Depois de tudo, parecia fácil deduzir o desfecho, como num enigma onde as respostas escondem-se em névoa, embora estejam tão claras diante dos olhos. De fato, haviam restado algumas dúvidas intrigantes, mas afeitas apenas ao caráter fenomenológico das coisas. Essas impressões, no entanto, não seriam tão simples para quem acompanhasse o caso ao vivo, por assim dizer. Por exemplo: ao contrário do que geralmente move uma investigação, a pergunta que poderia ter sido feita no decorrer dos acontecimentos não era quem matou, mas quem iria morrer. Quando os policiais encontraram o corpo da vítima, claro que adotaram todos os procedimentos normais, inclusive a busca por impressões digitais. Mas o resultado foi bastante constrangedor. Ao menos até que o Doutor Cavablanco entrasse em cena e, diante das evidências, desse seu veredito: "Na verdade, não sei se esse caso pode ser esclarecido".
O fato é que o médico recebera a ligação de seu paciente às três da manhã de um domingo. Por tratar-se de um caso complexo e bastante delicado, concedera essa liberdade a Fausto, um corretor de imóveis que, durante as dificuldades impostas pela crise do setor nos últimos anos, passara a ouvir vozes que não sabia de onde vinham. Eram conselhos sobre negócios, alertas quanto a clientes mal intencionados e até gozações diante de circunstâncias inusitadas, como no dia em que Fausto errou o endereço do imóvel a ser oferecido e ao entrar na outra casa por engano deu de cara com uma cena banal de sexo no sofá. "Vai nessa, meu chapa", Fausto ouviu o incentivo irônico, "relaxa e entra na festa". No entanto, não havia graça nenhuma. Era perturbador. O Doutor Cavablanco receitara alguns tranquilizantes e também iniciara o processo de terapia. Considerava que o tratamento havia começado bem. O estado do paciente estava controlado, até a ligação no meio da madrugada.
Que o sujeito andasse maluco com aquele barulho inusitado nos miolos, não era novidade para o médico, mas ao mesmo tempo ele parecia bastante seguro de si durante o telefonema. Dentro de seu projeto, comportava-se de modo coerente. A circunstância, claro, não mudava nada quanto ao mérito da questão. Fausto explicou com objetividade e toda a lógica possível para uma situação como aquela, e também para um horário como aquele, a novidade trazida pelas vozes. Nada mais do que isto: o primeiro que se dirigisse a ele pessoalmente morreria de imediato. Não, doutor, disse Fausto, não pretendo me tornar um assassino, não se trata disso. De fato, ele parecia ter compreendido exatamente o teor da mensagem. Não seria preciso mexer uma palha para que seu interlocutor viesse a óbito. Seria uma consequência automática, uma reação fatal a um estímulo natural. Você chega para falar com alguém e, inocente diante da profecia, premonição ou coisa que o valha, cai duro. Não foi nada fácil para que o Doutor Cavablanco o convencesse a não dar ouvidos para as vozes. Talvez não tenha conseguido.
Fausto elaborou um minucioso plano a ser cumprido antes do amanhecer. A primeira coisa seria enviar uma mensagem para os filhos no grupo familiar do WhatsApp. Por nada neste mundo me procurem hoje, não insistam. Já estava digitando quando se deu conta da dramaticidade das palavras. Revelavam muito mais do que o necessário. Eles virão correndo na mesma hora, pensou. Precisei viajar, não dá pra gente se ver hoje. Mas ele nunca viajava, ainda mais num domingo em que iriam almoçar juntos. Por que viajaria assim de repente? Apareceu um trabalho de última hora. Fui escalado para um plantão. Começava a digitar, mas nada parecia seguro o suficiente. Por fim, apelou para uma desculpa razoável. Venham depois da uma, estou acompanhado... hehehe. Enviaria pela manhã para não parecer suspeito. Agora precisava pensar em outras possibilidades.
A primeira delas: como em todos os domingos, o porteiro bateria em sua porta às nove e, com um sorriso discreto, diria bom dia, Seu Fausto. Não podia condená-lo. Não o Euclides, sempre prestativo, um sujeito ótimo e de confiança, algo cada vez mais difícil para quem mora sozinho e depende de bobagens como deixar a chave e pedir que alguém acompanhe um reparo no chuveiro ou uma entrega de vinhos. Pois bem, não atenderia à porta. Negativo, pensou um segundo depois enquanto tragava escondido atrás da cortina da sala com receio de que alguém lá embaixo na rua o reconhecesse e gritasse um cumprimento qualquer para ele, um gesto simpático e, dentro das atuais circunstâncias, fatal. Se não abrisse a porta, o Euclides farejaria algo suspeito, pensaria em ajudá-lo, arrombaria etc. Seria melhor deixar um recado na portaria, um bilhete. Euclides chegaria apenas às sete. Desceria agora mesmo. Atirou a bituca no jardim lá embaixo torcendo para não ter sido visto. Bom dia, Euclides, não me leve o jornal hoje, eu mesmo venho pegar. Mas e o trajeto até lá embaixo, surpreendeu-se como num susto. Olhou para o relógio. Cinco e dez. Encontraria alguém no elevador? Dona Fátima, que de vez em quando faz seus deliciosos pudins de pão e oferece um generoso pedaço a ele. Sim, ela costuma acordar muito cedo. Seu Valdemar. Ele não o via há muito tempo, mas lembrava-se de seu abraço de consolo quando ficou viúvo há dois anos. O casalzinho do último andar de quem ele não sabe os nomes, mas com quem simpatiza. Tinha acendido outro cigarro e relatava todas essas hipóteses ao Doutor Cavablanco.
“Preciso escolher”, disse ao médico depois de um silêncio.
“Escolha dormir um pouco.”
“Não tenho outra saída.”
“Escute, Fausto, você tomou o tranquilizante?”
“É estranho, doutor, estou me sentindo Deus.”
“Não é preciso lutar contra elas por enquanto”, o médico tentou atraí-lo com a referência às vozes, “apenas conviver pacificamente”.
“Não posso arriscar a vida das pessoas que amo ou mesmo das que eu apenas conheço.”
“As vozes deixarão você em paz quando você der menos importância a elas.”
“Não tenho escapatória”, disse Fausto sem dar atenção ao que lhe dizia o médico. “Eu tinha dito ao senhor que não seria um assassino, mas errei, porque precisarei escolher, o senhor compreende? Mesmo sem matar, serei um assassino”.
Por mais que o médico procurasse desviá-lo de sua obsessão, as tentativas mostravam-se infrutíferas. Fausto adentrava mais e mais seu projeto. Mas escolher a quem? Lembrou-se do gerente do restaurante que o havia destratado outro dia por um motivo fútil. Do cliente brutamontes que cuspiu em seu sapato por causa do preço do aluguel. Do colega que lhe passou a perna no negócio do escritório daquela multinacional e embolsou toda a comissão. Da garota que riu quando ele brochou havia três semanas ali mesmo naquele sofá da sala, onde agora estava dobrado sobre os joelhos. O estômago queimava enquanto ele confessava sua falta de coragem para levar adiante uma atitude desse tipo. Ouviu o médico prever que dali a pouco, quando fosse buscar pão na padaria, estaria livre desse peso. Constataria com seus próprios olhos que nenhuma previsão das tais vozes se concretizaria, fique tranquilo. Fausto viu que a cortina já filtrava a primeira luz do dia. Pelo jeito, seria um brilhante domingo de verão. Dali a pouco, casais passariam em seu trotezinho atlético pela Rua Iguatemi na direção do Parque do Povo, agora mesmo alguns notívagos deixavam o barzinho barulhento da esquina, ouviu os rangidos das portas de ferro sendo fechadas, uma moto rompeu a manhã com o escapamento aberto e ele sentiu o cheiro da fumaça trazido pela brisa através do vidro entreaberto. Nisso, Fausto correu para fechá-lo com um vago receio de contagiar o próprio ar com a morte. Entreviu uma pipa a flanar no céu azul.
Os filhos chegaram às onze sem ter recebido mensagem alguma. Tudo já havia acontecido. Enquanto subia com eles, Euclides disse olhando para o chão que tinha deixado o jornal no tapete depois de ter tocado a campainha por duas vezes seguidas. O investigador de polícia, um homenzinho calvo que saiu à porta lambendo o espesso bigode no momento em que os três deixavam o elevador, olhou para eles pensativo, os olhos arregalados. “São os filhos”, ouviu o porteiro informar-lhe. “Ah, sim”, o policial pareceu despertar, “sinto muito”. Aconselhou-os a aguardarem um pouco. Não achava que devessem ver o pai naquelas condições, diante do espelho do banheiro.
* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
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