Capítulo 1
– Meu Deus! Você tem idéia do que pode ter sido?
– Não sei… Não sei… Como eu posso saber?
– Alguém aqui pode me explicar o que aconteceu? Há alguém ferido? Estão me ouvindo? Ei! Mas o que é que está havendo?
*** ***
– Todo mundo vai ficar aí parado? Vocês ficam aí com os olhos vidrados em quê?
– Escute, amigo, nós estamos tão sem jeito quanto você, só que talvez você fale demais…
– Mas eu quero apenas conversar… apenas conversar…
*** ***
– O senhor tem alguma idéia sobre isso tudo?
– Acho que vimos e sentimos a mesma coisa, não é? Vamos procurar nos acalmar, precisamos nos acalmar!
– Onde está o capitão? Ei, capitão!
*** ***
– Encontrei o capitão lá embaixo, ele está bem, ao menos fisicamente, mas fala muito pouco… Será que eu sou o único a querer falar por aqui?
– Não, claro que não. É o que ele disse: estão todos num estado de choque. Precisamos pelo menos voltar a ter domínio sobre nossos nervos.
– Tudo bem, mas vocês não acham que o melhor remédio para isso é conversarmos? Meu Deus, o que pode ter acontecido?
*** ***
Capítulo 2
– Ah, olá, capitão! O senhor está bem? Pode falar? O que houve conosco?
– Eu gostaria muito de saber, meu rapaz, muito mesmo! Mas o diabo é que não sei, não sei de jeito nenhum, entende? Estávamos navegando normalmente, vocês se lembram? Todos se lembram?
- Claro, claro, tudo ia bem até que surgiu o clarão...
- Está correto, isto mesmo! Um clarão... muito forte!
- E depois, um estrondo surdo, não foi?
- Perfeito, perfeito! Um estrondo seco. Mas e então? Ah, sim! Eu me lembro. Os aparelhos indicaram algo muito grande vindo em nossa direção, e eu avisei a todos, estão lembrados?
- Eu me recordo, sim. Acho que todos se recordam. Sim, capitão, foi isto: navegávamos num mar muito tranqüilo, depois vieram o clarão, o barulho e a apreensão. Foi assim.
- Sim, foi.
- Escute, capitão, tudo isso está claro nas nossas mentes. O problema é o que aconteceu depois, o senhor tem uma explicação em vista?
- Não, por enquanto, não tenho qualquer explicação. Olhem! Vocês percebem como o mar está quieto? Nunca vi algo assim! A água parece estar completamente parada!
- Ei, algum de vocês tem pelo menos uma vaga idéia do que pode ter se passado?
- Se nem o capitão tem, amigo, quem por aqui vai saber qualquer coisa?
- E o senhor, já se acalmou? O senhor não diz nada?
- Meu caro, estou começando a concordar com ele: você precisa dar um tempo! Você não compreende que a maioria aqui está no mar pela primeira vez e que isso aumenta a tensão?
- Desculpe-me, peço desculpas a vocês todos, mas não consigo me conformar com o silêncio. Algo muito estranho está acontecendo. Talvez nós não tenhamos tempo suficiente para descansar, sabe? Acho que precisamos de um norte rapidamente. Capitão, o senhor não deveria tentar contato com outros barcos ou com a costa?
- Pouco antes de subir, eu verifiquei nosso equipamento de rádio. Está mudo. Não há um sinal sequer! Nada funciona aqui! Você não percebeu que o barco está à deriva? Talvez não, talvez não. Quem perceberia? O mar está tão calmo!
*** ***
Capítulo 3
- Meu relógio! Está parado também! Alguém pode consultar o relógio? Meu telefone celular apagou. Algum celular por aí? - Duvido muito. Parece que todos os aparelhos, digitais ou não, pifaram. Eu já tinha consultado o meu. Qualquer coisa aí fora simplesmente anulou todos os tipos de energia de que dispúnhamos.
- Não é possível! Precisamos nos mexer, deve haver algo que possa ser feito, capitão! O senhor por favor nos oriente!
- O que eu devo fazer numa hora dessas? Não sei. Nós sempre somos treinados para enfrentar tempestades, acidentes com o barco e tudo mais, mas aqui não há nada para se enfrentar. O barco está em ótimas condições, temos comida, bebida, as cabines estão em ordem ... a água está um sossego ... o pôr do sol, como vocês podem ver, chega a ser cor-de-rosa, a temperatura é agradável, enfim, não haveria do que se queixar se não estivéssemos flutuando a cerca de vinte milhas da costa e sem qualquer canal de comunicação em funcionamento. Vocês sabem, contando a tripulação, estamos com vinte pessoas a bordo. Se alguém entende de navegação mais do que eu, fique à vontade para consertar o que for necessário, mas eu duvido. Já averigüei e não encontro uma explicação lógica para isso. Tudo parece estar travado. Vocês compreendem a situação?
- Capitão, deixe-me dizer: já ouvi dizer que uma calmaria dessas geralmente precede problemas...
- Depende de uma série de aspectos, meu senhor. Eu diria que neste momento, diante das circunstâncias que nos envolvem, nada pode ser avaliado pela lógica. Esta calmaria, o senhor não tenha dúvida, é simplesmente extraordinária, jamais vista por mim e duvido que por algum marinheiro.
*** ***
Capítulo 4
- Vocês estão percebendo uma coisa? Faz muito tempo que estamos assim, acho que pelo menos três horas, e vejam o horizonte, nada mudou, a mesma cor rósea, como se o sol estivesse se pondo. Estão lembrados de que antes de tudo isso já era fim de tarde? Deveríamos estar agora em plena noite...
- Realmente, você tem razão... Não há como sabermos as horas, capitão?
- Pelo sol? Por uma ou outra estrela? Sim, sempre temos como fazer cálculos. O diabo é que não temos nada disso ao alcance dos olhos, o senhor percebe? Não há sol nem estrelas nem lua ou qualquer movimento no céu. Ele tem razão: três horas ou mais já se passaram desde que aconteceu...
- Sim, mas o que isso importa agora? O que nos importa saber quantas horas se passaram? Aliás, nem podemos saber! Como disse o próprio capitão, não temos a lógica a nosso favor.
- Há algo mais...
- Puxa, enfim, outra pessoa disposta a falar! Estamos melhorando!
- Quando fico muito tenso, como estou agora, costumo comer por impulso. Vêem esses biscoitos? Tentem comê-los e não vão sentir gosto algum...
- Está dizendo que os biscoitos estragaram?
- Não, não parecem estar estragados. Apenas não senti qualquer sabor ao mastigá-los...
- Deixe-me ver, amigo...
- Estamos muito ansiosos, essa é a verdade...
- Ele tem razão! Não sinto o gosto!
- Ei, olhem: esses sanduíches também perderam o sabor!
- Deve haver alguma explicação, capitão...
- Sim, meu caro, deve haver, deve haver...
- Talvez um fenômeno que inclua a capacidade de anular certas propriedades dos alimentos?
- Talvez um fenômeno magnético capaz de anular certas percepções orgânicas, quem saberá?
- Sim, o capitão pode ter razão. O problema todo pode estar em nossos organismos, em nossas mentes!
- É uma hipótese razoável se considerarmos que não temos a lógica a nosso favor... Desculpe-me, amigo... Desculpe-me pela impaciência...
- Escutem: vocês já devem ter ouvido falar de alucinações coletivas e coisas assim. Quem pode dizer que não estamos enfrentando uma dessas? Que outra explicação pode haver?
- Perdão, mas não acho que tenhamos mergulhado em nenhuma alucinação coletiva. Não sou psicólogo nem parapsicólogo e nem nunca me envolvi em experiências desse tipo, mas somos um grupo tão heterogêneo, com tão poucas ligações entre nós, que acredito ser impossível participarmos juntos de uma alucinação. Na minha opinião, houve algo trágico no planeta enquanto rumávamos para a ilha, apenas isso.
- Algo como o quê? Uma bomba atômica, por exemplo? É a isso que você se refere?
- Por que não? Você julga ser tão improvável assim haver pessoas dispostas a lançar mão desse recurso?
- Esperem aí, os efeitos de uma bomba atômica ou de outras agressões bélicas seriam um pouco diferentes, não acham?
- Quem pode nos garantir?
- Parem! Por favor, parem um instante! Parece que há um rumor distante. Estão ouvindo?
- Não ouço absolutamente nada...
- Que tipo de ruído é?
- Não sei, penso ter ouvido alguma voz...
- Também não consigo perceber coisa alguma!
- Talvez tenha sido só impressão. Desculpem-me, acho que me atrapalhei.
- Pode ter sido seu desejo de deixar esse estado. Precisamos nos acautelar quanto às reações que ainda poderemos ter involuntariamente...
- Capitão, não seria bom irmos tentar o rádio novamente? Acho que precisamos agir de alguma forma. Os demais fiquem atentos o quanto podem. A essa altura, um pequeno detalhe pode ser importante para nossa sobrevivência.
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Capítulo 5
- E então? Algum sucesso?
- Nada, os equipamentos se encontram todos apagados. Aparentemente não há justificativa, nenhum defeito perceptível. Simplesmente não funcionam. Vocês viram algo?
- Tudo está como antes. Veja você mesmo: a calmaria, o horizonte cor-de-rosa sem sol e nenhum movimento de nuvens ou fenômeno meteorológico...
- Capitão, há equipamentos de mergulho no barco?
- Temos, mas devem ser usados apenas numa emergência, principalmente nesta área afastada da costa.
- Se isso não for uma emergência, caro capitão, o que seria?
- Desculpe-me, você tem razão.
- Capitão, estou apenas ouvindo as conversas desde o início. Até agora, eu não disse nada porque não me compete intervir em assuntos dos quais não entendo patavina. Quanto a mergulho, é outra história. Além de ser um hobby para mim, tenho um currículo de diversos cursos. Gostaria de me colocar à disposição para colaborar.
- Seja bem-vindo, marinheiro! Vamos prepará-lo para descer. Você sabe que não poderá se afastar muito? Também é preciso ser rápido. Francamente, não sei quais os perigos que irá enfrentar nestas circunstâncias completamente desconhecidas...
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Capítulo 6
- Capitão, pela minha contagem, falta cerca de um minuto. Se ele não retornar, o combinado é puxá-lo de volta. O senhor acha que pode ter ocorrido algo ruim?
- Acho que não. Qualquer problema teria provocado alteração no cabo. Lá embaixo, com tantas preocupações e sem relógio, ele talvez tenha se atrapalhado na marcação do tempo. Vamos aguardar...
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- Capitão, pelo menos um minuto já correu além do combinado. Talvez devêssemos...
- Muito bem, preparem-se, vamos içá-lo.
- Vamos lá, vamos lá... Puxem, puxem...
- Capitão, o peso... Não estamos conseguindo...
- Puxem, puxem, dêem espaço para mais alguns de vocês. Precisamos subi-lo!
- Capitão, isso é muito estranho, é muito peso para uma só pessoa!Estamos puxando em sete homens e o cabo não se mexe!
- Deixem-me ajudá-los, vamos, vamos... Força, força...
- O cabo não se mexe, capitão...
- Isto é impossível! Olhem para o cabo: não está totalmente estirado, mas não podemos içar aquele homem! Certamente, o oxigênio se esgotou. Se não o tirarmos de lá, ele morrerá muito depressa.
- Ei, vocês, há outra roupa de mergulho, capitão?
- Sim, vista-a depressa ou não haverá tempo para ele.
- Olhem isto! O cabo está frouxo e ao mesmo tempo, pesado. Não é possível! Não é possível!
- Capitão, não seria adequado alguém trazer material de primeiros socorros para a conclusão do resgate?
- Sim, é claro. Alguém da tripulação, rápido.
- Quem poderia explicar algo assim, meu Deus?
- Estou pronto, capitão, amarrem-me.
- Você já sabe, não é preciso recomendar cuidado, certo? Vá e volte rápido. Se, por um motivo, não houver como içá-lo, volte, entendeu? Volte depressa. Agora, vá. Pode saltar! Alguém faça a contagem de tempo...
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Capítulo 7
- Cinco minutos, capitão. Não seria tempo demais?
- Vamos içá-lo, puxem o cabo, puxem o cabo...
- Está vindo, capitão... Está vindo... Esperem, o que é que há? Vamos lá, vamos lá...
- O que houve, senhores?
- Parou, parou como antes... Está muito pesado, a mesma situação...
- Outra vez isto: o cabo frouxo e não podemos içá-lo... Como explicar?
- O que podemos fazer, capitão?
- “O que podemos fazer, capitão?”, “como se explica isso, capitão?”, “o que aconteceu, capitão?”, pelo amor de Deus, vocês podem parar de me fazer perguntas por um minuto? Eu não sei, simplesmente não sei o que podemos fazer...
- Vou saltar e tentar ver o que há...
- Está louco, rapaz? Há algo nos tragando um a um. Ninguém mais vai ao mar até descobrirmos como nos defender.
- Meu Deus, eles devem estar mortos...
- Sim, certamente eles estão mortos...
- E não podemos fazer nada! Absolutamente nada! Isto é desesperador!
- Sim, é desesperador!
- Mas o que fazer? O que fazer?
- Nenhum sinal na água, não há qualquer vestígio de um ataque de tubarões ou coisa assim, nada!
- E quanto aos cabos, capitão? Devemos deixá-los como estão?
- Corte-os...
- Cortá-los e perder os dois definitivamente?
- Não há mais vida aí, meu senhor. E manter os cabos presos ao barco sem saber o que há na outra ponta seria arriscar a todos nós... Corte-os.
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Capítulo 8
- Vou dizer a vocês o que estou pensando, posso?
- Desde o começo, venho tentando fazer com que todos falem...
- Acho que tudo isso não passa de uma brincadeira.
- Amigo, você demorou para falar, mas caprichou, hein? Sinceramente, não sei se pode haver brincadeira num barco à deriva que parece não sair de um lugar onde dois de nós acabaram de morrer...
- Aí é que está. Não acredito que eles tenham morrido.
- Ei, cara, do mesmo modo que você, também não abri minha boca para dar opiniões, mas se alguém parece estar brincando aqui, é você!
- Escutem, vocês não entendem? Pensem um pouco! O que estamos fazendo neste barco? Não fomos selecionados para um concurso? Não vamos para uma ilha participar da tal competição organizada pela televisão? Pois aí está: devemos estar sendo filmados neste momento. Nós aqui, desesperados, e as pessoas se divertindo às nossas custas diante dos televisores, é isso que está acontecendo!
- Não pode ser. Este concurso não se trata de nenhum reality show. Aliás, nem recebemos ainda as instruções completas...
- Viu? Quem garante que a filmagem desta viagem não faz parte do jogo?
- Bom, digamos que você esteja certo, como poderíamos ser levados à nossa situação atual?
- Você não assistiu ao “Show de Truhman”?
- Amigo, francamente isto não se parece muito com um cenário, não mesmo. E além do mais, como você explica o fato de ter havido um lapso de tempo em nosso trajeto? Lembre-se que não sabemos o que houve depois de termos visto o clarão e ouvido o forte estrondo.
- Quem me garante que alguns de nós não fazem parte da equipe de produção da TV? E se nos deram um alucinógeno?
- Meu Deus! Que imaginação fértil a sua. Será que você não é da tal produção da TV?
- Rapazes, ouçam uma coisa vocês dois...
- Sim, capitão?
- Você mesmo, meu caro, vem nos dizendo que seria bom conversarmos, que assim podemos encontrar um rumo. Por isso deixei-os irem adiante nesse diálogo. Mas posso afirmar-lhes com toda segurança: não há uma câmera de TV sequer nesta embarcação. Vocês não estão sendo filmados, eu garanto. Meu barco foi contratado simplesmente para levá-los à ilha. A regra de sigilo sobre cada um dos participantes também está valendo para minha tripulação e para mim mesmo. Não sei o nome de nenhum de vocês, não sei de onde vêm, o que fazem, nada, nada. Apenas tenho conhecimento, como qualquer telespectador, que há entre o grupo pessoas de várias profissões, gente pobre e gente rica, moradores de cidades e moradores do campo, nada mais do que isso. A emissora de televisão promotora do concurso mantém tudo em segredo. Enfim, não há qualquer possibilidade dessa hipótese se confirmar. Acreditem: a verdade é esta mesma que recai diante de nossos olhos.
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Capítulo 9
- Lembram-se que há algum tempo eu pensei ter ouvido um rumor estranho e distante? Agora entendo melhor. Claro que vocês não podiam ouvi-lo, ao menos não aquele. É que só havia aqui dentro, na minha cabeça, compreendem? Agora o rumor está voltando. Alguma coisa estranha! Muitas falas ao mesmo tempo em que minha memória parece estar se apagando. Meu Deus, é isto mesmo: a cada instante, esse rumor me rouba uma lembrança da vida. Vocês atentaram para isso? Não está acontecendo com nenhum de vocês? Será só comigo? Acreditem, é terrível!
- Espere. Agora que você disse eu percebo...
- Eu também...
Minha nossa, o que está nos acontecendo? Estamos enlouquecendo?
- Capitão, por Deus, o rádio continua sem funcionar? Nada mudou?
Rapazes, sinto dizer-lhes, mas não me recordo como se faz para operar os aparelhos que temos a bordo. Não sei o que pode ser isto! Eu me esqueci, não é absurdo?
- Amigos, ouçam-me. Não sabemos onde isso pode nos levar, mas uma coisa é certa: se perdermos o controle de nossas mentes, estará tudo acabado de uma vez. Precisamos nos manter conscientes de alguma maneira. A essa altura, acho que posso quebrar uma das regras do concurso, não é mesmo? Sou lingüista e sei o quanto dependemos da comunicação para nos assegurar em boas condições mentais. Não podemos permitir que nossas mentes se tornem vazias, embora não saibamos se esse é o caso. De qualquer forma, antes prevenir do que remediar, como já dizia minha avó. E, através da lembrança de minha avó, é que digo a vocês todos que precisamos com urgência exercitar nossas mentes, para que não nos esqueçamos de nosso passado e de quem somos. Algo está nos afetando e comprometendo o pensamento, e talvez esteja nesse particular a chave para nossa salvação. Proponho que comecemos a contar histórias de nossas vidas, o que vier à cabeça, mas que sejam histórias reais. Acho que assim estaremos lutando contra esse inimigo invisível que procura nos deteriorar aos poucos. Enquanto contamos nossas histórias, podemos pensar em possíveis soluções para esta situação. E então, todos de acordo? Se estiverem, também proponho que algum de nós transcreva as narrativas com os nomes dos respectivos autores, como garantia de que não vamos nos esquecer. Vamos, amigos, não percamos tempo. Quem começa? Capitão, por favor, arrume papel e caneta.
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Capítulo 10
- Minha história é sobre uma coisa que eu me lembro agora, depois de tantos anos, e acho que ela só me vem à memória porque estamos nesta situação... não estou certo disso, mas algo que me diz que sim... Bem em frente à minha casa, morava uma família de japoneses. O pai era um comerciante muito amável que saía todos os dias bem cedo. A mãe quase não saía. Cuidava da casa e das crianças. Eram três crianças. Nas festas de aniversários, eles sempre vinham em casa ou nós íamos na deles. Então, uma noite eu sonhei uma coisa horrível. Sonhei que durante uma tarde eu chegava da escola e encontrava diante da casa dessa família um grande aglomerado de pessoas, todas curiosas. Lá dentro ocorria algo estranho. Eu me aproximei. Quando cheguei perto, o comerciante estava desesperado, mas não tinha coragem de entrar. As crianças tinham sido retiradas do lugar. Eu perguntava o que estava havendo, mas ninguém respondia. Até que a mulher saiu. Mas não foi como vocês estão pensando. Ela não saiu simplesmente, se é que vocês me entendem. Ela veio como um raio e postou-se diante do marido. Então, num golpe absurdo, ela abriu uma boca tão grande, mas tão grande, que nela cabia a cabeça inteira do comerciante. E em poucos segundos ela mastigou a cabeça dele. Sabe quando comemos uma sardinha e só resta aquela escama? Foi isso. Ela sugou a cabeça do marido e só restaram pequenos ossinhos. Mas foi tudo tão rápido, tão rápido, que por alguns segundos o marido ainda se manteve vivo, mesmo sem a cabeça. E mesmo ele estando sem a cabeça, eu parecia conseguir compreender que o amável comerciante se mostrava perplexo com aquele acontecimento. Após sugar a cabeça do marido, a mulher desapareceu pela rua. Acordei muito assustado. Eu me lembro que a janela do meu quarto ficava bem de frente para a casa deles. Eu levantei bem devagarinho e na ponta dos pés fui até a janela e, no escuro, afastei um pouco a cortina para enxergar do outro lado da rua. E foi quando vi, sobre o telhado daquela casa amiga, a mãe japonesa fumando e olhando para a lua que subia cheia por detrás das construções. Meus amigos, eu era apenas uma criança e senti a urina escorrer até ensopar meus pés. Será que eu vi mesmo ou foi imaginação ou foi o que eu quis ver? Eu nunca mais consegui olhar para nossa vizinha, embora sempre imaginasse que ela ficava me encarando com um sorriso estranho.
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Capítulo 11
- Amigos, tenho certeza de que durante a história que ouvimos, todos se lembraram de passagens da própria vida que de algum modo guardam semelhanças com o que nos foi contado. Este é o exercício que propus. Às vezes, nossa mente precisa de estímulo para se manter ativa. Nas atuais circunstâncias, colaborar para que isso ocorra tem importância para nossa própria sobrevivência.
- Ei, não sei se vocês também atentaram para isso, mas não há peixes nem pássaros neste mar. Vocês viram algo se mexer na água ou sobre nossas cabeças neste tempo todo? Não sei como não me dei conta disso antes. Eu gosto muito de animais...
- Não, realmente parece não haver mais nada vivo além dos que estão neste barco e daquilo que tragou dois de nós.
- Meu Deus, isto é perturbador!
- Por isso devemos continuar com nosso exercício mental. Não podemos nos deixar abater. Quem é o próximo? Você com a mão erguida. Pode nos falar, por favor.
- Bem, também tenho algo sobre crianças...
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Capítulo 12
- Eu me lembro de um garotinho que morava perto de casa. Oras bolas, eu também era um garotinho nessa época. Me desculpem, é o que me vem à mente. Ele era muito mirradinho. E ele era bom. Era sim. Tenho certeza disso, mas assim mesmo os colegas de escola judiavam dele. Batiam nele, entendem? Não sei bem o motivo. E todas as vezes que isso acontecia, minha vontade era defendê-lo, mas nunca ... nunca tive coragem. Sei que parece bobagem falar disso agora, muito tempo depois. Me desculpem... Certo dia, num desses becos desertos, cercaram ele e bateram muito, muito mesmo. Ele sangrava pelo nariz e estava caído quando um dos outros me apontou e disse que eu também devia bater nele. Então, entre meia dúzia de crianças decididas, o que dá para fazer se você é apenas um? Mesmo contra minha vontade, eu andei na direção dele. Eu não sabia se ia chutar o garotinho ou sei lá fazer o quê... Então, aconteceu uma coisa muito estranha. Não sei se vocês vão acreditar... A uns dois ou três passos dele, eu percebi que no asfalto uma fenda começou a se abrir, uma pequena rachadura. No início, só eu me detive àquilo. Mas em seguida, a rua trincou pra valer, como se um terremoto se abatesse sobre aqueles poucos metros onde estávamos. Os outros meninos se afastaram, todos assustados. Depois, eles correram na direção oposta. Foram embora dali. Eu não sabia o que fazer e no fim também deixei o lugar correndo muito. Só parei ao chegar em casa. No outro dia, ninguém disse nada, ao menos para mim, sobre a fenda misteriosa no meio da rua. Os meninos não quiseram mais saber de atormentar o garotinho. O ano acabou e a família dele mudou-se do bairro. Algum tempo depois, eu estava em outro lugar da cidade com meu pai e lá eu avistei o garotinho. Num ímpeto, tive vontade de ir até ele e dizer alguma coisa, falar “oi” ou algo assim. Mas, vocês não vão acreditar, quando fui na direção dele e já estava a poucos metros, ele me viu e com os olhos, apenas com os olhos, indicou-me o chão. Ao redor dele, um pequeno trinco se abriu. Era imperceptível para todos, mas eu vi aquilo. Voltei e segurei firme na mão de meu pai. Ele logo foi embora dali, sem olhar mais para mim.
*** *** ***
Capítulo 13
- Vocês não me enganam com essas histórias. Elas só ajudam a explicar o que eu já disse. Estamos sendo filmados e esses casos chegam ao telespectador através da encenação de artistas, é isso. Capitão, o senhor soube representar muito bem quando tentou nos dissuadir, parabéns!
- Meu caro, você não imagina o quanto eu torço para que essa sua idéia maluca se torne uma verdade...
- Vocês ouviram algo ranger na embarcação? Parece que eu percebi algo...
- Não, acho que não. Mas vamos permanecer atentos a tudo. Em algum momento, descobriremos o que está havendo.
- Eu gostaria de contar minha história...
- Vamos lá, vamos lá...
*** ***
Capítulo 14
- Minha história é simples. Eu sou Jesus Cristo e fui enviado para purificar a alma de vocês neste mar sem fim... ahhahahahahahhahahahahahhahaha. Gostaram? Minha cara não lembra a de Cristo? Não tem importância, eu também não vi o rosto dessa mamãe japonesa que come cabeças e nem faço idéia de como é esse menino poderoso que trinca o asfalto.
- Ei, amigo. Você está bem?
- Estou ótimo. Por que não estaria? Estou ótimo como todos vocês estão. Isso tudo não está uma maravilha? Acalmem-se, irmãos. Em pouco tempo, transformarei estas águas em vinho e todos beberemos e dançaremos como naquele casamento da Bíblia, qual foi mesmo? ...hahahahahahahahah. Se vocês quiserem, podem convidar a mamãe japonesa comedora de cabeças de marido e também o garotinho abridor de fendas terrestres... ahahahhahahhahahahaha.
- Amigos, amigos, vamos nos acalmar antes de condená-lo. Ele só pode estar enlouquecendo...
- Escute aqui, rapaz: essa fala é minha, eu sou Jesus Cristo, você não se lembra? Não condenemos nossos irmãos, não condenemos... ahahahhahahahahahaha.
- Basta, senhores! Basta! Não foi para isso que dei a idéia de contarmos nossas histórias... Se vocês não compreendem a importância de mantermos vivas as nossas mentes, eu sinto muito... O azar é de todos nós...
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Capítulo 15
- O aparecimento desse Jesus Cristo aí me faz pensar se nossa fé é capaz de suportar esta provação. Se está ao nosso alcance acreditar que há uma explicação para isso. Será que ter fé ou não muda alguma coisa?
- Quem sabe se os que morreram tinham fé ou não? O caso é que eles estão mortos. Isso é real.
- Desculpem-me a intromissão, mas não acho que escapar de tragédias deve ser um termômetro para medir a fé.
- Não? Se você não acredita que a fé pode salvar sua pele quando é preciso, para que ela serve?
- Amigo, você fala em fé como algo mercadológico...
- Falo em fé como algo a que se pode apegar na hora em que você corre riscos.
- Pois é. Você encara a fé como um instrumento para salvar sua pele.
- E qual o problema disso?
- Esperem aí, meus queridos! Vocês estão falando de fé e me deixam de fora? Não se esqueçam quem é Jesus Cristo aqui! Ahahahahhahahahaah....
- Ora, cale essa boca. Isso já está dando nos nervos...
- Acalme-se, irmão... Não seja grosseiro com o papai aqui... Aliás, com o papai do céu aqui...hahahahahahahah...
- O problema é que a fé não é um arquivo ao qual você pode recorrer quando seu computador é afetado por um vírus, ok?
- Claro, eu preciso ter fé para que ela sirva de precaução contra o vírus, certo?
- Digamos que isso seja mais justo.
- Ora, e qual a diferença entre ter fé antes ou ter fé durante? Por acaso, seria por uma questão de respeito? Se você precisa ter fé antes para que ela dê algum resultado, isso não é mercadológico? Não seria um “adiantamento”?
- Eu não disse nada disso. Só acho que a fé não é uma mercadoria que fica à sua disposição na prateleira...
- Mas também não pode ser um um banco onde você deposita suas esperanças todos os dias para um dia conseguir o crédito necessário, ora...
- Eu é que sei, eu é que sei, irmãos... Vocês deveriam me ouvir mais... hahahahahahahhahaah...
- Alguém faça esse sujeito calar a boca?
*** ***
Capítulo 16
- Algo me veio à cabeça: a queda de um asteróide na terra. O clarão, depois o estrondo. Quem sabe o oceano está calmo assim apenas porque muito em breve sofrerá as conseqüências do acidente!
- Amigo, numa outra situação, eu tomaria sua observação como piada, mas sou obrigado a considerá-la plausível diante deste estado de coisas...
- Vocês dois aí, se pensarmos assim, mais provável seria uma invasão de extraterrestres, vocês não acham? Extraterrestres esfomeados por humanos, como são vistos em alguns filmes. Afinal, dois de nós já se foram. Quem sabe?
- Vejam, todos! Não são pássaros lá longe? Aqueles pontinhos escuros, não são pássaros?
- Onde estão? Não os vejo...
- Olhe na direção do poente...
- Nada, também só vejo a cortina rósea.
- Esperem, esperem! Não vejo pássaros, mas algo parece ter se alterado naquela direção. Vocês percebem? Atentem para a linha que demarca o encontro do horizonte com o mar. Não lhes parece que houve uma mudança na tonalidade? Tenho a impressão de que a cor rosa aos poucos está se transformando num azul muito claro...
- Talvez você tenha razão, mas é algo incerto. O que o senhor acha, capitão?
- Ele pode estar certo, assim como pode estar errado. Meu Deus, diante de tudo que se passa, só há espaço para dúvidas e incertezas, eis a verdade. Mas vamos procurar ficar atentos a isso. Se essa alteração se confirmar, ao menos saberemos que nem tudo se encontra imutável...
- Escutem, tenho que lhes dizer algo que talvez nos traga mais desalento, mas assim mesmo lhes digo: o que nos está afetando também deve nos causar visões. Acabo de ver uma criança passeando pelo convés... Desculpem-me, mas havia algo... Eu não sei... Mas havia também um cão ou um lobo...
*** *** ***
Capítulo 17
- Mas lhe pareceu uma visão?
- De maneira alguma! Por um instante, os dois me encararam e não pareciam nenhuma miragem...
- Para onde foram?
- Na direção do traquete, é assim que se chama aquele mastro, certo, capitão?
- Sim, é isso mesmo. Vamos ver se encontramos algo, mas tomem cuidado.
- Estou achando tudo isso muito divertido, sabem? Pelo menos, arrumei uma ocupação: tento descobrir quem faz parte da farsa montada pela emissora de televisão que está nos levando à ilha. Sorriam, vocês estão sendo filmaaaadooos! Um lobo... Essa é boa! É, colega, você é um de meus candidatos favoritos a farsante.
- E, então? Alguém está vendo alguma criança, algum lobo ou outro animal a bordo?
- Nada, capitão! Não há nada por aqui...
- Nem deste lado do barco.
- Eu poderia jurar que era de verdade!
- Acalme-se, amigo, todos estamos alterados.
- Bela encenação, rapazes! Continuem, continuem!
- Alguém pode fazê-lo calar a boca?
- Ora, ora, não está mais aqui quem falou. Vocês agüentam esse Cristo fajuto e estrilam comigo? Fique calmo. Bom, enquanto vocês procuram seu lobo, pretendo provar a mim mesmo que estou certo.
- Ei, o que você está fazendo? Pare aí?
- Parem aí, vocês! Estou farto dessa palhaçada idiota. Vou dar um rápido mergulho e descobrir o submarino que está bem embaixo deste barco. “Uma coisa grande vindo em nossa direção”, lembram-se?
- Meu jovem, não faça essa idiotice. Acredite: você está errado.
- Meu capitão, desculpe-me, mas a brincadeira acabou. Bye, byeeee.....
- Segurem-no... Desgraçado! Ele saltou mesmo!
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Capítulo 18
- Rápido, uma corda!
- Uma corda para quê? Ele quer segurar uma corda?
- Sabe-se lá, um louco...
- Vamos lá, rapaz, vamos lá, suba logo, suba logo, saia dessa água...
- Aí está o paspalho...
- Socorro! Socorro! Os ETs querem me comer! Eles são verdes e lisos! Socorro!
- Desgraçado outra vez! Ele está brincando com todos aqui! Olhem como se diverte!
- Escute aqui, rapaz, você já se divertiu o bastante. Agora volte para o barco, pelo amor de Deus!
- Calminha aí, marinheiros de primeira viagem. Vou dar mais uma olhada nestas águas.
- Vamos lá, amigo, não seja tolo, volte logo para este barco...
- Ei, mas o que é isso? Eu não posso... Ei, me ajudem... Sério mesmo, me ajudem! Eu não posso... Socorro!...
- Meu Deus, alguém faça algo!
- Atirem a corda, rápido!
- Mas que idiotice ele fez!
- Ele não segura a corda, está tendo espasmos, olhem...
- Mas o que aconteceu com ele? O que há na água?
- Está imóvel, e os olhos abertos, que coisa horrível!
- Será mais uma brincadeira de mau gosto?
- Acho que não! Meu Deus, acho que não!
- Ele está morto, capitão?
- Pelo visto, sim...Mais um que se vai.
- Não há como resgatar o corpo?
- Você se arriscaria?
*** ***
Capítulo 19
- Capitão, até aqui, calculamos o tempo, mas acredito que isso será cada vez mais difícil. Não seria melhor nos revezarmos na contagem? Ou o senhor acha desnecessário?
- Claro, claro, vamos fazer isso. Não podemos perder a noção do tempo, de forma alguma. Vou pedir a alguém da tripulação para que inicie a partir de agora. Levemos em conta que estamos há cinco horas no mar, está certo?
- Amigos, sugiro mudarmos um pouco nossa posição no convés. Não está nada agradável a visão do cadáver nos fitando com aqueles olhos esbugalhados.
- Vocês percebem lá no horizonte? Eu estava certo! Vejam onde mar e céu se encontram: o tom rosa vai aos poucos dando lugar para o azul.
- Deixe-me ver... Sim, você tem razão. Olhe, capitão. Com a luneta, a alteração é mais perceptível.
- Realmente, rapazes, realmente. Isso é um alento, não acham? Ao menos é possível que alguma coisa acontecerá. Não sei dizer se o movimento do barco é responsável por esse fenômeno ou se está havendo uma transformação climática ou algo parecido.
- Capitão, talvez o acidente, a bomba ou seja lá o que aconteceu tenha esticado o dia. Talvez o azul seja um sinal de que estamos rumando para a noite...
- Tudo pode ser, meu caro, tudo pode ser...
- Amigos, não seria interessante continuarmos nosso exercício mental? Sei que estamos muito ansiosos, mas o caso é que também percebo minha memória se esvaindo aos poucos. Talvez essas histórias e nossas anotações nos sejam muito úteis caso nos esqueçamos muito mais coisas...
- Sem dúvida, vamos continuar. Quem se dispõe?
*** *** ***
Capítulo 20
- Eu percebi uma coisa aqui... não sei se estou certo... Estamos falando de coisas sobrenaturais ou algo assim, não é mesmo? É isso que vem à nossa mente neste lugar que nós nem sabemos onde fica... É curioso porque eu também me lembro de uma coisa que me aconteceu há muito tempo, eu também era menino ainda. Foi numa estrada secundária, muito perto de minha casa naquela época. Eu voltava da escola sozinho e percebi que, a uma certa distância, uma moto rumava na minha direção. Talvez ela estivesse ainda a um ou dois quilômetros, não sei ao certo. Mas eu sabia que algo ia acontecer. Não sei como e nem por que, mas eu sabia disso como dois e dois são quatro. Então, num segundo, percebi que eu não podia me mexer, vocês entendem? Eu estava travado ali, à beira do asfalto, e só me restava olhar para aquela moto em movimento. Ela veio, veio e quando estava a poucos metros eu pude ver bem à frente dela uma pedra na estrada. Não houve tempo para nada. O motoqueiro não pôde desviar. A roda dianteira se chocou com a pedra e a moto deu várias cambalhotas. Foi um tombo feio, horrível mesmo. O sujeito deve ter subido vários metros no ar para depois cair de cabeça no asfalto. Ele não usava capacete e eu pude ouvir quando o crânio dele se quebrou fazendo um barulho medonho. Eu estava a coisa de dois ou três metros de onde ele se encontrava estatelado e agora, mais do que misteriosamente imobilizado, eu também estava congelado de pavor, mas ficaria muito mais, não duvidem disso... Poucos segundos depois do acidente, sem que eu pudesse acreditar no que meus próprios olhos me mostravam, vi o motoqueiro sentar-se no meio do asfalto. Ele ergueu-se ainda com o crânio gravemente partido. Eu podia ver uma cratera que se abria bem em cima de sua cabeça como essas erosões em que as rachaduras tomam várias direções. Assim, nessas condições, estou dizendo a vocês, ele levou as mãos à cabeça e apertou daqui, apertou dali, até que aquela carcaça manchada de sangue se encaixou novamente. Petrificado, eu assisti a essa cena. Embora ele me olhasse, parecia não me ver. Eu só consegui voltar a me mexer quando o motoqueiro partiu acelerando sua moto debaixo de um sol escaldante de verão ao meio-dia.
*** *** ***
Capítulo 21
- Ei, o que aquele sujeito está fazendo?
- Mas que idéia atrapalhada! Por que fez isso?
- Enquanto estávamos aqui entretidos, ele desceu um bote salva-vidas...
- Rapaz, você está louco? Não bastam as tragédias que já aconteceram aos outros?
- Poupe a garganta, capitão. Ele parece não querer ouvir...
- Mas o que ele vai fazer?
- É melhor que não seja o que estou pensando...
- Você acha que ele trará o cadáver a bordo?
- Espero que não... Espero que não. Quem sabe o que poderá vir junto?
- O que ele quer?
- Está se debruçando sobre o cadáver... Onde quer chegar?
- Não faça isso, rapaz. Não mantenha contato com o corpo, não sabemos o que algo assim pode acarretar.
- O que o fez agir dessa maneira? Será que estamos perdendo de vez o controle sobre nossas mentes?
- Vejam, ele está se afastando aos poucos.
- Graças a Deus!
- Volte para cá, meu jovem!
- Preparem-se para subi-lo.
- Capitão, embora não pareça, nosso barco está em movimento, não está?
- Sim, certamente está. Se você for à proa e observar rente à embarcação, poderá perceber um constante risco na água provocado pelo contato com o casco.
- Está certo, capitão. Eu imaginava que fosse assim. Como, então, explicar que o cadáver se mantenha na mesma posição? Acho que deveríamos tê-lo perdido de vista ou pelo menos o deixado para trás, não é?
- Sim, meu caro, acho que nenhum de nós havia pensando nisso... Você tem razão. - Ele permanece ali, a boreste, à mesma altura de antes...
*** *** ***
Capítulo 22
- Joguem a escada, ele está bem aqui.
- Vamos lá, rapaz, suba. Está se sentindo bem?
- O que deu em você, afinal?
- Desculpem-me, desculpem-me... Eu não pude resistir...
- Resistir a quê? Vamos, diga!
- Aqueles rumores infernais em meus tímpanos pareciam vir de lá...
- Mas que besteira, como poderia um cadáver causar rumores?
- Não desacredite, amigo... Enquanto vocês ouviam a história, resolvi me aproximar do corpo. Podem dizer que estou louco, mas quando encostei meu ouvido bem próximo à boca dele, pude ouvir uma vozearia muito fraca, mas ininterrupta. Muitas coisas estão abandonando aquele corpo agora, acreditem...
- Mais essa? Será que sobreviveremos a esta loucura?
- Capitão, veja através da luneta. Eu tinha mesmo razão: olhe como o horizonte cor-de-rosa vai lentamente sendo tingido de azul.
- Deixe-me ver...
- Será que estamos indo na direção da noite?
- Na verdade, o céu vai se azulando muito devagarinho...
- Posso lhes perguntar uma coisa? Noite ou dia, em que nossa situação vai mudar? Se realmente vier a noite, os aparelhos e o rádio voltarão a funcionar? Poderemos controlar o barco? Nós recuperaremos a memória que estamos perdendo aos poucos? Os mortos voltarão a viver?
- Rapaz, talvez nada disso aconteça, mas quando as perspectivas são nulas, qualquer novidade é bem-vinda, mesmo sendo uma incógnita. Nós devemos estar há pelo menos sete horas no mar. Isso quer dizer que estamos próximos de meia-noite, e mesmo assim há claridade do dia. Para nossa região, isto é simplesmente impensável. Se daqui a algumas horas, a noite vier, saberemos que ao menos o planeta segue girando, compreende?
- Capitão, ocorreu-me algo que pode de certa forma alterar essa teoria. Nós tivemos um lapso de tempo, período do qual não nos recordamos de absolutamente nada, correto? E se acaso esse período tiver sido muito mais longo do que achamos que foi?
- É uma hipótese, meu caro, é uma hipótese. Só poderemos ter uma noção mais adequada sobre o tempo quando finalmente escurecer e, então, vier novamente a aurora. Antes disso, só haverá suposições. O que podemos fazer?
- Senhores, sinto que às vezes fogem-me mais rapidamente as lembranças. Não deveríamos continuar com as histórias? Pelo que tenho visto, pelo menos enquanto nos entretemos com elas, ficamos bem...
- Sim, vamos ao próximo.
*** *** ***
Capítulo 23
- Essa história de que só estamos conseguindo nos lembrar de coisas estranhas não está bem contada. Não senhor. Acontece é que nós estamos impressionados com isso tudo, eu acho... Somos levados a pensar em coisas estranhas, vocês me entendem? Eu também estou pensando nelas. Eu estou aqui, não estou? No que vocês acham que eu poderia pensar? Vocês acham que eu conseguiria me lembrar de coisas boas? No meio de uma tragédia você se lembra de coisas boas? Não é difícil? O caos nos faz caóticos, eu acho...
*** *** ***
Capítulo 24
- Vocês se sentem cansados? Algum de vocês? Eu estou exausto. Minhas pálpebras pesam mais a cada segundo. Vocês não?
- Meu caro, procure descansar. Vá à sua cabine e durma um pouco. Talvez por ser o mais agitado entre todos aqui, suas energias se esgotaram antes. Se houver alguma novidade, mandarei avisar.
- Está bem, capitão. Ninguém mais? Preciso ao menos me deitar um pouco...
- Ficaremos atentos, meu caro, não se preocupe... *** ***
- Ah, e então? Conseguiu descansar?
- Acho que sim, capitão. Pelo menos sinto-me disposto novamente.
- Quer comer algo? Mesmo sem sentir o sabor, acredito ser necessário nos mantermos alimentados...
- É verdade, comerei algo. Mas me diga: algo de novo?
- Apenas a leve alteração de cor que segue seu curso no horizonte, nada mais. Esperávamos para prosseguir com as histórias...
*** *** ***
Capítulo 25
- Eu consigo me recordar de uma coisa que parece ter sido ontem... Curioso, vocês não acham? Uma coisa que aconteceu há tanto tempo, mas que está tão fresca na minha memória... ao contrário de tudo mais, que me custa muito lembrar, se é que eu me lembro ainda... Sabe, eu ia muito à praia quando era adolescente. Aliás, nas minhas férias, eu só ia à praia. Por falta de um, eu tinha dois tios que moravam em praias deliciosas. O que não faltava era lugar para ficar. E eu sempre estava lá, na casa de um ou de outro. Tanto numa como na outra praia, eu fiz amigos. Vocês sabem como são os adolescentes. Nós sempre estávamos em grupos de quatro ou cinco, às vezes com meninas, às vezes sem meninas... Um dia, quando a noite já começava a cair, meu pessoal se despediu e eu ainda fiquei por ali, andando, observando alguns barcos de pescadores lá adiante, os últimos surfistas que recolhiam suas pranchas, algumas pessoas fazendo essas caminhadas de fim de tarde. Então, resolvi dar mais um mergulho. A água chegava a estar quente... acho que vocês podem imaginar esse prazer... Bom, eu deixei a praia para trás e fui dar meu mergulho. O sol já tinha entrado completamente e a noite seria muito clara, uma bela noite de verão. Eu estava me preparando para mergulhar... E foi quando aconteceu... Bem ao meu lado, coisa de um metro à minha direita, uma imagem muito reluzente me despertou... Era algo que brilhava muito debaixo d'água, vocês entendem? Parecia haver ali uma luz tão forte que se eu olhasse para o céu, daria para ver aquele brilho entrar pela imensidão escura... Mas eu não pude olhar porque jamais alguém pensaria em se desviar daquela aparição... Eu não fiquei amedrontado ou coisa assim, mas muito admirado, maravilhado mesmo, vocês imaginam? Então, eu tentei me aproximar ainda mais, e fui em direção daquela luz sem saber direito o que estava acontecendo, o que eu estava fazendo... Quando me dei conta, quando recuperei minha consciência, senti um tecido áspero resvalando em minhas costas, em minhas pernas, em todo meu corpo. Foi quando despertei de verdade e nessa hora eu vi que estava envolvido por uma rede... sim, era uma rede de pescadores e eu estava sendo capturado em alto mar...eu tinha sido pescado! Quando me tiraram da água, os pescadores não podiam acreditar no que viam. Eles tinham pescado um garoto de 16 anos, nu, e todo machucado... Amigos, meu pênis estava tão inchado... meu Deus, por que estou contando isso agora? Foi uma coisa tão estranha... Vocês acreditam que há no mar criaturas além das que conhecemos?
- Meu filho, ouça-me! Eu que já andei sobre as águas posso dizer que você é casado com uma sereia e pai de um peixe... ahahahhahahahaha. Vamos logo encontrar esse seu filho para que eu possa multiplicá-lo e assim teremos o que comer... ahhahahahahhaha...
- Por que esse sujeito não desiste?
*** *** ***
Capítulo 26
- Capitão, perdoe-me, mas não tínhamos dezessete pessoas a bordo?
- Correto, éramos vinte, morreram três...
- Pois aqui, neste momento, temos presentes apenas dezesseis...
- Alguém mais terá inventando outra besteira?
- Temos que dar uma busca no barco, rápido!
- Você, por favor, tome a luneta e veja se vê algo no mar além do cadáver que ainda nos segue...
- Revistem as cabines. Ei, há alguém aí? Alooooooooô! Alguém por aqui?
- Nada aqui... não, espere... Meu Deus! Venham, depressa!
- Santo Deus! Mas o que aconteceu aqui?
- Como pode ter havido algo assim?
- Veja, ele está todo sujo! O que será esta substância esverdeada?
Escutem, há um ruído...
- Sim, vem da boca dele!
- Aqueles rumores...
- Não, esperem! Não são rumores... Ei, ele está vivo, está querendo dizer algo! Os olhos... Vejam, achei que, como o outro, estivesse morto mas com os olhos esbugalhados! Ele está vivo! Ei, vamos lá, diga algo, amigo. O que houve?
- Saia da frente, deixe-me passar, saia da frente...
- Espere, onde você pretende ir? Pelo amor de Deus!
- Segurem ele!
- Não há como segurá-lo, ele parece estar tomado por uma força descomunal, ajudem-me aqui, ajudem-me aqui, por favor!
- Vocês aí em cima, tentem pará-lo... Meu Deus, o que acontece aqui?
Vamos, rápido!
- Vocês não puderam segurá-lo? Ele saltou?
- Passou por nós como um raio. Veja, próximo ao cadáver...
- Terá morrido também?
- Tudo leva a crer...
*** *** ***
Capítulo 27
- Capitão, desculpe-me, mas tenho que perguntar: o que vamos fazer? Alguma coisa está nos matando aqui dentro agora...
- Deixe-me pensar, deixe-me pensar... Não podemos permanecer isolados, esta é a primeira providência. Por favor, ninguém ande sozinho neste barco.
- Dê-me a luneta, ele não se mexe?
- Não, apenas está lá, os olhos bem abertos, não há mais qualquer movimento.
- Quatro já morreram, quatro...
- É isso mesmo, amigo, estamos morrendo.
- Acalmem-se, por favor, vamos manter o controle da situação. Se ficarmos juntos, é bem provável que não nos aconteça nada. Algo que não sabemos está agindo, mas apenas enquanto não podemos ver, apenas quando estamos sozinhos. Vamos ficar juntos, é isso.
- Até quando? Até quando vamos suportar isso?
- E se anoitecer? Não temos luz, lembram-se disso?
- Há lanternas a bordo, capitão?
- Sim, mas como sabemos nada funciona, meu caro, inclusive as lanternas.
- Velas, fósforos?
- Não acendem, eu tentei quando vasculhava uma das cabines.
- Precisamos pensar, precisamos pensar, minha mente parece continuar se esvaziando...
*** *** ***
Capítulo 28
- Ei, você com a luneta, algo novo?
- Acreditem: o horizonte está se transformando. Veja você mesmo!
- Sim, o tom rosa está quase desaparecendo...
- O senhor pode dar uma olhada, capitão?
- É isto mesmo, senhores: não sei dizer do que se trata, mas estamos rumando para uma situação diferente. Alguém mais quer ver? Aproveitem, vocês não estão cansados de olhar para a mesma coisa há tanto tempo?
- Meu Deus, me digam que estou enganado... Vejam aquilo!
- Eu não compreendo, como pode ser?
- Quem é ele?
- O que aconteceu?
- Veja lá, agora há três corpos boiando ao nosso encalço, como isso pode ser verdade?
- Eu não posso acreditar...
- Quem foi desta vez?
- Aquele senhor que aparentava muita serenidade, vejam...
- Eu não sei o que pensar. Qualquer um de nós pode ir para aquele cemitério marítimo a qualquer momento. Não vamos conseguir impedir isso, não vamos...
- Acalmem-se, acalmem-se...
- Capitão, o senhor nos diz isso, mas parece estar mais nervoso do que todos aqui. Nós estamos sendo mortos, um a um, e ninguém pode nos salvar, o senhor não compreende isso?
- Sim, compreendo. Por isso mesmo, precisamos ficar juntos, não podemos nos separar...
- Ficar juntos, ficar juntos... Nós estávamos juntos, todos estavam aqui, mas algo naquele mar atraiu o pobre homem, coitado...
- Sim, ele foi atraído, mas ninguém o viu se dirigir ao mar. Acho que aconteceu quando estávamos entretidos com a luneta.
- Lá estão os três, todos eles nos observando com aqueles olhos arregalados, é assustador...
- Deus me perdoe, mas estou ouvindo aqueles rumores vindo da direção dos mortos, vocês não escutam? Prestem atenção, ouçam...
- Sim, ele está certo, também posso escutar...
- Parecem cochichos...
- Um som intermitente, percebem?
- Como uma ladainha distante...
- O que será isso?
- Amigos... bem, acho que já posso chamá-los assim, não é? Já que estamos morrendo juntos, acho que já podemos nos considerar amigos, não é? Perdoem-me.... Eu não posso suportar... Perdoem-me...
- Ei, amigo, fique calmo... Estamos todos no mesmo barco... Quer dizer, literalmente no mesmo barco... Vamos seguir o que disse o capitão, vamos permanecer unidos e atentos. Não podemos permitir que outro de nós se vá... Acho que devemos seguir com nossas histórias. Alguém já disse e parece mesmo ser verdade: ao menos enquanto as contamos, nada nos têm acontecido. Além do quê, elas servem para avivar nossa memória.
*** ***
Capítulo 29
- Histórias? O que já nos resta? Somente bobagens... Apenas lembranças vagas sobre coisas que nunca acreditamos e às quais agora, metidos no absurdo, resolvemos nos apegar. Quem disse que elas mantêm nossa sanidade? Quem está aqui em sã consciência? O que essas histórias nos trouxeram? Por que estamos dizendo que elas nos ajudam? Você pensaram nisso? Estamos morrendo, eis a única verdade. O céu torna-se azul? Estamos mais seguros juntos? E de que vale isso tudo? Que progresso tivemos? Amigos, a história está aqui. Não é preciso nos apegarmos a lembranças pueris. Esta é a nossa história. A história da nossa morte, compreendem?
- Amigo, eu compreendo que você esteja afetado por tantas amarguras. Mas não podemos pensar como você... não, não podemos. Ou estaríamos entregues ao nosso fim. Estaríamos entregando os pontos...
- Ahahhaahahahah... Desculpe-me, amigo... Nem sei mais o que pensar... Acho que você tem razão. De minha parte, já entreguei os pontos.
- Escutem, vocês... escutem... Vocês já pensaram numa hipótese absurda? Mas que, diante de tais circunstâncias, pode ser aceitável? Já pensaram se nesta imensidão da Terra apenas restamos nós? Vocês já pensaram?
*** *** ***
Capítulo 30
- Acho difícil pensar em qualquer coisa que não seja naqueles mortos que nos olham e na própria morte que nos vela...
- Sim, nisso também, mas já imaginaram se formos os únicos sobreviventes? Que ironia, não? Estamos em quinze, mas já poderíamos considerar a raça humana aniquilada... Nem uma mulherzinha aqui, meus camaradas...
- Ria, amigo, ria...
- Rir, será que conseguiremos rir outra vez um dia?
- Ei, mas o que é aquilo? Vocês estão vendo aquilo? Olhem para lá, pelo amor de Deus... Não estamos mais em quinze...
- Como isso pôde acontecer? Nós estamos aqui, juntos! Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! Mate-nos a todos de uma vez, eu imploro...Ai, meu Deus, eu imploro... Mate-nos a todos de uma vez...
- Capitão, perdoe-me, mas não é possível aceitarmos isto! Temos que fazer algo! Vamos abaixar um bote salva-vidas, por favor, eu não agüento mais... Vamos até lá, vamos ver de perto esses corpos. Temos que encontrar uma resposta...
- Capitão, não o deixe fazer isso! Não podemos facilitar assim!
- Vamos, capitão, dê-me um bote... Estamos morrendo um a um. Ao menos, não ficaremos esperando pela morte...
- Está bem, está bem...
- Você está louco, amigo. Em vez de procurar uma maneira de não sermos atraídos para esse cemitério marítimo, você vai nos entregar... Você está louco...
- Sim, talvez esteja mesmo, mas vou.
*** *** ***
Capítulo 31
- Está pronto, rapaz, pode descer...
- O senhor é conivente, capitão, o senhor é conivente...
- Vamos lá, segurem o cabo, não me deixem à deriva...
- Boa sorte, rapaz, tome cuidado... Ficaremos alertas...
- Alertas! Como se pudéssemos resolver algum problema aqui! Vocês estão criando mais um problema, isso sim!
- Capitão, olhe no rumo da proa: um navio, capitão, um grande navio, graças a Deus, um navio, estamos salvos, um navio, capitão...
- Acalme-se, homem, acalme-se. Que navio? Onde?
- Ali está, capitão, ali está... Graças a Deus, um navio, capitão... Graças a Deus... Vamos, aqui, ei, aqui, estamos aqui... Salvos, capitão... Salvos...
- Por Deus, onde está esse maldito navio? Algum de vocês o vê?
- Está ali, capitão, sim, eu também o vejo... Que beleza, olhe, o senhor não vê, capitão? Que beleza de transatlântico... Com certeza vem nos salvar...
- Amigos, cuidado, algo está errado, eu não vejo barco algum além do nosso!
- Sim, capitão, algo deve estar errado com o senhor...
- Ficou cego, capitão? Pelo amor de Deus! Eis nossa salvação a poucas braças de nossa posição... Vamos, capitão, vamos nos preparar para a baldeação, venha...
- Homens, acalmem-se, não há barco algum... Ei, rapaz, volte daí, deixe esses corpos aí, volte! Alguma coisa muito estranha está acontecendo com estes homens! Volte depressa!
- O que disse, capitão? Não posso ouvi-lo. Há por aqui uma espécie de vozearia ininterrupta! É horrível... O que estará acontecendo?
- Vamos, capitão... Vamos, amigos... Eis nosso navio tão perto! Vamos embarcar... Estamos salvos!
- Homens, por Deus, não façam isso. Não há navio algum. Esperem, não... Não vão por aí! Não, não saltem... Meu Deus, vocês todos vão morrer...
*** ***
Capítulo 32 (Epílogo)
- Ei, capitão! Dê uma mão aqui, ajude-me a subir...
- ...
- Capitão, foi bom ter ido aos cadáveres... Lá, muito perto deles, algo me ocorreu! Como já sabemos, seria tão improvável e absurdo em circunstâncias normais que ninguém diria, mas aqui me parece perfeitamente aceitável. Veja se estou certo, capitão... Mas o que está havendo, capitão? Que cara é essa? Ei, onde estão os outros? Onde estão todos? Capitão, onde estão todos? Ei, amigos! Ei, vocês todos! Onde estão?
- Não há mais ninguém, meu caro...
- ...
- Eles também se foram...
- Como o senhor disse, capitão?
- Morreram. Todos morreram...
- Não, isso é impossível! Há alguns minutos, estavam todos aqui no convés... Capitão, não diga uma coisa dessa, vocês estavam em treze pessoas aqui... Como doze de vocês podem ter morrido, capitão? Não brinque desse modo, capitão, não agora!
- ...
- O senhor tem certeza? Mas como isso seria possível, meu Deus?
- Eles diziam que havia um navio, um grande navio... Foram saltando a bordo, um atrás do outro, mas caíam na água, lógico...
- E o senhor, capitão? Não houve como segurá-los? O senhor não os alertou? Ninguém ouviu suas ordens, capitão?
- Escute, rapaz, não grite comigo, por favor! Apenas ouça: você já enfrentou doze pessoas insanas?
- ...
- Enlouqueceram! Já tinham tido outras visões, você se lembra? Achavam que havia uma salvação...
- Uma salvação...
- Sim, uma salvação... O barco, o grande barco que eles viam...
- Capitão, perto daqueles corpos, eu imaginei algo...
- Sim?
- O que pode estar nos matando desse jeito senão algo que desconhecemos completamente? Nós tentamos até aqui buscar nossa salvação por meio de métodos usados em proteção convencional, o senhor entende? Ficarmos juntos, ficarmos atentos, de olhos bem abertos... Bobagens, capitão... Bobagens de nossa cotidiano moderno...
- O que você quer dizer?
- O senhor quer prova maior do que esta? Doze mortes de uma só vez? Doze pessoas descontroladas, dominadas pelo nosso inimigo invisível? Poderia haver aqui, meu caro capitão, todos os exércitos do mundo, e mesmo assim eles não seriam capazes de deter essa força que nos está consumindo. Essa coisa está gritando a plenos pulmões que não somos nada, capitão!
- Espere aí, você diz que devemos nos entregar, é isso? E essa agora? Você ainda se diverte às custas disto? Escute sua gargalhada!
- Perdoe-me, pobre capitão, perdoe-me. O senhor não compreendeu, realmente o senhor não compreendeu...
- Não, e você quer fazer o favor de me explicar?
- Capitão, não há como fugir...
- Escute, você está mudado... Algo aconteceu lá entre os cadáveres, algo o infectou?
- Ora, capitão, não seja estúpido...
- Estúpido?
- Desculpe-me, capitão...
- Você ri novamente? Olhe para você mesmo! Olhe como está transtornado!
- Capitão, meu pobre capitão, por um momento, lá entre os cadáveres, e enquanto pensava nisto tudo, imaginei que o senhor a esta altura de nossa conversa estaria com um leve sorriso professoral estampado na face...
- Você pirou mesmo, homem... Não o compreendo, estava tão bem!
- Não, capitão, agora é que estou bem... Essa coisa não pode mais me atingir, saiba disso...
- O que você diz, homem?
- O senhor não imagina, mesmo, capitão? E eu esperando que essa figura altiva e impávida se revelasse meu barqueiro...
- ...
- Capitão, acorde, meu caro... Acorde para a morte, capitão... Olhe para o azul que vem se fechando sobre nossas cabeças, olhe como agora o céu se tinge mais depressa... Veja, capitão, ali adiante: não há mais mar, meu amigo. Acabou-se... Ali está o fim deste sonho que se esvai... Estamos mortos, capitão... Olhe para nós, meu pobre amigo, eram só os ecos de nossa morte que nos atormentavam, apenas isso, entende?
- Não, não pode ser... Você está enganado...
- Estou certo, capitão, o senhor descobrirá logo... Eu já descobri... Aqueles mortos, agora entendo, agora me lembro, todos eles, eu me lembro...
- Você enlouqueceu... Vamos nos proteger... Veja, amigo, veja: a luneta nos mostra uma grande onda vindo em nossa direção. Olhe você mesmo...
- Não há onda, capitão...
- Olhe você mesmo, olhe, olhe... Eu já posso vê-la a olho nu...
- Não há onda, capitão...
- Você não quer vê-la, não é? O medo de marujo novato... Não tenha medo, meu rapaz. Aqui há um bravo capitão...
- Bem, capitão, cada um a vê de um jeito... Está certo, está certo...
- Era isso, algum dos homens matou a charada. Houve um acidente nuclear ou coisa parecida, um meteoro, sei lá. A calmaria prenunciava a tormenta... Uma grande onda vindo em nossa direção. Olhe para ela, amigo, não é linda? Será que poderemos atravessá-la neste barco? Olhe para ela, meu caro, não é extraordinária? E não a tínhamos imaginado à distância! Uma grande onda! O mar se revolta! Você não quer que seja um acidente nuclear? Não aceita a queda de um corpo celeste? Não? Então, rapaz, contente-se com isto: o mar se revoltou com tanta pilhagem! Ahahahahahahahahahah... A fúria do mar contra seus algozes... Você sabe, querido amigo, há séculos e séculos pilham o mar, sabe disso? Isso mesmo! Dilapidam seu patrimônio sagrado, tudo é levado em nome do lucro. É isso, meu caro. Eu mesmo já o fiz. Pagarei agora, pagarei pela pilhagem. A revolta do mar! Quer mais, amigo? Quer mais? Até as histórias, até as histórias vão de volta. Vocês mesmos testemunharam: os rumores, lembra-se, meu rapaz, os rumores que saíam das bocas dos cadáveres? É isto, homem: o mar retomando para si as histórias a nós confiadas. Não se lembra como havia uma trégua quando as contávamos? Lembra-se disso? Contávamos nossas histórias e ele se acalmava. Parávamos e ele nos pegava. A vingança do mar numa terrível onda... Uma nova onda capaz de intrometer-se no tempo, suficiente para mudar o rumo de tudo, uma outra onda, mais uma onda...Olhe para ela, meu querido amigo, olhe para essa beleza imensurável, um arranha-céu líquido, a vingança, mas assim mesmo tão bela...
- Pois que seja, meu amigo capitão, que seja... Vamos abraçados... Vamos juntos para ela... Vamos como irmãos para ela...
*** FIM ***