Tulipa amava Pedro que amava Luiza. Tulipa era irmã de Pedro. E Pedro, noivo de Luiza. Mais do que a própria noiva, Tulipa parecia eufórica à medida que se aproximava a data do casamento. Ligava quase todos os dias depois de voltar da faculdade.
“Você vem hoje?”, animava-se enquanto erguia as pernas e esfregava os pés um no outro, deitada de bruços em sua cama.
Luiza vinha. Ficavam trancadas no quarto até altas horas, menos nas folgas de Pedro.
“Quanto amor!”, brincava a mãe, arrastando os chinelos pelo corredor, o pensamento voltado à ideia de que desta vez tudo daria certo para o filho, Deus queira, Deus queira.
“Às vezes sinto um aperto aqui”, Luiza levava a mão ao peito.
“Para com isso, sua boba”, Tulipa apressava-se a tranquilizá-la e também ela própria pousava a mão sobre o peito de Luiza.
Tulipa sorria e, de frente para a outra, ambas sentadas sobre os calcanhares na cama, pedia-lhe para não pensar em coisas que não lhe diziam respeito. “O que passou, passou, não dá para mudar.”
A noiva, então, procurava afastar-se daquele presságio quase inevitável depois de tudo o que soubera.
Faltava menos de um mês e, enquanto crescia a ansiedade de Luiza, Tulipa mergulhava na intensidade de seu amor por Pedro, revelando à cunhada tudo que sabia a respeito do irmão, e mais que isso: ampliava íntimos detalhes de seu comportamento, desde quando eram crianças e dormiam juntos feito namoradinhos. Ao ouvi-la, Luiza não conseguia disfarçar o rosto em chamas, trespassado ao mesmo tempo pelo constrangimento e pela excitação. As razões estabelecidas pelo rigor de sua criação familiar combatiam seus instintos, ao passo que Tulipa agia como se estivesse falando de suas aulas no laboratório de farmácia, depois ria alto e esperava para ouvir a mãe bater à porta, que já era tarde, menina!
“Coisa de crianças, bobinha”, Tulipa beijava o queixo de Luiza, “se bem que às vezes eu sentia aquela coisinha crescer”, voltava a gargalhar enquanto via a vermelhidão acentuar-se e avançar pelo pescoço da outra.
Em seu quarto, já deitada, mas sem fechar os olhos, a mãe lutava contra o implacável espólio familiar do qual não conseguia fugir. Ouvia novamente as vozes de Joana e Bárbara, a rouquidão de Joana e a estridência de Bárbara, suas risadas, seus gritinhos e até suas tosses quando riam demais, cada uma a seu devido tempo, junto com Tulipa. Luiza parecia ser bastante diferente das outras, quase não se ouvia sua voz, eram só os arroubos de Tulipa, de modo que a mãe obrigou-se a pensar que também o desfecho do velho filme seria outro. Para tranquilizar-se, recuperou as imagens memorizadas dos filhos desde pequenos, pormenores de passeios, o bigodinho de Pedro lambuzado de sorvete, a mão de Tulipa engessada depois de cair da bicicleta, os dois crescendo juntos, dividindo felicidades, admirados e invejados por serem tão companheiros. Novamente um tanto perturbada, pensou na importância de Tulipa para Pedro nas ocasiões dos acontecimentos. Se não fosse ela... Virou-se na cama na tentativa de fugir de uma longínqua ideia da qual não se atrevia a aproximar-se.
Pedro ganhou uma folga e veio para casa. Antes de entrar sentiu os olhares pesados dos vizinhos. Fingia não perceber, disfarçava a tensão persistente que crescia aos poucos, respondia aos cumprimentos com a naturalidade que julgava ser possível, sim, sim, daqui a duas semanas, obrigado, obrigado. Por dentro, no entanto, uma corrente opressora minava seu ânimo. Sim, pensava consigo, vocês ocultam sua verdadeira face atrás de máscaras mal acabadas, mas eu também visto a minha, talvez do mesmo modo ineficiente para este projeto hipócrita, e assim vamos adiante neste drama infalível, cada qual procurando esconder do outro a essência de seu propósito, no entanto sem poder escondê-la de si mesmo. Só a muito custo conseguia ultrapassar a contrariedade que inevitavelmente instalava-se em seu âmago. “De braçada em braçada”, ensinava-lhe o Doutor Cavablanco a cada consulta. “Você deve aceitar-se para compreender-se e então agir com a razoável perspectiva de controlar a si mesmo”. Esforçou-se para lembrar as fórmulas aspergidas com segurança pelo terapeuta, conquanto uma sensação desconfortável de constrangimento insistisse em lembrá-lo daquela condição a dificultar-lhe a desejada compreensão de seus atos, limites e fraquezas.
Os quatro jantaram juntos, depois Pedro e Luiza foram ao cinema. Tulipa trancou-se no quarto para entregar-se às fórmulas e anotações de suas experiências acadêmicas. Da sala, vendo tevê, a mãe ouvia o tilintar de vidrinhos e metais. Seu coração apertado fazia-a rezar enquanto as novelas passavam por ela como imagens disformes e distantes.
“Não aguento mais”, disse Luiza quando faltavam dois dias. “Você precisa me contar como foi”.
Estavam, como sempre, sentadas sobre os calcanhares na cama de Tulipa, uma de frente para a outra. Ouviam um rock qualquer e de vez em quando respondiam a bobagens pelo celular. Luiza havia colocado as duas mãos sobre os ombros da cunhada. Tulipa sorriu daquele modo que sempre transmitia serenidade a Luiza, mas teve a clara percepção que desta vez seria difícil convencê-la a deixar de lado todos os fantasmas habituados a frequentar a casa, a vizinhança, o bairro todo.
“Estou pensando até em procurar ajuda médica”, Luiza deixou os braços caírem no redemoinho de sua inquietação.
“Não pense mais nisso, sua boba!”, Tulipa segurou-a pelas mãos, ela mesma tentando afastar-se do ralo indesejado que ameaçava sugá-las como nas outras vezes. “O que aconteceu a elas não tem nada a ver com você”, sorriu com os olhos cheios de lágrimas.
A mãe foi até o corredor ouvir o esforço da filha para que Luiza esquecesse tudo aquilo (“Besteira, sua boba”), mas as palavras chegavam-lhe entrecortadas (“Coincidências da vida”), precisou dar mais dois ou três passos em direção ao quarto para compreender também a outra (“Foi loucura?”), e mesmo assim era difícil decifrar as frases (“Algo assim”), sabia do que estavam falando (“Tão perto do casamento”), arrepiava-se só de pensar (“Aconteceu, é passado”), e sem que percebesse já estava rezando outra vez (“Tenho medo”).
Na noite anterior à cerimônia, a mãe fechou-se no quarto, mas contra seu desejo os sons desta vez pareciam brotar do teto numa dimensão insuportável, ela podia tapar os ouvidos com as mãos ou com os travesseiros, e mesmo assim ouvia o breve assombro de Luiza num bramido rouco (“Por quê? Por quê?”), o angustiante e lascivo convite de Tulipa (“Vem você também, querida”) e a dolorida resolução de Pedro, cuja sofreguidão beirava o pranto, atravessava paredes e internava-se no peito póstumo da mãe, e a mãe lembrou-se com desgosto do orgulho com que dizia amorosamente a todos que seus filhos não faziam nada separados. Nada, nada...
* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
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