Tremia feito vara verde. Embora nunca tivesse prestado atenção a uma vara verde. Na verdade, conhecia apenas varas pretas. Sorriu para si mesma com um desalento mórbido. Não adiantava fazer graça com a própria desgraça. Caçoar da gente, como receitava a avó, para aliviar a vida. O medo que sentia acossava sua retaguarda, seus flancos, o próximo passo. Vinha de todos os lados. Ela pisava com insegurança como se corresse o risco de desabar a qualquer momento, mantinha-se de cabeça abaixada, o próprio ar parecia pressioná-la como o bafo de um inimigo no escuro. Pensamentos ruins iam passando fugazmente pelo sangue de Índia. Só que nenhum deles podia ser comparado a esta sensação, aqui, no meio da rua. Nem o que sentiu na primeira vez, quando percebeu todos os olhares em cima dela e de seu corpo, de seu jeans apertado, nem quando teve a certeza de sua sorte, nada disso chegou a incomodá-la como agora. Aos trancos e barrancos formulou uma tese que lhe pareceu aceitável. O medo quando a pegaram pela primeira vez era apenas o resultado de um processo natural de seu cotidiano. Quase todas as meninas que ela conhecia também tinham sido subjugadas. Com raiva, lembrou-se de como depositara a desgraça toda na prateleira dos episódios banais de sua existência.
Ela voltava sozinha do culto naquela manhã de domingo. A mãe estava de cama, começando uma longa jornada na companhia de uma dessas doenças que a miséria não revela, e quis que ela fosse. Ela foi. Também lembrou agora, como uma justificativa desnecessária, que o jeans coladinho não se tratava de capricho. A calça havia ficado pequena. Estava desbotada, quase rasgada, como virou moda dali um tempinho. Mas não por outra coisa senão pelo fato de que era a única. Usava e lavava. Usava e lavava. Bem que queria um jeans apertadinho por sua conta, e daí? A poucos metros de casa, havia o bar, uma portinhola escondendo um ambiente escuro e fétido. Nem os frequentadores suportavam ficar lá dentro. Com latinhas de cerveja barata ou copinhos de cachaça, estavam sentados em tijolos ou tocos de madeira em frente ao lugar. Primeiro um deles levantou-se e claramente embriagado abaixou o calção para mijar voltado em sua direção. Índia viu-o esgotar o tanque. Depois, em vez de guardar o pau, começou a massageá-lo olhando para ela. Os outros passaram a rir e fazer gracejos. Ao cruzar com ele sem olhá-lo diretamente, percebeu que ele fingia masturbar-se. Andou o mais rápido que pôde, mas logo o grupo movimentava-se atrás de si, o prepúcio do tempo abraçando a glande da realidade, inevitável. Eram três ou quatro. Sabia que o bairro se cagava de medo deles. Os Varas Pretas. Ou Varapretas. Que diferença fazia no fim para ela?
Índia procurava o endereço com dificuldade. Estava assustada. Nunca estivera num lugar assim. Também não se sentia à vontade para perguntar. Parar alguém e certificar-se do caminho certo. Por experiência própria, sabia que o melhor era resolver seus problemas sozinha. Nada de pedir ajuda, como naquela primeira vez com os Varas Pretas. Ainda sentia o cheiro ácido do quartinho em que a jogaram nos fundos da casa do vizinho. Conseguiu chegar alguns segundos antes deles. Houve tempo de pedir ajuda. Socorro, Seu Juca, socorro. O velho assustou-se, depois pareceu resignado como um pedaço de zinco esquentando ao sol. Índia perguntava-se se ele não podia buscar uma faca, talvez tivesse uma arma escondida. Mas não. Por cima dos ombros dos rapazes que a estupravam, ela conseguiu avistá-lo com o olhar atento desde a porta. Não dava a impressão de alguém indignado. Tampouco aterrorizado. Mantinha apenas uma expressão de curiosidade, ou talvez fosse uma reação afeita àquela coisa que tem um nome chique quando se trata de gente rica, vo não sei quê. Mesmo assim ela não o culpava. Sabia que não havia a quem apelar quando a lei ali eram os próprios homens que a perseguiram e agora a fodiam sem dó. Quem começou foi o mais temido dos Varapretas. A favela toda dizia que ele não respeitava nem crianças nem velhinhas, um traficante, estuprador e não sabia o que mais. A intensidade da dor arrancou-a da realidade. Foi pior para ela. Desde pequena, quando se cortava com os cacos de vidro na rua ou levava choques nos fios descascados das gambiarras que cruzavam os céus entre os barracos, Índia ria. Uma reação inexplicável. E incontrolável. Mas ela ria. Quase morria de dor, mas ria. No quartinho cheirando a mofo, a merda, a cachorro molhado e a restos podres de feira, Bugio arrancou seu sangue. Primeiro pela frente, depois por trás. Índia riu. Bugio sentiu-se humilhado. A cada segundo tornava-se mais violento. Parecia querer que o pau saísse pela sua boca, quem sabe assim ela parasse de rir. Quando o segundo dos Varas Pretas entrou em Índia, ela parou de rir. Não tinha mais reação. Era como a coceira que dizem apoderar-se dos amputados. O Coca Litro arremetia, mas não havia mais nada embaixo dele.
Pelo que lembrava ter visto no Google Maps achou que já estava perto. O problema era o celular, um aparelho tão batido que só às vezes funcionava, quase sempre simplesmente piscava e apagava. Índia não tinha dinheiro para levá-lo a uma daquelas barraquinhas cujos donos fingiam entender de tudo um pouco e para quem você continuava sempre devendo. Desde a morte da mãe, responsável por fazer uns trabalhinhos de resultado duvidoso que mesmo assim davam algum dinheiro, mal conseguia comprar comida. Fazia dois dias vendera a televisão para tentar uma última cartada. E agora ela a jogava. Como tentou jogar no dia do quartinho na casa do Seu Juca. Quando o terceiro ou o quarto Varapreta subiu em cima dela, decidiu fingir-se de morta. Tentou respirar o mínimo possível. Largou-se.
O azar foi que, após algum tempo sem sentir os Varas Pretas dentro de seu corpo, a dor voltou lancinante, e ela sorriu. Não dava mais para fingir a morte, embora a tivesse desejado do fundo da alma quando o Bugio trouxe o menino. Devia ter onze ou doze anos. Você viu o que a gente fez, não viu? Vai lá, agora é sua vez! E abaixou o calção do garoto. Mas ele refugou em sua iniciação. O pau não sobe? Seu brochinha! Tu não é viado, não, é? O irmãozinho do Bugio ficou paralisado. Índia sentia o sangue escorrer nas coxas. Viu o safanão do Bugio no menino. Enquanto ele rodopiava com a mão no ouvido, os Varapretas subiram as calças com indiferença e saíram. O garoto ficou no meio do quartinho, estático. Índia não tinha forças para se erguer. Com esforço, conseguiu puxar a calça para perto de si, como se o jeans fosse uma arma capaz de defendê-la de futuras ameaças. Me ajuda, ela implorou ao menino. Olhou para a porta e o Seu Juca desaparecera, não sabia desde quando. O sol intrometia-se no meio da cobertura de telhas, papelão e zinco. Iluminava o rosto do irmão do Bugio. Ele enxugou as lágrimas na manga da camiseta. Índia também teve vontade de chorar. Em sua cabeça formava-se a ideia de não dizer nada à mãe. O que a velha doente poderia fazer além de contabilizar uma desgraça a mais? Fechou os olhos para enganar a realidade. Tudo ficaria como um pesadelo. Iria lavar-se, ver com alguma das amigas mais escoladas se havia algo a fazer para não ficar barriguda. Nunca tinha levado porra na vida, embora, por necessidade, tivesse aprendido a trepar aos doze anos. Vacilar não era com ela. Abriu os olhos, o menino tinha se aproximado. Como um bicho acuado, bufava bem acima de sua cabeça, onde jorrou aquele líquido quente e espesso que, no lugar de lágrimas, inundou as pálpebras de Índia.
Passou as costas das mãos sobre os olhos, como se fosse possível limpá-los retroativamente. Percebeu que estava suando muito. No entanto, não sentia calor nem nada. Rolava na rua como uma daquelas sacolas plásticas que sobrevoam a favela em dias de vento. É o medo, pensou. Que boba eu sou, pegou-se dizendo, depois de tudo. Tentou acalmar-se à sombra de um pequeno arbusto. Aproveitou para dar uma olhada nas condições do celular. O aparelho deu sinal de vida. Confirmou que já estava chegando e à sensação de medo juntou-se a mesma dor de outro dia, quando a mãe soltou sua mão e não respirou mais, a dor do desconhecido, que a fez rir daquele jeito, a vizinha dizendo cruz credo, menina, mas não era alegria, Dona Maria, é uma coisa que me dá. Sempre dava. Durante a noite toda, o caixão da mãe ali e ela rindo de hora em hora. Era a dor. Olhavam-na enviesado, as duas ou três mulheres que se dispuseram a passar a noite com ela. A mesma dor de depois do enterro. Ao voltar para casa, avistou Bugio um pouco antes de chegar. Não havia uma alma viva por ali, onde estavam todos? Ele vinha no sentido contrário, e Índia começou a tremer e suar, as entranhas doíam-lhe como se os Varapretas estivessem novamente em cima dela. Esfregou as mãos pela cintura para certificar-se de que tinha colocado o vestido, e não o jeans apertadinho. Sentia o corpo umedecer-se, brotava água de todos os poros, movia os pés ao encontro de Bugio como se os arrastasse, imaginava a poeira subindo à sua passagem, a terra grudava na parte interna das coxas, solidificava o suor, endurecia as pernas, que pesavam mais e mais a cada segundo, o sol a fulminava e parecia derretê-la, e era o que ela mais desejava naquela hora, ser derretida pelo sol, escorrer alguns metros pela areia suja de lixo e merda de animais e simplesmente extinguir-se num ponto qualquer diante de um barraco qualquer, onde um cachorro viesse e mijasse em cima. Quando Bugio passou por ela, a dor havia atingido um grau insuportável, e ela não pôde segurar a abrupta explosão de um riso tão alto que pareceu insano àqueles olhares surgidos detrás de portas frágeis abrindo-se em rugidos esparsos.
Agora, Índia lutava com desespero contra o medo e a dor. Na hora em que abriram a porta, ela conteve a tempo o ímpeto de correr, fugir dali, abandonar no meio do caminho a cartada decisiva, voltar para a proposta do Seu Juca, inicialmente indecorosa, mas que já parecia soar algo razoável. O que custava no fim das contas uma chupada a cada dois ou três dias em troca de um abrigo, ainda mais de tijolos e telhas? Vendo aflita que a blusa emprestada de Nalva oscilava com as estocadas do coração, seguiu a passos curtos o homem desconhecido que a atendeu na portaria. Deixou-se levar, por assim dizer. O ar limpo e perfumado parecia apertá-la com a força de uma grande serpente. O ambiente claro e iluminado a sufocava. A maciez do sofá espetava suas coxas e a fazia remexer-se a todo instante. Mal acreditava que pudesse ter feito o trajeto todo. Desde que tomara o segundo ou terceiro ônibus, não conseguia lembrar agora, parecia ter adentrado um pesadelo estranho. Ao mesmo tempo em que queria voltar a qualquer custo, ia em frente. Era como uma dessas areias movediças que via em filmes. Quanto mais desejava fugir, mais afundava. Até meter-se de cabeça e tudo naquela geleia extravagante. As calçadas, as pessoas, os carros, os prédios. Todas as sombras dobravam-se sobre ela de modo ameaçador desde que descera do ônibus no bairro chique. Até os cães de lacinhos em carrinhos de bebê. Tudo mesmo!
Levantou-se de repente ao ouvir a voz pausada diante de si. Uma mulher que parecia ter saído da novela das nove falava ao telefone sobre a exposição de um doutor, Doutor Cavablanco, se ela tinha entendido bem. É um pouco estranha, mas vale a pena, disse sorrindo a alguém do outro lado da linha. Falava ao celular e com Índia ao mesmo tempo. A Nalva, que trabalha aqui na faxina, te indicou. Índia quis responder que sim, senhora, isso mesmo, a Nalva. Ela é da minha comunidade, sabe? A senhora está vendo esta blusa? Foi ela quem me emprestou pra eu vir assim arrumada. A Nalva é minha amiga desde pequena, se a senhora soubesse de tudo que a gente já passou junto, mas deixa pra lá. Ela sempre dizia que eu devia procurar emprego aqui. Lá até as baratas são bonitas, a Nalva me disse, parece que são enceradas, chegam a brilhar. Dá até vontade de enfiar uma na bolsa e levar pra casa. A Nalva me falou que aqui tem crianças pra olhar e coisas a dar com pau pra limpar por tudo, mas eu não podia deixar minha mãe de cama sozinha lá em casa. Não sei se a senhora soube, ela morreu outro dia. Descansou, coitada. É a vida. Sentindo os olhos arderem, Índia de repente pensou se tinha mesmo dito essas bobagens todas à mulher bonita e bem vestida que a observava feito o Seu Juca naquele dia no quartinho dos fundos. De todo modo, estava tão úmida, quente e trêmula que seria difícil algo piorar para si, era como se estivesse variando em febre, como dizia a avó. Tanto fazia se tivesse dito ou não. Você trouxe um currículo, ouviu que a mulher perguntava. Mas Índia agora estava sem fôlego de tanto rir.
* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
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