Trouxeram-lhe a bebida, mas Natália mal notou. Estava tão absorta pelo ambiente e, claro, pela música, que disse “obrigada” quando o garçom já tinha desaparecido. Observou com curiosidade as silhuetas dançantes sob as poucas luzes instaladas próximas ao teto elevado e estiloso, cujas telhas francesas entremeadas por algumas de vidro filtravam um pouco da claridade externa, às vezes até mesmo a lua alta e cheia. Tudo parecia como antes, pensou ao dar uma olhada geral pelas dependências. Talvez a maior diferença estivesse situada nela própria, rodou o copo entre as mãos com uma mistura de nostalgia e apreensão. Queria evitar uma comoção estúpida, mas ao mesmo tempo sentia o peito contrair-se, o coração batia levemente descompassado à medida que sua respiração oscilava. Molhou os lábios com a esperança de resgatar a estabilidade emocional, mas o máximo que conseguiu foi sentir o álcool queimar a garganta, depois um calorzinho entusiasmou-a momentaneamente. Perguntou-se se teria tomado a decisão certa. Virou um trago e tentou avistar o palco. Sentara-se bem lá atrás, o velho bar estava lotado e muita gente dançava na pista e entre as mesas.
Sim, tudo estava igual. Menos ela. Pegou-se na brevidade de um sorriso bobo. Havia, na mesa bem à sua frente, duas garotas beijando-se, de repente pararam e caíram na risada, dobraram-se com as mãos na barriga, em seguida juntaram-se de novo, beijaram-se e pararam para gargalhar. Ela também voltou a rir, depois passou a língua entre os lábios, sentindo-os úmidos, não era sua intenção enfiar o pé no passado, mas era mais forte do que ela, as meninas rindo sem parar e de vez em quando trocando beijos e carícias, o mesmo ambiente, todos aqueles sons de blues, soul, funk, os balanços que as embalavam e que marcaram seus encontros e desencontros, a voz de Tatiane como antes, tão perto dela, tudo conspirava a favor das lembranças.
Esticou o pescoço por sobre os corpos ritmados para vê-la inteira, mas havia muitas pessoas entre o palco e sua mesa. Talvez, pensou, fosse melhor assim. Não podia imaginar a reação de Taty. De repente assustou-se ao calcular o vácuo aberto em suas vidas. Cinco anos não são cinco semanas. Mesmo com todos os ruídos paralelos, podia perceber que a voz continuava bela, aquela rouquidão própria do estilo escolhido por Tatiane antes mesmo de ser convidada a segurar o microfone pra valer. Sentiu um arrepio percorrer a nuca, era capaz de jurar tê-la ouvido ali mesmo, ao seu lado, falando baixinho em seu ouvido: “Você é bacana, Naty”.
"Você é bacana, Naty", explorou cada uma dessas palavras como se pudesse beijar seus fonemas ou sentir a tepidez daquela voz, o sorriso bobo insistiu em seus lábios. Levou o copo à boca, os pensamentos insinuando-se nas brechas do tempo, "Você é bacana, Naty, mas acho que vai me deixar uma hora dessas". Fechou os olhos e viu o rosto de Taty bem diante de si, "Você vai me deixar uma hora dessas", "Você vai me deixar uma hora dessas". Aquilo se transformara em obsessão. "Não é nada disso, sua boba", dizia-lhe. "Mas um dia vai ser inevitável", ouvia Tatiane lamentar.
Encontravam-se no White Horse uma ou duas vezes por semana, era o máximo que conseguiam. "Meu pai está em cima", ouviu um resíduo da própria voz perdida no ambiente desde aqueles tempos. "Eu sei", Tatiane procurava apoiá-la. "Foda-se ele, foda-se tudo", Natália socava a mesa, "a gente vai dar um jeito". Os lábios de Tatiane entreabriam-se num sorriso incerto de admiração ou resignação. Não respondia nada, lembrou-se Natália, não dava corda às suas bravatas, apenas cobria sua mão com a dela disfarçadamente sobre a mesa.
Os tempos eram outros, pensou, invejando as meninas que continuavam a se divertir na mesa em frente. Pediu mais uma dose. Bebeu bastante água. Não pretendia ficar muito alta, não entrara para fazer cena, havia só mesmo a curiosidade. Olhou o relógio, quase duas, calculou que o show estava para terminar, o bar esvaziaria e chegaria a hora de dar um oi, "Oi, Taty", seria tão simples assim? Estava passando aqui em frente e... Era a verdade. Não havia planejado nada. Ao voltar do exterior na semana passada tinha até pensado em tudo, havia recapitulado aqueles dias quase automaticamente, o que incluía Tatiane, mas ao mesmo tempo, com todas as possibilidades abertas pelo curso, as entrevistas de emprego agendadas pelo pai, as idas e vindas com a família à procura de um apartamento para ela, viu-se sufocada por uma nova realidade, estava sendo iniciada na paranoia profissional para a qual pensava ter se preparado durante os últimos quatro anos. Taty representava nada mais do que um microbiozinho enfraquecido por um poderoso antibiótico receitado pelo pai naquela fatídica noite. Mas hoje, passando por ali...
Ouvia a voz delicada de Tatiane no palco, via seu corpo apenas de relance em meio aos frequentadores, aos garçons, aos grandes pilares redondos de madeira que tornavam o White Horse tão rústico quanto ela gostaria de ter sido para sempre, e tão doce como
Taty, sua melodia, suas palavras.
“Lembra o que eu te disse?”, ouviu-a de novo, viu-a de novo naqueles dias, ela tentava manter-se serena como sempre, mas aquele tique na comissura dos lábios, como se reagisse a leves choques, denunciava seu verdadeiro estado, pouco depois confirmado por um fiozinho que lhe percorreu o rosto e sulcou a maquiagem feito um córrego secando.
“Não vou”, Natália bebeu a primeira dose de uísque de sua vida. “Vá com calma”, disse-lhe Taty. “Foda-se ele, foda-se tudo”. Virou outra, deu um soco na mesa. Taty colocara sua mão sobre a dela, igual a todas as outras vezes, mas então não recuara, permanecia assim, apertando levemente seus dedos, apertando e soltando, apertando e soltando. “Vou tomar outro”. “Vá com calma”. “Quero mais um desse”, disse ao garçom, “qual é mesmo?”. “White Horse é o único da casa”. “Isso, que seja, um Cavalo Branco”, um cavalo que pudesse tragá-la dali com Taty, que pudesse galopar com as duas para bem longe, fora do controle do pai, da sociedade, longe de todos aqueles olhares e regras.
Agora tinha saído para fumar, encostou-se à parede no lado de fora para proteger-se do vento. Eram mais de duas e meia e fazia frio, abotoou a jaqueta, espiou lá dentro e pareciam já estar no bis, pegou-se sorrindo de novo ao pensar ter visto Tatiane da cabeça aos pés, o microfone à mão, um vestido azul longo contornava seu corpo esguio de cintura fina e quadril voluptuoso, afunilando-se gradativamente até os tornozelos e depois abrindo-se em pregas brilhantes. Voltou a apoiar-se ao lado da porta por onde a maioria dos notívagos deixava o bar, mas obrigou-se a dar mais uma olhada, desviando-se de dois ou três rapazes que saíam trançando as pernas com latinhas de cerveja nas mãos. De repente ficara intrigada com aquele vestido, parecia-lhe familiar, talvez fosse uma confusão de sua parte, mas naquela noite, bem naquela noite, cinco anos antes, enquanto deixava o White Horse no carro do pai, depois de toda a briga, do escândalo todo, exatamente ali onde encontrava-se agora, ao lado da entrada, ela tinha quase certeza de que Tatiane permanecera em pé por alguns segundos, com esse mesmo vestido.
Derrubou a cinza e jogou a bituca numa enorme lata de lixo ali perto, tentou retornar até a porta, mas agora o fluxo da saída a impedia de ver qualquer coisa lá dentro. Todos estavam deixando o White Horse. Balançou a cabeça, um vestido de quatro anos antes não entraria mais em Taty. Sorriu com malícia e um segundo depois arrependeu-se, mas seria a verdade. Lembrou-se das roupas que ambas vestiam naquele tempo, calças justas, camisetas curtas, tudo caía bem em seus corpos tão jovens. Um homem visivelmente alterado aproximou-se dela. “Está sozinha, baby?”, mas sem que ela tivesse qualquer reação ele mesmo afastou-se aos tropeções.
“Está sozinha, baby?”, Tatiane a encontrara num desses dias em que nada parecia se encaixar aos seus planos, ali mesmo no White Horse. “Está sozinha, baby?”, Taty sentou-se como se fossem velhas amigas, e Naty achou tudo muito natural. Tomava um Martini e, quando viu o sorriso diante dela, esqueceu-se do namoro frustrado terminado havia pouco, da discussão com o professor de inglês no início da tarde e da briga com a mãe pouco antes de sair de casa. “Acho que sim”, fez o gelo rodopiar com os dedos, e uma coisa dentro dela parecia ter absorvido a temperatura do copo, algo estava trincando de cima a baixo. “Pode sentar”, tentou divertir-se um pouco, e Tatiane captou a mensagem, levou a mão atrás do pescoço, os cabelos levemente encaracolados enroscando-se nos dedos, os lábios entreabertos num leve sorriso, os olhos negros apertados e fixos em Natália. Ambas gargalharam e foram em frente, o gelo no ventre derretera com o calor novo e vigoroso de toques, de pele contra pele, de boca contra boca, do cheiro de sexo, trancadas no banheiro do White Horse. Mais tarde ligou para a mãe, “Vou dormir na casa de uma amiga”, “Você não conhece”, “Amanhã a gente se vê”, “Não sou criança”, “O sinal está fraco”, “Não estou ouvindo”, e desligou. Sentia-se livre e estimulada com Tatiane, pelo que sentia por Tatiane. Passou a considerar toda sua vida uma grande aporrinhação. Aqueles professores vomitando fórmulas matemáticas, fórmulas para o futuro, fórmulas para tudo. Em casa esforçava-se para abstrair a carga tributária familiar, que crescia de acordo com seu próprio desinteresse, “O que está acontecendo com você?”, “De onde você tirou esse ar blasé?”, “Não faça de conta que...”.
Natália viu que começavam a apagar as luzes lá dentro e postou-se diante da porta. Os últimos clientes despediam-se, havia um cheiro adocicado de suor e perfume ardendo em suas narinas. Dois seguranças falavam de algo sobre amanhã, riam entre si. Ela perguntou-lhes se todos tinham saído. Não sabia se devia esperar por Taty ali mesmo ou se valia a pena procurá-la nos bastidores. Havia ainda alguns retardatários acertando as contas no caixa, os músicos estavam comendo, mas também não demorariam. Naty preferiu aguardar, queria falar com Tatiane num momento em que pudesse puxá-la de lado, evitar um constrangimento qualquer na frente de pessoas que ela não conhecia, e nisso um aperto subiu-lhe do peito à garganta. Imaginou Taty com novas companhias, vieram-lhe à cabeça imagens desfocadas de inevitáveis novas relações, acendeu outro cigarro e tragou demoradamente. Uma grande farsa, pensou de súbito, toda essa papagaiada de cinco anos, uma grande farsa de si mesma, assoprou a fumaça para longe, respirava com sofreguidão o ar frio da madrugada, rememorou sua retirada de cena, a submissão, a entrega resignada, mordeu os lábios, na verdade talvez fosse melhor dizer covardia, olhou para a rua e, como uma espectro fantasmagórico, viu novamente o carro do pai estacionado no meio fio, a mãe aos prantos no banco da frente enquanto ele a arrastava, ouvia-se gritar, estava novamente dentro do carro, “Foda-se você, foda-se tudo”. “Por favor, filha”, a mãe tentava acariciar seus cabelos, mas era repelida com rispidez. “Você enlouqueceu, garota”, o pai arrancava com o carro cantando pneus. “Vamos te levar outra vez ao Doutor Cavablanco, amanhã mesmo, chega de rodeios”. Taty estava lá atrás, encostada a esta mesma parede, com o vestido azul de barra brilhante, os braços cruzados, o corpo imóvel feito uma estátua ali abandonada durante a noite. “Um dia vai ser inevitável”. Debruçou-se sobre o banco traseiro, limpou o vidro com as costas das mãos enquanto via a figura de Tatiane reduzir-se a um ponto negro na calçada e logo desaparecer aos poucos na Avenida Nações Unidas, em Bauru. “E com uma moça de cor”, ouviu o pai indignar-se. Escorregou e abandonou-se sobre o estofado frio, não tinha vontade de chorar, sentia-se como se tivessem arrancado tudo de dentro dela e substituído pela calda de um metal qualquer, um metal gelado, incapaz de qualquer reação diferente do recrudescimento.
Soltou mais um canudo de fumaça e atirou o cigarro pela metade na lata do lixo, estava tão decidida que pretendia ir agora mesmo até onde Taty estaria jantando com os outros músicos. Foda-se tudo, pensou. Disse aos seguranças que decidira ver a amiga lá dentro, mas um deles pediu que aguardasse.
“Como é mesmo seu nome, moça?”, ele perguntou enquanto falava pelo rádio com alguém. “Com quem você quer falar?”.
“Taty”, ela disse enquanto o segurança hesitava.
“Tem alguma Taty aí?”.
“Tatiane”, corrigiu Natália, “o nome é Tatiane, a vocal”, sorriu para ele com uma ternura que não conseguiu evitar, “a de vestido azul”.
O segurança olhou-a desconcertado. “Vou ver aqui, pode deixar”, disse para o pessoal lá do bar.
“O que foi?”, Natália impacientou-se. Nunca estivera tão decidida na vida e dois seguranças babacas barravam sua passagem exatamente nessa hora! “Não posso entrar?”.
O segurança explicou que não havia nenhuma Taty ou Tatiane lá dentro, mas Natália indicou a placa do outro lado da porta.
“Como não? Está escrito ali”, por um instante pensou que Taty sabia de sua presença e queria livrar-se dela, uma ponta de tristeza começava a penetrar-lhe por todas as regiões do corpo, como o início de uma cólica de rim. “Está escrito ali”, repetiu ao segurança com o vigor agressivo de outros tempos.
“Sim, está escrito ali”, disse o segundo segurança que se aproximou para contê-la, “mas acho que você não leu direito”.
Depois, com Natália já colada a ele e tentando entrar de qualquer jeito, disse-lhe que vários músicos tinham estado no White Horse para uma homenagem a Taty.
“Você não sabia?”, disse ele, esforçando-se para barrar-lhe a passagem.
“Preciso entrar, falar com a Taty”, ela agarrava-se ao pescoço musculoso, sentia como se as pernas fossem feitas de trapos.
“Moça”, o segurança passou os braços em torno dela, “moça”, repetiu quase asfixiado pelas mãos de Natália, “você não sabia?”, por fim conseguiu segurá-la, “faz um mês hoje”.
“Ela está lá dentro”, Natália insistiu já sem forças, “ela está lá dentro”, e ouvindo a própria voz diluir-se na angústia fria da noite teve a certeza que sim, Taty estava lá dentro.
* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
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