Por e-mail, conversei com Alessandro Silva (foto), repórter da Folha de S.Paulo. Alessandro, que começou a carreira no interior, produz principalmente matérias para a editoria de Cotidiano. Segue a nossa primeira e-mailvista (entrevista por e-mail), um espaço em que o entrevistado jamais poderá reclamar do entrevistador: as respostas vão ao ar na íntegra.
Márcio ABC: Alessandro, vc é um repórter que, na Folha de S.Paulo, vive em meio aos problemas da população. E um dos principais problemas, senão o maior, é a falta de segurança, tema sobre o qual vc tem feito grandes reportagens. Vc consegue vislumbrar soluções eficazes num curto prazo para a questão da segurança?
Alessandro: infelizmente, não. Podemos fazer um paralelo com o DNA. Ainda não terminamos a decodificação do “genoma da violência” para saber em qual parte precisamos agir, com que força e intensidade. Com esse “mapa genético” seria possível agir com a precisão que ainda não dispomos. Temos aí uma polícia que ainda age por instinto em muitas situações, um Estado que planeja sem ter todas as informações na mão e, principalmente, atua mais depois do fato do que preventivamente. Mas creio que estamos melhorando. Isso porque a sociedade passou a cobrar muito mais as autoridades. O assunto virou vidraça.
Márcio ABC: vc teme pela sua própria segurança durante as reportagens? E mais: como repercutiu o assassinato de Tim Lopes entre os jornalistas que cobrem assuntos policiais? Houve alguma mudança de atitude?
Alessandro: bastante. Não só eu, como minha família. Mas eu também temo pela vida deles, porque nunca se sabe em que canto escuro da rua está o ladrão ou a bala perdida. Eu me lembro que precisei fazer uma matéria especial sobre o domínio do tráfico em favelas, com outros repórteres da Folha, dias depois da confirmação da morte do jornalista do Rio. O efeito psicológico é imediato: deu medo subir o morro - e isso porque eu já tinha, meses antes, participado de uma ocupação da Rota em uma favela da capital, vestindo, inclusive, colete à prova de balas (atenção: clique aqui para ler texto feito pelo Alessandro e publicado pela Folha de S.Paulo). Ninguém pesquisou ainda, mas, no dia-a-dia, os ataques a jornalistas têm sido freqüentes. Posso indicar mais dois jornalistas, além de mim mesmo, que já foram roubados fazendo reportagens, durante o dia e em locais de elevados índices de violência. Mudança de atitude? Não sei. De qualquer maneira, é preciso buscar a informação... não há como mudar isso, por mais difícil acesso que se tenha para chegar a ela. Na rua, é preciso aprender as regras que seus moradores seguem. Os moradores de áreas de risco fazem isso para sobreviver.
Márcio ABC: vc já passou por alguma situação de risco eminente? Houve um dia em que vc pensou algo do tipo “meu Deus, eu vou morrer!”?
Alessandro: eu me lembro de duas situações. A primeira, quando fui assaltado durante uma reportagem na zona leste de São Paulo. O garoto que colocou a arma na minha cabeça tremia muito. Eram três. Eles levaram documentos, cheques, a máquina fotográfica, celulares... o que deu para carregar. Tudo aconteceu na rua, na frente de uma escola municipal, três horas da tarde, se me lembro bem. Pior, minhas entrevistadas - mãe e três crianças pequenas “em escadinha” - viram tudo, do meu lado. Meses depois, tive de pesquisar sobre tráfico de armas. Encontrei um “soldado” de um grupo de assaltantes de banco, um ‘frila” do crime, que vendia armas. Tive de assistir parado a uma discussão entre o cara, minha fonte, que me levou ao lugar, com o assaltante, desconfiado que eu era policial. Por sorte, minha fonte o convenceu que eu era uma pessoa simples, interessada em comprar uma arma no mercado negro para segurança própria. Dentro da casa, o dito vendedor me mostrou cinco armas diferentes, de vários valores. E não parou de engatilhar, perto da minha cabeça - eu estava sentado e ele em pé -, a pistola que carregava na mão. Da primeira vez que ele pôs a bala na agulha, pensei que ia levar um...virei o rosto. Não preciso nem dizer que o cara deu risada.
Márcio ABC: Alessandro, vc já viveu o jornalismo do interior e o da capital. Quais são as principais diferenças? Se vc puder, enumere algumas vantagens e desvantagens de um e de outro.
Alessandro: no interior, mesmo em Ribeirão Preto, onde o tráfico é intenso, era possível entrar nas zonas de venda droga, entrevistar pessoas fumando maconha na rua e localizar o traficante sem tomar geral (revista) dos guardas do tráfico ou ter a arma apontada para a cabeça. Acho que a função do jornalista ainda é mais reconhecida, se é que essa é a palavra mais apropriada nesse submundo do interior. Na capital, vc é visto, em muitos locais, como inimigo. Genericamente, sobre jornalismo, posso dizer que a concorrência é maior na capital. E isso, se bem explorado, é bastante importante para a evolução do jornalismo, ganha-se melhor, é possível sonhar com carreira, mas perde-se muito em qualidade de vida. Não há hora, dia da semana ou período do ano mais apropriado para se ter uma missão difícil, longe de casa e bem cansativa. Mas creio que é isso que embala a profissão. Creio que seria possível fazer mais na imprensa do interior com um pouco de ousadia, criatividade e responsabilidade. Algo como fez o Diário de Bauru antes de fechar: uma cidade do interior pode ter uma cobertura de comportamento, saúde, educação, entre outros assuntos, sem depender tanto das agências de notícia. Para isso, é preciso criar mecanismos de discussões regionais de políticas públicas, meios de refletir sobre gastos municipais, como exemplo. Em um jornal da capital, como a Folha, para ilustrar, você tem treinamento e palestras constantemente, além de reflexão das coberturas e um debate rotineiro de assuntos que terão prioridade. Isso é jornalismo.
Márcio ABC: vc foi premiado recentemente por uma reportagem, não é isso? Qual foi a reportagem e como vc encarou a premiação?
Alessandro: é um prêmio interno, uma etapa de uma disputa maior que acontece anualmente. Eu e outro repórter, Gilmar Penteado, fizemos uma série de reportagens sobre o grupo de inteligência da Polícia Militar, o Gradi, que infiltrou presos ilegalmente em quadrilhas, suspeito hoje de homicídios e tortura. Creio que foi possível mostrar que a polícia precisa, realmente, de um serviço de inteligência, mas esse setor não pode funcionar sem controle externo. Não houve nos Estados a mesma discussão que o país fez em 97 (se não me engano o ano) sobre a criação da Abin. Esses setores de inteligência, em todo o mundo, se não-controlados, tendem a se envolver em escândalos e exageros. Uma premiação é sempre legal, mas a melhor recompensa é sempre a percepção de que algo mudou depois daquilo.
Márcio ABC: nós, jornalistas, acreditamos desempenhar um papel importante na constante busca do aperfeiçoamento da sociedade. Quando vc põe a cabeça no travesseiro, vc dorme tranqüilo? Vc tem certeza de que está fazendo sua parte? Ou vc dorme muito rápido que nem dá tempo para pensar (rs)?
Alessandro: dependendo do dia, não durmo. É uma responsabilidade muito grande lidar com nomes de pessoas, que, depois de expostas... É preciso ter responsabilidade. Lembro, depois de escrever sobre um deputado envolvido em sorteios de prêmios pela TV que não eram entregues, ter ouvido o seguinte: “que Deus faça perceber o que está fazendo de errado comigo”. Ele é ou era evangélico, não sei. Meses depois, essa personalidade começou a perder processos na Justiça, tendo de pagar pelas irregularidades que cometeu. Tem ainda o caso do Gradi, em que dois juízes perderam os respectivos cargos de confiança que ocupavam após o MInistério Público pedir a abertura de investigação contra eles. Cada detalhe da reportagem precisa ser checado, recheado, checado de novo e sempre. Creio que estou fazendo a parte que me cabe. Em muitas coberturas, francamente, gostaria de poder chegar em casa e dormir bem, bem rápido...
Márcio ABC: bom, no começo da nossa e-mailvista, eu escrevi que a falta de segurança é um dos grandes problemas da atualidade. Mas ninguém melhor que um repórter que vive o dia-a-dia da população para enumerar os demais. Quais são eles?
Alessandro: a pobreza. Ela está automaticamente associada ao desemprego, doenças, alcoolismo, lares desestruturados, à violência, sofrimento do povo. São tantos os problemas.
Márcio ABC: no seu trabalho, vc encara diariamente dramas, tragédias, enfim, a violência crua das ruas. Como vc faz para não ser afetado por tudo isso na sua vida pessoal? Dá para sair do jornal e deletar um dia inteiro de tensões?
Alessandro: como é que eu poderia sair do jornal sem ser afetado? Sou neurótico por segurança, costumo trancar a casa toda, fico preocupado com janelas abertas. Tanto que, às vezes, até incomodo as pessoas. Costumo servir de assessor para assuntos de segurança dos amigos. Já me perguntaram sobre qual carro comprar, na época em que os importados serviam para escolhas de vítimas de seqüestros, sobre como se portar em semáforos, nas ruas...como não ter o cartão de banco clonado por estelionatários. Já dava para escrever um livro com conselhos. Fora do jornal, procuro não ver filmes policiais, ler livros de outras áreas, ouvir música e jogar (infelizmente, jogos de estratégia militar e tiros) no computador - ninguém é perfeito.
Márcio ABC: Alessandro, nessa loucura em que se transformou o mundo das notícias, com os meios de comunicação cada vez mais velozes para atrair consumidores, pipocam reclamações de vítimas de acusações infundadas. E nós sabemos que, na maioria das vezes, quando alguém é acusado, o grande público já o toma por culpado. Como lidar com essa questão delicada no meio da correria bruta do jornalismo?
Alessandro: Trabalhar muito, o dobro, o triplo, para ter a informação mais precisa possível. Se não a tiver, é preciso ter coragem e confiança para pedir mais tempo. Cada caso é um caso. É difícil falar de modo genérico sobre esse assunto. A missão de um jornalista, creio eu, é buscar meios de trazer a notícia precisa. Se isso não fosse importante, penso, não teríamos uma parte da Constituição falando sobre o direito de informação.
Márcio ABC: Bom, agora, o famoso pingue-pongue.
Seu filme preferido: Dia de Treinamento (não sei se o preferido, mas o mais marcante até agora)
Um livro: Comando Vermelho, de Carlos Amorim (não se assustem, eu sou normal. Mas é que, às vezes, é preciso conhecer a história das coisas para entender o que é mostrado na TV. O que se vê no Rio não é algo de um ano para cá, mas um processo de mais de 20 anos)
Uma cidade: minha Rio Claro, onde nasci, depois Bauru, onde me encontrei.
Um homem: meu pai.
Uma mulher: minha mãe.
Time do coração: sou Santista, graças a Deus. Podem chamar de “Viúva de Pelé”, mas amo esse time.
A melhor comida: pizza.
Um sonho: ver um corrupto na cadeia.
O que o Alessandro acha do Alessandro: uma pessoa difícil de lidar, que tenta aprender uma coisa diferente todo dia e nunca está contente com a meta que consegue atingir.
Márcio ABC: Alessandro, é isso aí. Obrigado pela sua disposição de participar da e-mailvista. Sucesso pra vc na Folha e um grande abraço.
Alessandro: obrigado pela oportunidade de testar esse novo meio de entrevista. Espero ver, em breve, um livro sobre esse canal de entrevista. É bem estranho poder voltar e ler o que se falou. Não permitimos isso ao entrevistado, não é? Mas procurei não refletir muito, até para não perder a naturalidade das respostas. Boa sorte em sua nova empreitada. Aos que vão ler, valeu pela paciência de chegar ao fim do bate-papo (se é que não pularam trechos.... risos). Um abraço a todos.
* Esta entrevista foi feita antes de Alessandro ganhar o Prêmio Esso - Regional Sudeste.