O criador de tudo

“Las manos del terror”. do pintor Oswaldo Guayasamín

“Eu criei tudo”, respondeu o Doutor Cavablanco à medida que erguia o braço direito e com um movimento rápido abarcava todo o ambiente em torno de si, “mas qualquer um poderia ter feito o mesmo”.

“Até certo ponto”, ressalvou o jornalista, entregando-se a uma fraqueza de espírito momentânea cuja origem dava-se naquele projeto comum a muitos profissionais do ramo dispostos a conquistar o entrevistado com uma bajulaçãozinha aparentemente graciosa. "Nem todos têm um conhecimento amplo como o senhor", completou enquanto deteve ainda no início um sorriso irônico de cujo resultado ele mesmo duvidou a tempo.

"Mas a criação nem sempre exige um conhecimento amplo", observou o Doutor Cavablanco, com uma ponta de suspense salpicado nos pequenos vazios entre as palavras.

"Eu quero dizer”, tornou o jornalista, “que não há como comparar a capacidade inventiva de um artista plástico de tal nível à criatividade, digamos, de um homem simples, sem qualquer preconceito, como por exemplo um vendedor de sapatos".

"Aí é que está", animou-se com sinceridade o Doutor Cavablanco. "Um vendedor de sapatos poderia, sim, criar algo importante".

"Bem, mas o senhor há de convir que a probabilidade não é exatamente o que podemos considerar elevada...", insistiu o jornalista, já sentindo certo desconforto.

"A probabilidade nesse caso é um fragmento calculado a partir de uma série de aspectos, entre eles a inesperada possibilidade de uma explosão cerebral advir de qualquer indivíduo por mais inóspita que seja sua zona de conhecimento."

"Como se dá essa dita explosão cerebral, doutor?", o jornalista cruzou as pernas, apoiou o cotovelo na coxa e segurou o queixo, esperando livrar-se rapidamente do inútil impasse criado por ele mesmo.

"Imagine que você esteja no meio de um texto", o Doutor Cavablanco apontou para o jornalista deixando escapar um desses sorrisos frios. "Você sabe que, ao desempenhar seu ofício, grande parte de sua produção nada tem a ver com criação, mas com o que costumamos chamar de reação mecânica a um estímulo comum".

"Piloto automático", observou satisfeito o jornalista, descruzando e cruzando as pernas, mas desta vez invertendo a posição e, então, considerando-se senhor de si novamente.

"Exatamente", retomou o Doutor Cavablanco. "Você está diante de um universo cujas exigências são atenuadas pelo seu próprio conhecimento ou, se preferir ir mais a fundo, pela avaliação que você mesmo faz daquilo que considera ser sua experiência profissional, aí já considerada a dimensão que você mesmo atribui ao seu conhecimento".

"O senhor quer dizer que, sem me dar conta, eu posso cair numa armadilha fabricada pela minha autoestima."

"Pela sua prepotência intelectual, eu diria, pelo abuso do que você considera ser sua autoridade em determinado assunto", o Doutor Cavablanco sorriu agora com certa condescendência.

"Compreendo", o jornalista assentiu com momentâneo distanciamento que parecia se traduzir em vamos logo ao que interessa.

"O vendedor de sapatos", disse então o Doutor Cavablanco sem poder disfarçar um inevitável sarcasmo, "dificilmente tem acesso a essa prepotência".

Estavam no estúdio do Doutor Cavablanco, num daqueles enormes prédios antigos perto da Bovespa. A porta de entrada abria-se para um amplo espaço, uma espécie de loft com uma sala de estar do lado direito, onde haviam sentado um diante do outro em poltronas fofas e espaçosas. Entre eles e as janelas de vidro com cortinas claras que filtravam a luz solar e tornavam o ambiente luminoso como num conto de fadas, havia uma série de cavaletes com pinturas iniciadas e, ao lado dos trabalhos, uma ilha com vários computadores. Bem atrás da cabeleira branca do Doutor Cavablanco, dividida por uma razoável entrada calva que lhe cravava um aspecto de Doc Brown, o jornalista podia ver agigantar-se um retângulo metálico ocupando mais ou menos um terço da área total do andar. A estrutura subia do piso ao teto e passava a impressão de algo impenetrável e gelado.

“Mas diga-me uma coisa, doutor”, o jornalista tentou formular um semblante de divertida curiosidade, “o que o fez trocar a medicina pela arte?”.

“Bem”, sorriu o Doutor Cavablanco, “a medicina também é uma arte e, acredite, você ficaria perplexo ao constatar certos aspectos desse vínculo, mas preciso corrigi-lo: na verdade, não foi bem uma troca, foi uma união, digamos que as duas atividades absorveram-se mutuamente, transformaram-se numa coisa só, ao menos para meus propósitos”.

“Parece que estamos chegando ao ponto”, o jornalista remexeu-se na poltrona e conferiu no celular o andamento do aplicativo de gravação de voz. “Quando o senhor me disse que havia encontrado, digamos, uma forma de eternizar a vida através do olhar da morte, acredito que o senhor não estava se referindo simplesmente à composição de um quadro homenageando alguém que se foi, estou certo?”.

“Perfeitamente”, o Doutor Cavablanco fitou o jornalista com atenção. “De modo algum eu estava me referindo a isso”, então seus lábios permaneceram entreabertos num espasmo de sorriso.

“Então?”

“Quando nos encontramos na galeria, talvez eu devesse ter controlado melhor meus impulsos”, ergueu-se repentinamente com as mãos para trás e dirigiu-se aos cavaletes.

“O senhor deveria ter controlado que tipo de impulso?”, o jornalista apanhou o celular e colocou-o no bolso da camisa, de modo que pudesse continuar a gravação, antes de levantar-se atabalhoadamente para acompanhar seu entrevistado.

“Veja isto”, o Doutor Cavablanco virou-se para o jornalista enquanto tocava com as mãos uma de suas telas inacabadas, onde um rosto borrado em tons de marrom desfigurava-se entre um emaranhado de construções urbanas prestes a desabar; ao fundo um céu avermelhado caía como se consumido por labaredas. “Este é um trabalho artístico unilateral, resultado de uma ideia que pode prolongar-se por horas, dias ou, quem sabe, anos a fio, até que se transforme num fragmento pinçado em determinado instante, entretanto é também uma composição que pode sugerir toda uma vida experimentada pelo seu autor”.

“Uma reflexão às vezes leva tempo.”

“Sim”, o Doutor Cavablanco largou a tela sobre o cavalete e encarou o jornalista como se tivesse se assustado, “mas também pode diluir-se como a tinta na água”.

“E transformar a própria arte”, acrescentou o jornalista.

“O pensamento é algo que processamos continuamente”, o Doutor Cavablanco passou a outro cavalete; neste a figura esquálida de um homem de costas tentava alcançar algo à sua frente, de modo que sua cabeça era ocultada pelo próprio corpo dobrado, enquanto isso os pés afundavam-se numa espécie de pântano multicolorido. “Se eu viver mais vinte anos, minha arte passará ainda por uma infinidade de transformações, enquanto que...”, o Doutor Cavablanco interrompeu-se e postou-se de braços cruzados diante do jornalista, agora seu semblante era absolutamente grave. “Você está mesmo disposto a ir até o fim?”.

Em pé, de frente para as amplas janelas de vidro que desciam quase até o piso, o jornalista podia observar, lá embaixo, a multidão perdendo-se em meio a uma grande sombra de edifícios, estava na hora do fim do expediente. Haviam se colocado em posições tais que o jornalista ficara de costas para o suntuoso retângulo de aço, e por um momento ele se deu conta de que todo o revestimento do estúdio, incluindo as vidraças, sugeria uma vedação extremamente bem instalada, pois de repente pareceu-lhe impressionante que de todo aquele movimento de pessoas e veículos não emanasse qualquer tipo de ruído. Era como se estivessem isolados da metrópole, especialmente quando bem diante de seus olhos ele viu, através do vidro, um helicóptero planar sobre o topo dos prédios sem poder quebrar o gélido silêncio.

“O impulso na galeria”, disse por fim o jornalista com um sorriso nos lábios, um sorriso que na verdade não passava de uma pequena farsa para atenuar a momentânea tensão ocasionada pelo silêncio brutal, “quero compreendê-lo”.

“Talvez não seja tão simples assim”, o Doutor Cavablanco manteve-se pensativo enquanto dirigia-se à ilha de computadores.

“O impulso ou o processo todo?”, quis brincar o jornalista.

“Certamente você se lembra quando surgiram as primeiras informações sobre as redes sociais”, disse o Doutor Cavablanco ao sentar-se diante de uma das máquinas cuja tela parecia reproduzir uma espécie de gráfico incompleto. “Quem poderia acreditar, há algumas décadas, que a coisa evoluiria a tal ponto de vivermos num mundo virtual onde ao contrário do mundo físico as fronteiras se abrem de modo inesgotável?”.

“O senhor quer dizer que a amplitude da sua criação alcança esse patamar?”, o jornalista viu-se arrependido por ter sugerido uma ponta de dúvida em sua entonação.

“Bem”, o Doutor Cavablanco olhou indiferente para ele depois de conferir na tela alguns detalhes do que o jornalista imaginou ser um programa desconhecido, “essa amplitude talvez possa ser mais bem avaliada no futuro, assim como os próprios mecanismos responsáveis por nos levarem a esta realidade virtual”, apontou com o polegar para o computador atrás de si.

“O abstracionismo dos quadros”, o jornalista tentou ultrapassar a parte teórica, “o senhor trabalhou de que forma com os coautores?”.

“Já explicarei tudo a você”, o Doutor Cavablanco ergueu-se de repente e quase chocou-se com o corpo esguio à sua frente, percebeu no jornalista um leve tremor no lábio inferior, os olhos fixos na tela, a barba longa e mal aparada acentuava sua magreza.

“São doze quadros”, o jornalista não se conteve, “todos de pessoas que se foram”.

“Não exatamente”, o Doutor Cavablanco desviou-se do jornalista e dirigiu-se ao grande retângulo de aço.

“Não?”, o jornalista acompanhava-o com hesitação.

“Talvez eu não possa designá-los como sendo apenas quadros, assim como não posso concordar com a ideia simplista de que essas pessoas se foram”, abriu a porta girando uma alavanca semicircular que deu dois breves estalidos, depois entraram.

O jornalista não teve tempo de processar o que, a ele, pareceu ser uma pequena charada retórica, pois os quadros expostos na galeria eram dedicados a homens e mulheres já mortos, e todos eles subscreviam as obras, lembrou-se perfeitamente da assinatura Cavablanco no canto direito de cada tela, e logo abaixo o nome do coautor acompanhado de um intrigante registro em lápis: post mortem. Um leve arrepio percorreu os ombros do jornalista e foi aninhar-se, como o pé de um redemoinho, em sua nuca. Mas esse pensamento, acompanhado do espasmo, durou nada além do tempo de ter dado o primeiro passo dentro da sala de aço. Ouviu o Doutor Cavablanco fechar a porta às suas costas, estava impressionado com todos aqueles equipamentos que, juntos, lembravam um pequeno laboratório científico da Nasa. Ao centro, fora instalada uma espaçosa poltrona onde talvez pudessem sentar-se dois homens. Fios de cores diversas trançavam-se sobre o branco asséptico dos largos braços, e o jornalista pôde ver também vários tubos ligados a alguma parte oculta debaixo da engenhoca.

“Aqui fica o que eu chamo de núcleo”, disse o Doutor Cavablanco, abrindo os braços bem atrás do jornalista, cuja reação de assombro causou a si mesmo um imediato constrangimento. “É onde se concentra a criação”.

“Tudo está interligado aos computadores da ilha”, o jornalista não encontrou nada melhor para dizer e sentiu o rosto pegar fogo.

“Exatamente”, sorriu o Doutor Cavablanco, “mas sente-se aqui”, indicou a grande poltrona central, tomando gentilmente o jornalista pelo braço.

“É uma sala intrigante”, pegou-se dizendo ao sentar-se, e outra vez sentiu-se envergonhado por não ter ainda absorvido o impacto do desconhecido.

“Acho que você entenderá”, disse o Doutor Cavablanco enquanto auxiliava o jornalista a acomodar-se.

“Mas o senhor dizia de seus coautores, algo como se eles na verdade não tivessem exatamente morrido”, o jornalista tirou o celular do bolso, viu que a gravação continuava e guardou-o novamente. “O que o senhor quis dizer?”.

“Eles continuam aqui”, o Doutor Cavablanco deteve-se por um instante com as mãos na cintura, e o jornalista percebeu os próprios braços já acoplados à poltrona, de algum modo não podia movê-los de lá. “Agora vamos ajeitar isto aqui”, o médico manejou agilmente duas presilhas que imobilizaram o jornalista pelos tornozelos. “Está quase pronto”.

“Pronto?”, tentou forçar os braços para cima sem chamar atenção para seu movimento sutil, mas sentiu que só os tiraria da poltrona se arrancasse a própria pele.

“Sim, vamos à prática.”

“Sou uma cobaia?”, o jornalista tentou sorrir, tentou tranquilizar-se, tentou mostrar ao Doutor Cavablanco que considerava absolutamente natural estar preso a um equipamento estranho, dentro de uma sala estranha, e sem qualquer aviso prévio.

“Perfeitamente”, o Doutor Cavablanco sorriu ao puxar uma banqueta e sentar-se ao seu lado. “Você, na verdade, tem razão”, disse como se refletisse profundamente enquanto cruzava os braços. “Os coautores se foram, mas você deve lembrar quando eu lhe disse sobre a eternização da vida...”.

“Sim”, o jornalista balbuciou, procurando dar um tom de normalidade à própria voz. “Acho que começo a compreender”, queria restabelecer o diálogo, planejava com isso acalmar-se, ficava repetindo mentalmente que era apenas uma entrevista, apenas uma entrevista. “De algum modo, o senhor trabalhou com seus coautores no sentido de deixar uma obra de arte para representá-los após a morte”.

“Meu caro”, o Doutor Cavablanco passou a mexer de modo impaciente em todos aqueles fios ao redor da poltrona, “você me decepciona”.

“Passei longe?”, agora sentia o coração acelerar, conquanto tentasse obrigar-se a esboçar uma expressão de inalcançável serenidade.

“A medicina”, o Doutor Cavablanco levantou-se para acoplar suportes de ambos os lados da poltrona, “uniu-se à arte e aqui conseguimos eternizar sensações, percepções, talvez reflexões”.

“Realmente é complexo”, o jornalista deixou escapar um sorriso, mas algo dentro dele queria chorar.

“Eles sentam-se aí onde você está”, o Doutor Cavablanco ficou em pé bem diante da poltrona, “e nós captamos a vida que pode ser mantida entre nós e para sempre”.

“Esses coautores”, a voz do jornalista quebrava-se, “como eles agem nesse trabalho?”.

“Digamos que seja uma troca”, o Doutor Cavablanco agora estava de cócoras, quase entre os pés do jornalista, parecia ligar botões sob a poltrona.

“Uma troca?”, o jornalista aproveitou a posição do Doutor Cavablanco, cujo olhar escapava de seu ângulo, para tentar arrancar os braços daquela indesejada posição, mas era impossível. “Como assim, uma troca?”, suspirou.

“Bem”, disse o Doutor Cavablanco, “vou tentar resumir, é que já estamos com tudo pronto aqui”.

O jornalista olhou para sua esquerda, onde um painel parecia reproduzir o mesmo gráfico incompleto que ele tinha visto na ilha de computadores. Algumas luzes piscavam nas duas extremidades do painel, e sobre a base onde também havia um teclado ele percebeu um terminal com uma tela pequena como aqueles visores onde os médicos acompanham os sinais vitais de seus pacientes. Preso a uma sensação asfixiante, afastou o olhar e novamente atentou-se ao silêncio ampliando-se ainda mais ali dentro. Ouvia apenas os movimentos do Doutor Cavablanco. O médico agora estava posicionado bem atrás de sua cabeça. Ouvia também a própria respiração, começando por um estranho ruído no peito, que depois prolongava-se num chiado fino, diluindo-se num ridículo assobio nas narinas. Sem compreender o porquê, lembrou-se com desespero de todas aquelas pessoas na rua que observara havia pouco através da vidraça, lembrou-se do helicóptero mudo, lembrou-se da pulsação do mundo todo lá fora, um mundo completamente alheio ao que o Doutor Cavablanco chamou de núcleo.

“Acho melhor pararmos por aqui”, o jornalista não se conteve mais. “Não estou me sentindo bem”.

“O que você tem?”, o Doutor Cavablanco surgiu novamente à sua frente, trazia as sobrancelhas erguidas e uma dose de preocupação na voz.

“Não sei dizer.”

“É natural”, o Doutor Cavablanco desapareceu novamente de sua linha de visão. “Não é emocionante?”.

“O senhor me prendeu aqui”, o jornalista não conseguiu mais controlar o medo e tentou impor aos braços uma força que naturalmente não tinha, mas mesmo assim ainda apegava-se a um resto de indignação.

“Não”, disse com firmeza o Doutor Cavablanco e seu rosto apareceu ao lado direito do jornalista, que sentiu um fio branco daquela longa cabeleira sobrevoar seu rosto conforme o médico respirava. “Todos estamos presos já faz tempo, presos a uma rede que pode nos descartar a qualquer momento sem que tenhamos autonomia de navegação, e além do mais, você quis ir até o fim, recorda-se?”.

“Até o fim da explicação”, gritou agora sem estribeiras o jornalista. “Não sou sua cobaia!”.

“Acalme-se, por favor, você está certo”, o Doutor Cavablanco levantou as mãos como se fizesse um movimento de defesa. “Ainda preciso ir até o fim com a explicação.”

“O senhor está louco!”, o jornalista continuava tentando mover-se sem qualquer êxito.

“Os coautores se foram, é verdade”, a voz do Doutor Cavablanco agora era de uma serenidade absoluta, “mas porque quiseram”.

“O senhor é um assassino? É isso que o senhor é?”

“Não”, o Doutor Cavablanco manteve-se circunspecto por um instante. “Há pessoas com esse desejo”.

“Solte-me, por favor, eu não sou um deles”, o jornalista sentiu contrariado uma lágrima descer-lhe pelo lado direito da face.

“Você é jornalista e deveria conhecer melhor a essência humana e suas incríveis variações.”

“Louco, filho da puta!”, o jornalista contorceu-se.

“Vou dizer-lhe: o coautor é praticamente o autor; imagine um programa capaz de captar o último momento da vida, imagine o processo de uma fotografia”, o Doutor Cavablanco suspendeu um cabo com uma espécie de coleira na ponta. “Eu sei, é difícil acreditar”, disse como se procurasse convencer a si mesmo. “Uma última visão capturada numa única fração de segundo, retida e depois mantida viva”, estava quase sussurrando. “Viva!”, percebeu-se com a voz embargada.

“Por favor”, o jornalista ouviu uma criancinha, mas era ele mesmo.

“O que somos, afinal?”, passou a coleira em torno do pescoço do jornalista. “Objetos descartáveis numa grande rede, é o que somos”, respondeu à própria pergunta num tom enojado.

“Suspendemos a reportagem”, o jornalista agora expressava-se com rouquidão, tentava estabilizar a voz, mas ouvia escapar apenas um grito abafado, um fraco e ridículo chiado. “Eu esqueço que estive aqui”.

“O mais impressionante”, retomou indiferente o Doutor Cavablanco, com a voz impostada, “é que a última percepção de vida não permanece estática, você acredita?”, ligou outros cabos semelhantes ao da coleira nas pernas e nos braços do jornalista.

“Pelo amor de Deus!”, enxergava através de uma cortina aquosa, sentiu que ia desmaiar.

“Descobrimos que o programa absorve de modo tão integral as últimas ondas cerebrais do coautor, que sua vida continua através da arte”, o Doutor Cavablanco levantou-se com os olhos alagados e apertou uma tecla, depois a porta abriu-se e entraram dois homens vestidos de branco. “Ele está pronto”.

“Vamos em frente”, disse maquinalmente um deles, ambos vestiam luvas.

“Parem com isso”, gritou o jornalista e momentaneamente pensou ter recuperado as forças, “parem com tudo, vou processá-los”.

“Você não deseja saber como fazemos a captação?”, perguntou calmamente, e sem qualquer ironia aparente, o Doutor Cavablanco. “É um aspecto importante do processo”, levou a mão até o bolso do jornalista e retirou delicadamente o celular. “Isto já é desnecessário”.

“Por favor, ele está louco!”, o jornalista virou a cabeça na direção do homem à sua esquerda.

“Para fugir do piloto automático, lembra-se?”, o Doutor Cavablanco ficou de frente para o jornalista. “A captação deve ser única, instantânea, podemos dizer até ‘brutal’, sendo esse ‘brutal’ entre aspas, claro”, sorriu vagamente.

“O senhor não tem família?”, o jornalista disse para o homem à sua direita, sentia-se estúpido, covarde e, o que jamais gostaria de ter sido, piegas. Por um ínfimo instante tentou lembrar-se da última vez que havia se encontrado com alguém da própria família.

“O programa deve captar tudo de você num átimo”, continuou o Doutor Cavablanco, “de uma só vez, sem chance para o passado interferir de modo decisivo no que pretendemos que seja o futuro de uma vida que por si só já não existiria, a eternização da vida através do olhar da morte, lembra-se?”.

“Vocês pagarão por isso”, o jornalista sentia-se molhado da cabeça aos pés, as palavras saíam-lhe sem que pudesse formulá-las, embora ainda pudesse condenar-se pelo desfile de chorosos chavões. Percebeu, além do suor, cheiro de urina, talvez de fezes.

“Para isso”, o Doutor Cavablanco sentou-se novamente na banqueta ao lado do jornalista, “é preciso um grande choque, um único choque, ‘brutal’, como eu disse, mas não se preocupe, não se trata de um choque elétrico ou algo semelhante”, fez um sinal com a cabeça para o homem do lado esquerdo do jornalista, e este ocupou-se do teclado e passou a digitar alguns comandos.

“Digam o que vocês querem...”, e emudeceu, soube que mesmo falando não podiam ouvi-lo, estava por fim sem voz, veio-lhe a sensação de estar sendo sugado para um poço profundo, a voz do Doutor Cavablanco distanciava-se à medida que ele caía.

“É preciso um procedimento extremo”, disse o Doutor Cavablanco. “O mundo virou um grande palco de extremismos, você deve saber muito bem a respeito”.

Em seguida, o jornalista pensou ter ouvido fragmentos de vozes que soavam distantes, feito um alarido de onde se pudesse extrair um ou outro significado, “todo o sangue”, “átimo”, “brutalmente”, “fora do corpo”, “indolor”, “de uma só vez”, e de repente voltou a si, mais uma vez tentou levantar-se da grande poltrona, mas um segundo depois reiterou-se de tudo mentalmente, teve tempo ainda de arrepender-se da insistência para conseguir a entrevista, viu-se chegando ao prédio próximo à Bovespa, lembrou-se de quando adentrou a sala e outra vez sentiu reavivar-se a impressão mórbida a respeito da grande estrutura metálica onde estava agora, olhou para os lábios carnudos e avermelhados do Doutor Cavablanco, “e assim”, estava dizendo-lhe, “o coautor, num átimo, ‘brutalmente’, está morto, mas suficientemente vivo”, pareceu-lhe verdadeiramente um sonho, na grande câmara asséptica o médico assemelhava-se a um luminoso anjo branco, quis esticar a mão para tocá-lo com carinho na face pálida e bem escanhoada, ouviu-o dizer “veja como a arte é bela, assim como a medicina”, então teve a sensação de estar não com um anjo, mas com o próprio Deus, e nem o fato de ter entendido perfeitamente o restante da observação, “suficientemente vivo para nos fornecer sua última impressão, que então eternizaremos para a família, os amigos, a ciência, para a própria arte!”, nem a compreensão do quanto isso significaria uma catástrofe irremediável para si tirou de seu semblante a aura doce com que recebeu o hálito áspero junto com as últimas palavras de seu algoz: “ O futuro nos será grato”.

*** *** ***

Uma pequena aranha mantinha-se à espreita sob o vidro protetor do quadro. O Doutor Cavablanco sabia por onde entrara, olhou discretamente para certificar-se de que não estava sendo observado, com os nós dos dedos tocou duas vezes próximo ao pequeno animal, este recuou, e o médico pôde imaginá-lo percorrendo a parede por trás da moldura, até encontrar novamente a brecha por onde passava o cabo. Mandaria dedetizar a sala onde estavam instalados os computadores interligados à rede responsável por manter as obras permanentemente online, vivas! Atrás dele, duas mulheres conversavam em voz baixa, “Sim, ele mesmo”, “Mas eu não sabia”, “Foi há algumas semanas”, “De quê?”, “Pelo visto, um AVC ou algo assim”, “Que pena”, “Era um ótimo jornalista”, “Afinal, o que significa TUDO?”, “Você não leu na entrada? Teoria Única Da Onipresença”.

Ele também podia ouvi-las!

Parecia ter acordado dentro de uma dimensão desconhecida, ouvia tudo de um modo estranho, não eram vozes propriamente ditas, pareciam sinais de estática, paradoxalmente compreensíveis, talvez ondas eletromagnéticas, não sabia exatamente, mas conseguia captar o que diziam.

Também podia vê-las!

Embora incrivelmente transformadas em traços pontilhados ou algo do tipo, mulheres-infográficos, por assim dizer, e podia ver também o Doutor Cavablanco bem diante de si, médico-infográfico. Alheio às visitantes da exposição, o Doutor Cavablanco mantinha-se imóvel, o olhar fixo no centro da obra, como se tentasse penetrá-la para estudá-la melhor. As duas mulheres encaminharam-se para a tela ao lado, o Doutor Cavablanco continuou ali, pregado ao chão, praticamente sem piscar.

“Meu Deus!”, assombrou-se diante do traço pontilhado que reproduzia os contornos do médico, “será ele capaz?”. Viu o Doutor Cavablanco aproximar-se um pouco mais, os olhos arregalados, sinais sonoros, aquelas ondas cortavam o ambiente de novo, os pontos gráficos dos lábios carnudos e vermelhos oscilavam, entreabriam-se, moviam-se, era possível processar seus movimentos. “Transformou-se”, decifrou a palavra nos lábios carnudos e vermelhos do Doutor Cavablanco. “Transformou-se”, percebeu que ele a repetia para si mesmo como num susto. Viu que o médico espiou o ambiente a seu lado e de imediato voltou a atentar-se ao quadro. “Consegue captar, escroto filho da puta? Consegue me ouvir, desgraçado?”, mas o Doutor Cavablanco não esboçou reação. “Quem sabe um dia você atualize seu maldito programa e dê voz aos seus quadros, ao menos isso, verme assassino!” O Doutor Cavablanco parecia hipnotizado, como se sonhasse ou esperasse o momento certo de falar com as paredes. “Eu me rendo”, a breve memória do jornalista parecia enfim entregar-se à realidade de sua nova plataforma, estava sinceramente admirada diante da figura impressionante de seu criador. E de repente, percebendo-se tomada por um rompante emotivo, teve medo de borrar a pintura.

* Este conto integra o livro "O criador de tudo" (não publicado)
* Para ler "Índia", clique aqui
* Para ler "Cachecol", que faz parte do mesmo livro, clique aqui
* Para ler "Incidente no 21", clique aqui
* Para ler "Mãos à obra", clique aqui
* Para ler "Aparição no Rio Pinheiros", clique aqui
* Para ler "Núpcias", clique aqui
* Para ler "A casa de Montevidéu", clique aqui
* Para ler "Arrebentação", clique aqui
* Para ler "Hipóteses", clique aqui
* Para ler "Cavalo Branco", clique aqui
* Para ler "Depois do Jantar", clique aqui
* Para ler "Borboleta", clique aqui
* Para ler "As vozes", clique aqui
* Para ler "Transtorno", clique aqui
* Para ler "Véspera", clique aqui

Tags:

One Response to “O criador de tudo”

  1. […] * Es­te con­to in­te­gra o li­vro “O cri­a­dor de tu­do” (não pu­bli­ca­do) * Pa­ra ler “Ín­dia”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Ca­che­col”, que faz par­te do mes­mo li­vro, cli­que aqui * Pa­ra ler “In­ci­den­te no 21”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Mãos à obra”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Apa­ri­ção no Rio Pi­nhei­ros”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Núp­ci­as”, cli­que aqui * Pa­ra ler “A ca­sa de Mon­te­vi­déu”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Ar­re­ben­ta­ção”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Hi­pó­te­ses”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Ca­va­lo Bran­co”, cli­que aqui * Pa­ra ler “De­pois do Jan­tar”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Bor­bo­le­ta”, cli­que aqui * Pa­ra ler “As vo­zes”, cli­que aqui * Pa­ra ler “Trans­tor­no”, cli­que aqui * Pa­ra ler “O cri­a­dor de tu­do”, cli­que aqui […]