Incidente no 21

Havia se mudado para a Rua Iguatemi poucas horas antes de levantar-se e ir ao banheiro. Assim que começou a urinar, ouviu em meio ao silêncio escorregadio da madrugada idêntico ruído no apartamento de cima: líquido esguichando contra líquido, depois a descarga. Exausto, caindo de sono, enxugou as mãos na toalha presa ao suporte sobre o lavabo enquanto pensava que coincidência pode ser sinal de sorte. Sorriu para si mesmo, mas teve um sobressalto ao derrubar o suporte de metal. Nada demais quanto ao pequeno incidente, a não ser pela nítida impressão de ter ouvido barulho semelhante acima de sua cabeça. Esperou por alguns segundos sem mover-se, abriu e fechou a torneira, derrubou novamente o suporte, desta vez propositalmente, apertou mais uma vez o botão da descarga, mas tudo que pôde ouvir foram os ruídos causados por ele mesmo. Depois dormiu.

Três noites mais tarde, pegou-se subindo pela escada portátil em busca de uma câmera escondida em algum ponto do teto, nas junções das paredes, nos suportes das lâmpadas, atrás de quadros ou da estante de livros. Desde a madrugada anterior, quando saíra bruscamente de cima da loirinha do 69 porque ouvia os gemidos do próprio êxtase caindo no ambiente, ele não conseguia mais dormir. Nem trepar posso mais, tinha se levantado e andava em círculos olhando com raiva para a garota, que por sua vez olhava com medo para ele. Lembrava-se dela saindo na direção do banheiro e de lá, sem despedir-se, para fora. Sentia-se amargo, estava tomado por uma paranoia, no mínimo pela ideia fixa de estar sendo vigiado, talvez tivesse se transformado em vítima de uma brincadeira de mau gosto ou de uma espionagem cuja possível utilidade não compreendia. Suas hipóteses embaralhavam-se no rastro das sucessivas coincidências. Os reflexos de seus movimentos pareciam reproduzir-se no apartamento de cima, talvez um ou dois segundos depois, talvez simultaneamente, ele na verdade não sabia mais dizer.

Sentou-se na beirada da cama e respirou fundo, apanhou o telefone celular e pensou em ligar novamente para a garota do 69. Entretanto, quase sem perceber, discou para a mãe. Ela atendeu assustada. Só então ele viu a hora adiantada, pediu desculpas, não é nada, eu só queria dar um alô. A mãe disse-lhe de modo divertido que um alô desses poderia custar um belo ataque do coração. Ele esforçou-se para rir. Aproveitando, ela perguntou-lhe das dores de cabeça, se havia voltado ao Doutor Cavablanco, mas ele pediu um minuto, mamãe. Olhou para o teto com um arrepiozinho na nuca, ficou em pé, puxou a escada para perto, certamente não estava enganado. Assim como os gemidos da outra noite, desta vez ouvira a repetição de seu sorriso, chegou a sentir aquela sensação estranha de quando nossa própria voz reverbera numa gravação, mas agora ouvia apenas o alô, filho, alô, você está aí, o que aconteceu...

De manhã, ao sair para o trabalho, procurou informar-se com o porteiro sobre o 31, mas o velho pareceu-lhe indisposto e de pouca conversa, dirigindo-se a ele com semblante desconfiado ou como se, apesar de um esforço descomunal, não pudesse compreender qualquer uma das perguntas formuladas. No entanto, assustou-se ao saber que o sujeito do 31 tinha acabado de chegar, fazia três ou quatro dias. No trabalho, passou o tempo todo com a ideia da espionagem crescendo e pressionando-lhe os miolos. Pensou em ligar para o Doutor Cavablanco e pedir-lhe ao menos uns comprimidos que pudessem sossegá-lo, precisava dormir bem por algumas horas. Mais tarde, entretanto, desistiu. Sentia-se atordoado pela sensação desconfortável de estar superestimando uma bobagem de sua cabeça, embora continuasse a rememorar os ruídos em sequência e sua própria risada pairando duplamente sobre o quarto.

À noite, quando o silêncio sobrepôs-se a tudo, tentou auscultar o ambiente, mais uma vez subiu na escadinha, se pudesse colaria o ouvido ao teto. Deitou-se na cama pensativo e angustiado, entregando-se a planos ridículos para tentar surpreender o adversário invisível. Primeiro assobiou para as paredes, depois arrotou alto e esperou. Soltou um ruidoso peido e do mesmo modo aguardou em vão a sonoridade dos ecos que o enlouqueciam. Estava cansado demais e pegou no sono em seguida. Teve pesadelos horríveis. Subia os degraus da escada portátil com dificuldade, as pernas pesavam toneladas, era preciso erguê-las com as próprias mãos até chegar ao topo, então o teto começava a ceder sobre sua cabeça. Despertou feito uma toupeira, esforçando-se para enfiar a cabeça no travesseiro.

Levantou-se para trabalhar já com o ruído dos ônibus e dos veículos logo abaixo de sua janela. As conversas na calçada ampliavam-se àquele irritante alarido das manhãs da metrópole. Dormira mal e estava de mau humor, mas ao mesmo tempo pensava na vantagem de ter se livrado da paranoia por uma madrugada inteira. Fazia a barba quando o aparelho escorregou-lhe da mão, resvalou na pia e desmontou-se no chão, criando sucessivos reflexos sonoros que pareciam, novamente, cair do teto. E assim não pôde mais suportar.

Tomado por um acesso de fúria, atirou-se às escadas, subiu os degraus de dois em dois e quando deu por si preparava-se para socar a porta em cujo centro um olho mágico parecia fitá-lo com indiferença. Por um instante sentiu-se zonzo, as têmporas latejavam, as pernas bambeavam. Respirou fundo, apoiou-se aos batentes da porta e chacoalhou a cabeça como se com o simples movimento pudesse retomar o sentido das coisas. Tentou ensaiar mentalmente um diálogo coerente com o vizinho. Desistiu de chamar. Apesar de tudo, não desejava ser tomado por louco. Tinha ao menos a consciência dos absurdos acontecimentos dos últimos dias. Quem, afinal de contas, podia dar algum crédito a ele?

Desconcertado, desceu lentamente um a um os degraus, ouvia um zumbido penetrar-lhe os tímpanos e rodopiar lá dentro como um redemoinho sinistro, era como se a cabeça tivesse se transformado em casa de abelhas. Abelhas agressivas. Apoiou-se na parede para entrar em seu apartamento. Sentiu-se estúpido ao checar o número. Respirando mal e mal, ouviu que alguém descia as escadas. Apressou-se a trancar-se por dentro feito um fugitivo. Estava com a toalha amarrada à cintura, sem camisa. Dois grossos fios de suor desciam-lhe até o queixo e depois pingavam no peito. Esperou alguns segundos encostado à porta com os olhos fechados. Depois virou-se devagar para ver lá fora pelo olho mágico. Exatamente aí alguém se preparava para bater, mas ele já não sabia quem estava dentro e quem estava fora.

* Conto integrante do livro "O criador de tudo" (não publicado)
* Para ler "Cachecol", que faz parte do mesmo livro, clique aqui
* Para ler "Índia", clique aqui
* Para ler "Mãos à obra", clique aqui
* Para ler "Aparição no Rio Pinheiros", clique aqui
* Para ler "Núpcias", clique aqui

Tags:

3 Responses to “Incidente no 21”

  1. […] * Conto in­te­grante do li­vro “O cri­a­dor de tudo” (não pu­bli­cado) * Para ler “Ín­dia”, que faz parte do mesmo li­vro, cli­que aqui * Para ler “In­ci­dente no 21”, cli­que aqui […]

  2. […] * Este conto in­te­gra o li­vro “O cri­a­dor de tudo” (não pu­bli­cado) * Para ler “Ca­che­col”, que faz parte do mesmo li­vro, cli­que aqui * Para ler “In­ci­dente no 21”, cli­que aqui […]

  3. […] do li­vro “O cri­a­dor de tudo” (não pu­bli­cado) * Para ler “In­ci­dente no 21”, cli­que aqui * Para ler “Ca­che­col”, cli­que aqui * Para ler “Ín­dia”, […]