade! Ali está, percorrendo a orla da praia de Botafogo, o servidor público Mério Troncoso Patopas. Jamais foi visto mais exultante. – São misteriosos os caminhos do Senhor – recitou, benzendo-se sob sua rígida religiosidade, um colega muito antigo da repartição onde trabalharam juntos por mais de duas décadas. – Caralho! – admirou-se o colega do futebol das quintas. Ambos, e outros, nunca imaginariam Mério Troncoso Patopas num momento de felicidade exposta.
Mas, a despeito dos mistérios da religião ou dos caralhos do futebol, o fato é que o acontecimento aqui está, entre toda essa gente suada do meio do dia. E a mim só resta este pensamento: ser feliz sim, mas nessas circunstâncias?
Tudo começou há poucos meses, no sábado de Carnaval, durante o tradicional desfile de blocos, ali pela hora do almoço. Mério Troncoso Patopas estava debruçado na janela de seu apartamento no quinto andar, quando, bem perto dele, espocaram diversos rojões e fogos de artifício. O mau humor transformou-se em algo lúgubre e, logo, num saltitar estranho que o levou a dar duas voltas pelo quarto até cair, desacordado, na cama.
Vieram a mulher neurótica com a qual ele mal conversava nos últimos tempos a não ser para meter-lhe uns safanões e a enteada sardenta adolescente de quem ele passara a não mais tomar conhecimento desde que ela respondeu-lhe sem papas na língua a uma desarrazoada repreensão.
Vendo-o sem sentidos, chamaram o médico. – Talvez o susto tenha provocado algum trauma, mas ele apenas dorme profundamente – disse o doutor. – Nem mesmo precisaremos aplicar-lhe um tranqüilizante – acrescentou. E os três riram da piadinha, enquanto lá embaixo os foliões botavam o bloco na rua.
Como se Mério Troncoso Patopas não acordasse até o fim da tarde, a mulher neurótica ligou para o amante sarado e avisou que o sábado estava perdido. Às oito, a enteada sardenta adolescente batendo papo pela internet em seu quarto, e a mulher neurótica assistindo à TV na sala, deu-se a barafunda. Mério Troncoso Patopas apareceu nu em pelo e de gatinhas.
A mulher neurótica berrou e a enteada sardenta adolescente logo apareceu correndo. Vestiram o sujeito e o deitaram, mas nada dele ficar na cama. Rosnando e debatendo-se, insistia em deitar-se sobre o tapete, não sem antes dar algumas lambidinhas nos próprios chinelos. Quando, intrigadas, as duas tentaram forçá-lo a subir no colchão, ele latiu gravemente.
Chamaram o médico. – Sem dúvida, uma síndrome rara – constatou o doutor, exalando um indisfarçável cheiro etílico. A mulher neurótica e a enteada sardenta adolescente entreolharam-se. – Vamos deixá-lo no tapete esta noite e ver como as coisas evoluem – animou-se o doutor, deixando rapidamente o local e avisando que estaria à disposição no dia seguinte, caso não houvesse evolução no quadro.
A mulher neurótica acordou no domingo e, com uma das mãos, tocou levemente as costas do marido. Preguiçosamente, ele esticou braços e pernas, soltou um breve gemido e, quase ao mesmo tempo, um peido, e virou-se de barriga pra cima, membros erguidos, a ganir. Primeiro um ganido quase carinhoso, depois um ganido quase uivo, sistemático, e por fim latidos altos e estridentes.
O doutor chegou às dez. – Realmente, uma síndrome rara! – exclamou ao deixar o quarto e dar de cara com a mulher neurótica.
Sem que houvesse profilaxia conhecida para os dias que viriam, decidiram interná-lo. Mério Troncoso Patopas foi para o hospital, a enteada sardenta adolescente desabalou-se a passar o resto do Carnaval com uns amigos não sei de onde e o amante sarado instalou-se em Botafogo.
Os dias correram. O Carnaval acabou. A mulher neurótica voltou ao salão onde trabalhava. A enteada sardenta adolescente voltou a fingir que estudava. O amante sarado voltou para a praia.
Três semanas depois, o médico chamou a família. – Tenho boas e más notícias – começou – e vou dar primeiro a má – avisou. A mulher neurótica e a enteada sardenta adolescente entreolharam-se. – Decididamente, é uma síndrome rara – advertiu pesadamente, os olhos pregados na blusinha que nem esticando podia cobrir os dois peitinhos duros da enteada sardenta adolescente. – Mas posso dizer – voltou-se assustado e sorridente para a mulher neurótica – que nosso paciente está muito feliz.
Tocou uma sineta e, ao seu rumor, adentrou o consultório uma linda enfermeira puxando uma coleira. Logo em seguida, arfante, de shortinho vermelho de bolinhas e camiseta cavada cheia de desenhos com ossos em pequenos laços, Mério Troncoso Patopas saltitou feliz entre o médico e a família.
E agora veja: ali mesmo, ao lado da barraca de água de coco, Mério Troncoso Patopas, de grossas luvas e joelheiras, de quatro, cabeça empinada e bundinha rebolante, vai à reboque da coleira que lhe foi encaixada e agora é puxada pelo amante sarado da mulher neurótica. Perto do Posto Manequinho, ele fareja a calçada e lambe o traseiro descuidado de uma poodle enfeitada de lacinho. Todo feliz, ergue a pata direita na frente de um poste e, pela orla do shortinho vermelho de bolinhas, escapa-lhe o pipi, de onde jorra um mijo dourado que brilha ao sol gostoso das onze.
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