Arrebentação

Murilo trabalha numa multinacional de respeito. Nos últimos anos, para atender às novas exigências de mercado, uma moderna gestão reduziu os quadros da empresa e implantou o que, nas reuniões, os executivos chamaram de mecanismos inéditos de produção sob a chancela de uma revolucionária metodologia baseada em parâmetros de grandes conglomerados chineses. Claro que, no fim das contas, cresceram as exigências por mais empenho e comprometimento dos colaboradores (termo sub-reptício empregado para amenizar as disparidades socioeconômicas entre os que mandam e os que obedecem, igualando-os fantasiosamente dentro da engrenagem profissional, segundo explicou Murilo a amigos num tom entre divertido e resignado, já com os lábios entorpecidos pelo uísque semanal).

Murilo não escapou ao rígido controle que visa assegurar maior produtividade por meio de uma agenda proativa cujo pilar transformador abriu definitivamente a fronteira ente ambiente de trabalho e atuação remota, invadindo a casa, a família, os amigos e a cama. No início, suportou razoavelmente bem os efeitos colaterais. Entupia-se de comprimidos para enxaqueca, ansiedade e dores musculares. Avisou que "por um tempo" precisaria ocupar-se mais com as coisas do escritório. E assim foi levando, até que percebeu reações estranhas ao seu comportamento. Às vezes olhava para os dois filhos pequenos e uma onda de raiva perpassava seu sangue, eles não lhe concediam um minuto de paz, mal conseguia suportá-los nos breves intervalos domésticos. A relação conjugal também tinha piorado com a perda gradativa do que no ouvido de Maísa, falando baixinho, ele nominava furor do desejo.

Havia ainda outras coisas. Por uma bobagem qualquer quase saiu no braço com um amigo de longa data, além de ter brigado com a Dona Antonia, a mulher doce responsável pela limpeza do escritório. Decidiu procurar ajuda médica. Ouviu do Doutor Cavablanco o que ele mesmo já previra. Ou se afastava do ritmo infernal em que havia se metido ou corria o risco de conhecer literalmente o inferno. Esses termos são de Murilo, não do Doutor Cavablanco, que passou a acompanhar seu estado a partir de então.

Na semana passada, Murilo finalmente tomou uma decisão.

Ontem, por volta das nove da manhã, disseram tê-lo visto nadando de costas na Enseada, no Guarujá. Maísa recebeu a mensagem de uma amiga pelo WhatsApp: “Vocês estão de férias aqui e nem avisam?”. Não se trata de um caso de polícia, é verdade, pois todos os dias Maísa recebe algum sinal de vida pelo celular. Todos sabem o que está se passando. No primeiro dia, quando Murilo não voltou para casa, Maísa permaneceu ríspida e contrariada por algumas horas. Depois começou a avaliar a hipótese de uma crise, conforme previra o psiquiatra. Isso a comoveu e a fez chorar escondida durante o banho enquanto pensava na melhor atitude a tomar. No entanto, depois de colocar as crianças para dormir, veio o primeiro sinal de Murilo: “Estou bem”. E mais nada até o dia seguinte. Maísa dormiu mal, acordou mal e passou mal durante toda a manhã. Apreensiva e indignada, sentia-se impotente e enfrentou momentos de raiva, mas acabou sentindo pena de Murilo, e isso aplacou seu rancor.

“Continuo bem”, Maísa leu na tela do celular pouco antes da vontade de atirar o aparelho pela janela do quinto andar. “Continua bem?”, alterou-se. “Continua bem?”, enfureceu-se, chamando a atenção de outros dois colegas de trabalho. Ele passa a noite fora, não aparece desde ontem e tem a coragem de mandar um aviso com duas palavras? “É SÓ ISSO QUE VOCÊ TEM A ME DIZER?”, digitou raivosamente em letras maiúsculas. Não satisfeita, negritou a frase antes de enviá-la.

“Sim”, ele respondeu duas horas mais tarde.

Havia saído apenas com a roupa do corpo e algum dinheiro para a viagem à praia. Deixara o carro no estacionamento da empresa. Qualquer responsabilidade além de carregar a si mesmo era um incômodo insuportável. Se pudesse, abandonaria a própria roupa por aí. Queria ver-se livre de todos os pesos imagináveis.

“Você está bem?”, escreveu Maísa, à noite, já em casa. Havia tomado um pouco de vinho e sentia-se mais calma

“Estou”.

“Onde você se meteu?”, pelo menos foi rápido desta vez, pensou Maísa.

“Por aí.”

“Como assim, Murilo? Por aí onde?”

“Tanto faz.”

“Você precisa voltar”, ela tentou manter aprisionada toda a fúria que sentia ferver dentro de si.

“Para quê?”

“Para resolvermos as coisas”, Maísa respirou fundo.

“Deixe tudo como está.”

“Você ficou louco de vez?”

“Acho que não.”

“Pois então pense um pouco e volte para cá.”

“Prefiro continuar assim por enquanto.”

“Assim como?”, tomou um longo gole da bebida sem quase senti-la descer.

“Assim.”

“Você não sente ao menos saudade dos meninos?”

“Não agora.”

“De mim?”, sentiu um nó na garganta.

“Não agora.”

“Vamos falar com seu médico”, pensou em ligar para o Doutor Cavablanco, estava começando a desesperar-se.

“Não é preciso.”

“Me diga onde você está, por favor.”

“Tanto faz onde estou.”

“Você acha que é só você que”, Maísa deixou a frase pelo meio, teve um branco repentino, uma vontade de chorar que a fez derrubar o celular.

“Não.”

“Eu também me sinto pressionada, e nem por isso fujo!”, conseguiu escrever.

“Obrigado por isso.”

“Pense que, em vez de você, poderia ser eu.”

“Você terá sua chance.”

Maísa considerou-se sem forças para continuar.

Saiu do mar depois de uns quinze minutos seguidos de boas braçadas. Ao sentar-se ao sol, deixou o corpo escorregar até as costas tocarem a areia quente. Tentou manter os olhos abertos, mas a claridade ofuscava tudo acima dele. Era um dia límpido, não havia nuvens, e o ar cheirava a algas, protetor solar, sal, preguiça... Esticou as pernas e cruzou as mãos na nuca. Depois deve ter dormido por um bom tempo, pois despertou com fome, o rosto queimava. A roupa continuava exatamente ali, ao seu lado. Enfiou a mão num dos bolsos com certa apreensão e encontrou dinheiro suficiente para o almoço. Foi até uma barraca com a calça e a camisa penduradas nos ombros, estava de cueca, mas era uma cueca que podia perfeitamente passar como sunga. Além do mais, ele estava pouco se lixando para essa circunstância banal de sua súbita excursão. Tanto fazia.

Comeu um pastel enquanto esperava pelo peixe frito, que regou com um bonito limão. Deu para comprar também uma latinha de cerveja, e então só restaram algumas moedas. Bebeu dois ou três goles com uma boba satisfação. Comeu a salada e o peixe saboreando um prazer que havia esquecido. O sol rodeara a barraca e começava a incomodá-lo. Sentiu a pele arder. O garoto que o serviu levou a bandeja com os restos de comida. A latinha também já estava vazia. Mesmo assim levou-a aos lábios. Grãos de areia estralaram entre os dentes. Tomaria outra cerveja, sem dúvida. Vasculhou os bolsos novamente, mas não havia mais dinheiro. Perguntou ao dono da barraca se podia guardar sua roupa por um tempinho e antes que o outro respondesse já estava a caminho do mar.

A água fria lambeu sua pele avermelhada e ele arrepiou-se inteiro, teve vontade de urinar e urinou. Lembrou-se divertido de uma reportagem que lera sobre os benefícios da urina para o mar. Riu consigo mesmo enquanto aliviava-se com a água até a cintura. De uns vinte metros mar adentro, avistou a praia repleta de banhistas e vendedores ambulantes, pareciam carnavalescos salpicados de lantejoulas, todos brilhavam de algum modo a distância. Todos, pensou com a preguiça de um raio de sol, escondem seus ranços familiares, o desalento profissional, o arrependimento por não ter tomado aquela atitude, a inveja do amigo ou o tesão pela mulher dele. Quis rir, mas estava amolecido demais e apenas percebeu os lábios abrirem pequenos sulcos que arderam. Alguém ali adiante, Murilo assustou-se por um momento com a própria ideia, tenta esconder de si mesmo a vontade inconfessável de rasgar o mundo em fatias e ficar com uma das partes só para si. Pescou uma gota de suor nos lábios. Decidiu permanecer assim, com a água até o pescoço para não se queimar ainda mais. Bem perto dele um surfista nadou com sua prancha, barcos e velas oscilavam mais adiante, o barulho das ondas traçava planos de uma poderosa terapia, pensou, a água espalhando-se na areia confundia-se aos poucos com o alarido das vozes, como se a orquestra encerrasse continuamente o mesmo número e os espectadores insistissem em sempre comentá-lo. Nadara um pouco mais e agora podia flutuar numa parte calma do mar, após a linha da arrebentação, sem lutar contra as ondas a carregá-lo a todo instante na direção da praia. O céu era de um azul inesquecível. Manteve-se à flor d’água por um bom tempo antes de nadar de volta.

O garoto da barraca entregou-lhe as roupas, o sol havia caído um pouco, a sombra já tomava uma larga faixa da areia, escondendo corpos e esfriando pensamentos. Sentia fome de novo, mas dava para aguentar até mais tarde. Pediria algo na simpática barraca, inventaria uma desculpa qualquer, “perdi meu dinheiro”, sorriu baixinho e balançou a cabeça. Entretanto, a mendicância não fazia parte de seus planos. Ofereceu-se para ajudar a servir, o dono poderia compensá-lo com um sanduíche e uma cerveja no almoço e à noite. Mesmo desconfiado, o barraqueiro aceitou a proposta. Depois do expediente, dormiu por ali mesmo. Foi assim durante todos aqueles dias. Não havia com o que se preocupar. Ele não tinha nada que pudesse interessar a quem quer que fosse, nem mesmo o celular, que provisoriamente deixara com o Doutor Cavablanco antes de viajar.

* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
* Para ler "Índia", clique aqui
* Para ler "Cachecol", que faz parte do mesmo livro, clique aqui
* Para ler "Incidente no 21", clique aqui
* Para ler "Mãos à obra", clique aqui
* Para ler "Aparição no Rio Pinheiros", clique aqui
* Para ler "Núpcias", clique aqui
* Para ler "A casa de Montevidéu", clique aqui

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