(Historinha baseada na música homônina
e maravilhosa de Ruy Maurity e José Jorge)
– Papai, existem lobisomens?
– Não, minha filha.
– Então por que tem filmes na televisão que…?
– Filha, veja bem. Estas histórias são chamadas de lendas. Ou seja. Alguém inventa uma história, que será repetida para outras pessoas e outras e mais outras. Espalha-se. Mas, na verdade, são criadas por algum motivo, que na maioria das vezes a gente nem sabe. É a mesma situação que ocorre com a mula-sem-cabeça, saci, papai noel, vampiros e outros seres esquisitos.
– Então, porque inventaram o lobisomem?
– Tem pessoas que dizem que um homem transformava-se, em parte, em lobo, nas noites de lua cheia para pagar seus pecados ou então por praga de alguém. Não tenho certeza. Meu avô me contava uma história, que ele chamava de causo, sobre um lobisomem numa família.
– Como é a história, papai?
– Oh meu deus! É muito comprida e complicada. Não sei se você vai ter paciência.
– Pode começar.
– Está bom. Ouvi este causo várias vezes do meu avô, lá no interior, onde nasci. Coitado, ele já morreu há tanto tempo, muito antes de você nascer. Vou recordar a história de Serafim e seus filhos.
– Serafim?
– Sim, minha filha. Meu vô me contava que havia uma família de quatro homens e uma mulher. Eram o velho Serafim e seus quatro filhos: João Quebra-toco, Mané Quindim, Lourenço e Maria. Vovô me garantiu que conheceu a Maria, a única que sobreviveu das desgraças da família, quando tinha mais de 60 anos e vivia num asilo para velhos, esquecida de todos e do mundo. Meu avô trabalhou como faxineiro no asilo.
- O que é desgraça da família? E que o lobisomem tem a ver com a Maria?
- Desgraça é uma tragédia, acontecimento ruim. Muita coisa triste ocorreu com a família. Agora, quanto ao lobisomem, você tem de esperar o final da história.
- Mas...?
- Calma filha, vou tomar um café para aquecer a garganta e continuarei com a narração.
- Vai logo pai. Tô doida para conhecer tudo.
- Pois bem. Retomemos. Serafim era um fazendeiro viúvo, pobre e analfabeto. Não havia escola onde ele morava. Apenas Lourenço, o mais novo da prole...
- O que é isto?
- Ahn? Ah, sim. Prole? Prole é família. Então, vamos em frente, Lourenço era o único que sabia ler e escrever, embora muito pouco. Tinha aprendido com um padre que visitava a pequena cidade de vez em quando e lá ficava por algumas semanas, fazendo seus serviços religiosos, como missa, casamentos, batizados e outras coisas. Lourenço, que na época tinha mais ou menos quinze anos, gostou muito do padre e o visitava sempre, à noite, escondido do pai que considerava bobagem saber ler e escrever.
- Nossa! Pai!
- É verdade filha. Naquela época muitas pessoas pensavam assim. Infelizmente, até hoje tem gente com esta mentalidade. Mas o fato é que Lourenço, apesar da pouca idade, tornou-se o mais inteligente dos filhos. Sabia conversar, fazer contas complicadas, explicar quase tudo, lia livros de histórias para os irmãos e até escrevia cartas a pedido deles. Passaram alguns anos e Lourenço resolveu tomar uma decisão. Deixaria a família e partiria para bem longe, em busca de vida melhor.
- Certo ele, pai.
- Sim. Mas esta vontade foi a desgraça dele. O velho Serafim não gostou da idéia e exigiu que os outros filhos também não concordassem. “Filho meu não dança, conforme a dança.”
- Então, o que Lourenço fez?
- Não fez, minha filha. Apesar de pedir de joelhos que o deixassem ir embora, de nada adiantou. Ele jurou então que, qualquer dia, sem ninguém perceber, iria fugir. Naquele mesmo dia, à noite, o velho Serafim reuniu os quatro e disse que iriam para a floresta caçar capivaras e queixadas, o que faziam uma vez por mês.
- São bichos, pai?
- São. A capivara é parente do rato, porém bem maior e vive perto de rios. Já o queixada é da família do porco, mas é selvagem. Dizem que os dois animais têm carne saborosa. Mas hoje em dia é proibido caçar estes bichos e outros que vivem em florestas.
- Minha professora disse que a gente tem de preslevar os bichos.
- É preservar, filha. Preservar, quer dizer mantê-los vivos. Continuemos com a história. Nesta parte, meu vô contava: “Noite alta de silêncio e lua, Serafim o bom pastor de casa saía. Dos quatro meninos, dois levavam rifles. Outros dois levavam fumo e farinha”. Ainda neste pedaço de história, vovô, que viveu três anos na Bolívia, dizia assim: “Bandoleros de los campos verdes. Dom Quixotes de nuestro desierto”.
- Que língua é esta?
- É Espanhol.
- Que quer dizer?
- Não tenho muita certeza. Mas fala de pessoas que se aventuram na vida como Dom Quixote.
- Quem...?
- Já sei. Dom Quixote é o mais famoso personagem de livro do mundo. Ele foi criado por um espanhol chamado Miguel de Cervantes, um dos homens mais geniais que pisou neste planeta. Dom Quixote é um velho sonhador que luta contra inimigos invisíveis. Quer dizer, é um sonhador em busca de explicações para sua vida. Ou algo assim. Eu acho que Dom Quixote pode ser tudo, sonho ou realidade, depende da interpretação de cada um de nós.
- Acho que já ouvi falar dele. É aquele que anda a cavalo com uma lança na mão?
- Ele mesmo, junto com amigo Sancho Pança, na verdade um empregado, chamado escudeiro. Mas vamos continuar. Naquela noite alta, de lua mansa, os quatro mataram Lourenço. Maria não soube explicar por que. No entanto, havia atirado duas vezes no irmão. João e Mané, uma vez cada. O pai não teve coragem de puxar o gatilho. Esconderam o corpo e voltaram cabisbaixos para casa. Nem foram caçar.
- Pai, é muita ruindade.
- Verdade filha. O ser humano é capaz de coisas ainda piores.
- E o lobisomem?
- É agora. Maria contou para meu avô que Lourenço se transformou em lobisomem porque seu corpo não foi enterrado.
- Nossa pai, que história comprida.
- Estamos no fim. Se você não me interromper muito, termino logo.
- Huum...
- Pelo relato de Maria, ela foi a primeira vítima do irmão morto. O lobisomem Lourenço apareceu para ela, certa noite, e rogou uma praga. Disse que Maria ficaria grávida e teria um filho peludo, com dentes de cachorro. Realmente, ela ficou grávida, sem ter nenhum relacionamento com homem, garantiu a meu avô. Serafim, ao ver a filha naquele estado, expulsou-a de casa e ela se tornou prostituta, mulher que vende o próprio corpo aos homens. Porém, seu filho jamais veio ao mundo. Sua barriga murchou até voltar ao normal. Maria teve vários homens na vida. Mas nunca se engravidou. Os irmãos Mané Quindim e João Quebra-toco foram abordados pelo lobisomem, também à noite, numa lua cheia, e desmaiaram de medo. O primeiro morreu na hora e o outro agonizou três dias até perder a vida, também.
- Caramba, pai. O que aconteceu com Serafim?
- No final, até hoje não entendi bem, meu avô encerrava a história com a seguinte frase: “Serafim, depois que viu o filho lobisomem, perdeu o juízo e morreu sete vezes, até abrir caminho pro paraíso”.
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