Aquele Eurípedes, de mãos grossas e cabeludas, tamborila sem ritmo algum o verniz riscado da mesa da sala. De sua posição, vê-se quase inteiro o quarto dos dois meninos e da mocinha. Em curtos intervalos, leva à boca o cigarro de palha enrolado há pouquinho. Olha entretido para o cômodo onde dormem os filhos, um em cada cama, os colchões forrados com algodão. Nenhum dos três está em casa agora. Todos na escola noturna, aprendendo a escrita. Claro, a leitura também. Fossem eles para frente, que isso não é mais para seu bico. A essa hora, costuma ir tomando, de gole em gole, sem pressa de acabar, o café passado pela mulher depois da janta. A caneca verde de lata fumega até que a última gota desça já quase fria. De vez em quando, a primavera calorenta sopra uma brisa fraca. Mal dá tempo de suspirar por esse efêmero prazer, pois muito depressa o tempo aquieta-se outra vez. Lá fora, só mesmo um ou outro cachorro ladra, mais tarde as corujas também darão o ar da graça. Mas por ora é só isso mesmo: o Eurípedes tamborilando na madeira.
Perto dele, a mulher cose, vez por outra queixa-se de panos puídos, assim, sem muita certeza de seu protesto. Daí a falar do plantio ou da colheita é um pulo só. Num segundo, esquece-se das agruras reveladas pelas roupas remendadas para cair na tentação da esperança persistente. Na ocasião, no entanto, o marido não lhe presta a devida atenção. Seu olhar entretido no rumo do quarto dos filhos transforma-se em desassossego. A cama de Fabiana, com uma colcha florida cobrindo-lhe a extensão, é a da parede bem em frente. Os pés dão para os pés da cama de um irmão. Eurípedes puxa para si a caderneta na qual soma uns garranchos que só ele mesmo para entender. Sabe os números, não as letras. Rabisca no papel branco seus riscos de lápis preto. Quando faz suas contas, demora-se. É preciso recuperar-se de cada esforço mental, e cada um deles não lhe é moleza alguma. Entre os resultados, levanta-se, vai até a janela, olha o tempo, prevê a demora da chuva. Antes de dormir, em uma ou duas ocasiões ainda apossa-se da pequena garrafa térmica onde a mulher aprendera a despejar o café. A bebida não lhe tira o sono. Batente pesado o dia inteiro não vale menos que três cafezinhos.
A mulher Filoca percebe-lhe a inquietação:
- Que é que foi, sujeito?
De conversa pouca, faz que não ouve. Segue rabiscando na caderneta, a cada pouco disperso no vazio do quarto. Enrola pacientemente a segunda palha. Os beiços tão afeitos já não capturam mais o ligeiro ardor do fumo. A cada tragada, a chama avermelha e uma fumaça forte espalha-se em redor. A mulher insiste:
- Parece jururu, já vai pôr outro nessa boca?
O Eurípedes rumoreja alguma coisa incompreensível. Ela abandona o tecido no regaço:
- Que é que foi, sujeito?
E assim aquele Eurípedes impacienta-se, ralhando com ela:
- Que é que foi! Que é que foi! Por acaso, você não fala outra coisa?
A mulher Filoca funga com gravidade, a braveza solapada. Toma de volta o serviço:
- Hum...hum...
Pensando no que o perturba, ele resolve esquivar-se:
- Essas contas, é só dureza, só penúria...
Ela levanta-se e dá com as vistas na caderneta:
- Que conta, sujeito? Que conta é essa?
Por um instante, faz zomba dela, cutucando-lhe as ancas numa dedada:
- Ora essa, aprendeu a ver número agora? E mais isso!
Num salto, ela põe-se de lado, depois retorna a coser:
- Saber não sei, mas que conta é essa, sujeito?
E assim ficam, nesse chove-não-molha até mais um pouco, sem que ele responda e sem que ela o compreenda. Quando silenciam novamente os dois, Eurípedes volta a inquietar-se, o olhar pregado no quarto. Mas, dali a pouco, chegam os estudantes, comem seu pão com leite e fecham a porta para dormir. Os dias que se seguem, em todos eles Eurípedes comporta-se dessa maneira, e no fim da história quem já beira a doidice é a mulher Filoca, inconformada por não lhe ser dado o direito de compartilhar com o marido o que o atormenta. E vai que numa noite, marido e mulher na conversa da lida e de outros assuntos da pequena propriedade, o sujeito declara-se. Está por aqueles tempos gastando idéias com os filhos. Os homens vão um com treze e outro com doze. A menina vai perto dos quinze. A mulher assunta e logo desbeiça-se, pronta para impedir um choramingo qualquer. Vai dizendo:
- Outro dia mesmo só eram uns toquinhos...
Pica o fumo, pica, pica. Olha para a companheira:
- Quinze anos no domingo, a Fabiana!
A mulher Filoca põe-se a coser com agilidade, como se não houvesse em que pensar fora a agulha com a linha. Enfia de um lado, puxa do outro, estica, crava o dente, corta fora. Enfia outra vez, e assim quer refugiar-se, contanto que o marido não lhe importune com a conversa dos anos. Mas é ela mesma que, diante de uma idéia que lhe vem sem aviso, trai seu disfarce:
- Por aí, em aniversário de quinze anos de menina moça, se faz festa, se dança a valsa e outras coisas...
Diz isso e seu olhar perde-se na escuridão que se avizinha do lampião dentro da sala. Seu olhar alonga-se no breu e nele parece vislumbrar Fabiana que vem chegando da escola, mas não é nada, não. O Eurípedes debruça-se no batente da janela. Da beira da cerca, umas vaquinhas de leite podem ver acender-se a pontinha rubra da palha, uma luz incerta na noite. Já é tempo de fechar a janela e ir dormir:
- Que idéias essas suas, mulher! Isso é para outras gentes. Quem é que sabe disso por aqui?
A mulher Filoca firma-se no rumo da agulha:
- Hum... hum...
No sábado, o Eurípedes junta a estopa para a compra de mês, e os cinco marcham para a cidade. À tardezinha, apontam de volta na estrada, os meninos com os sapatos na mão, o Eurípedes com o saco nas costas e a mulher Filoca de braço dado com Fabiana. Jantam cedo, pois a fome causada pelas andanças é muita. O rádio toca algumas canções. Os filhos, cansados, entregam-se ao sono. Bem cedo no domingo, Fabiana recebe os parabéns da mãe. O pai não sabe como fazê-lo. A menina quer magoar-se, mas é desaconselhada pela mãe. Homem é assim mesmo. Com os irmãos, vai à missa mensal na capela ali por perto. Quando retorna, mãe Filoca chama-a ao quarto. Seu presente de quinze anos está posto, e a aniversariante agradece-lhe muito por aquilo, beijando-lhe o rosto, abraçando-a com alegria. Pelo almoço, o Eurípedes chega de mexer com a terra. Fingindo-se desinteressado, passa lento pela sala, espiando dentro do quarto dos filhos, e nisso uma súbita quentura agita-lhe o peito e deixa-o mesmo achando que não se trata de outra coisa senão um desmedido contentamento: em seu canto, Fabiana está encoberta pela cortina de flores que ele comprara ontem e que, sob os cuidados da mulher Filoca, já divide o cômodo em dois. O vulto da filha moça dança levemente através do tecido ondulado pela brisa. Fabiana agora pode ter seus recatos.
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