O jovem jornalista Hélbom Dellide sentou-se à sua mesa, ligou o computador e “folheou” os jornais eletrônicos na internet à procura das novidades. Antenado com os novos tempos, não gostava de se levantar de sua poltrona e buscar os jornais do dia, empilhados na mesa do chefe de redação. Preferia ler os boletins on-line na grande rede da informática. Era seu primeiro emprego como repórter de um grande jornal, um diário secular, de muitas histórias e trincheiras, lutando ora no front da legalidade ora no da conspiração.
Hélbom estava feliz. Era tudo que sempre sonhara, desde os tempos de faculdade. No entanto, em um mês de lida, só recebia releases para dar uns "tapas", no máximo esquentá-los com entrevistas ligeiras por telefone. De repente, ouviu um forte chamado do aquário. Era Ornesto Josético o chefe de redação. Não gostava de ser chamado de diretor de redação. Dizia que tal cargo era mais apropriado a executivos.
- Assustou-se com meu grito, rapaz?- disse Ornesto.
- Sim, pensei que os repórteres eram chamados por e-mail.
- Ora meu jovem, estamos a dez metros um do outro e você me vem com esta? Sou antigo. Quando comecei, a gente se comunicava por fumaça. Mas depois inventaram o tambor e a situação melhorou pra caramba.
Hélbom riu da brincadeira, meio a contragosto. Ornesto, o velho lobo da imprensa, não conseguia falar cinco minutos sem soltar um trocadilho ou fazer uma piadinha com o momento. Surpreso, o jovem repórter prestou a máxima atenção às instruções do chefe sobre a pauta. Uma reportagem das boas. Daquelas de deixar definitivamente a condição de foca.
A matéria era sobre impostos e taxas de serviços que os bancos cobram nas contas de seus clientes.
- Quero que entre em contato com quatro bancos pelo menos e a associação que os congrega. Ouça clientes na fila, entreviste alguém da defesa do consumidor, do Vaticano, da ONU. Só não tente o ministro da Economia, porque ele odeia nosso jornal. Enfim, cerque as informações de todos os lados envolvidos. Vamos lá. Confio no seu taco - apostou o velho lobo.
Hélbom abriu um largo sorriso, daqueles que faz as orelhas se encontrar. Era sua primeira grande reportagem. Os banqueiros que colocassem o dinheiro, ou melhor, as barbas de molho, ele iria abalar o alicerce das finanças do país. Foi mais de uma semana de contatos intensos.
Entrevistou pessoalmente, por telefone, por e-mail. Só não usou fumaça e tambor. Pesquisou os tipos de taxas, legislação, diferença de valores entre um banco e outro, qual a faixa de valores máximos estipulada pela legislação bancária, quanto a instituição faturava com a cobrança em conta dos correntistas e muito mais.
Descobriu até que dois dos bancos ouvidos saldavam a folha de pagamento de seus funcionários somente com o dinheiro arrecadado por meio de taxas de seus infelizes correntistas. Por intermédio de uma fonte do Banco Central, soube ainda que uma boa porcentagem do faturamento dos bancos no ano anterior fora proveniente das tarifas. Duas informações valiosas e impactantes. Abriria a matéria por aí.
No dia seguinte, chegou mais cedo à redação. O ambiente estava quase vazio. Hélbom cumprimentou apenas alguns plantonistas, que vararam a noite, fotógrafos e faxineiros fazendo seu trabalho antes que o local se enchesse à tarde. Sentou-se ao micro e nem "folheou" a Internet. Abriu um novo arquivo no Word e começou a grande reportagem. Não falou com ninguém, não tomou café, só alguns copos de água, tampouco paquerou a bela repórter da editoria de variedades.
Eram dez horas da noite, a redação fervia para fechar a edição do dia e Hélbom dava os últimos retoques ao seu trabalho: título, olho, entretítulos, boxes. Usando seu conhecimento de informática, elaborou gráficos e tabelas comparativas das taxa e respectivos bancos. Verificou soma de números, porcentagens, eliminou palavras repetidas, levou parágrafos de baixo para cima e vice-versa.
Ficou pensando, se não fosse o computador, como faria aquele trabalho de colagem de blocos inteiros de texto? Não havia conhecido a máquina de escrever. Terminou a empreitada, respirou várias moléculas de oxigênio e disse para si mesmo: ufa, acabei! Passou a matéria para seu primeiro editor, por e-mail, com cópia para Ornesto e ficou esperando os parabéns. Foi para casa feliz como um garoto que ganhou sua primeira bicicleta.
No dia seguinte, pela manhã, correu à banca de jornais para ver se sua reportagem estava na edição do dia. Nada. Pensou, então, que seus chefes estavam guardando a pérola para a edição de fim de semana. Era o tipo de matéria para ser degustada na poltrona, numa manhã de sábado ou de domingo.
Passou a primeira semana e veio a segunda. Mais de dez dias de releases e nada de sua matéria publicada. Seu editor elogiou o trabalho e disse que tinha passado o texto para frente, mas não sabia porque ainda não tinha sido saído.
Hélbom tomou coragem e foi conversar com o chefe de redação. O lobo sorriu, fez uma piada sobre a gravata do repórter (rapaz, se eu usar uma destas, o New York Times me convida) e ligou para o departamento comercial do jornal. Alguns minutos depois, o gerente do setor entrou no aquário de Ornesto, sentou-se ao lado do repórter e disse que a matéria, embora muito bem-feita, não poderia sair nas páginas do jornal.
- Estamos atravessando um momento financeiro difícil em nosso jornal. Não podemos perder uma só publicidade e dos quatro bancos que você cita na matéria três são nossos anunciantes.
O desânimo tomou conta de Hélbom. Onde estava a liberdade de expressão, a busca pela verdade, o jornalismo democrático, a informação transparente.
O gerente comercial perguntou se o repórter poderia reduzir a matéria e tirar os três bancos do texto e ouviu um não enfático do jovem idealista. Ornesto pensou em sugerir o mesmo, mas calou-se. Então, contou mais uma piada (conheci um jornalista tão bom, tão bom, que mesmo inventando notícias, acertava sempre) e arrematou sério:
- Vamos terminar esta história com o mínimo de dignidade possível. Matéria despedaçada, jamais. É melhor não sair nada. Semanas depois, o jornal faliu. Quebrou como casca de ovo, após ficar três dias sem ir às bancas. No quarto dia, os funcionários da área gráfica chegaram e não encontraram a maioria das máquinas e equipamentos. Na redação e no escritório, pouquíssimos móveis e computadores ainda restavam. Tudo fora vendido pelos proprietários, cujos paradeiros ninguém sabia. Quase nada havia para pagar os empregados. O imóvel era alugado e o senhorio também não tinha recebido seus haveres atrasados.
Durante meses Hélbom peregrinou por diversas redações de jornais e revistas para vender sua reportagem e também procurar frilas. Escarafunchou aqui e ali até que finalmente encontrou uma revista de economia disposta a publicar sua matéria e a perspectiva de um frila por mês. Topou.
À noite, resolveu assistir pela enésima vez ao filme Todos os homens do presidente, seu preferido, o mesmo que o havia induzido a ser jornalista. Gostava imensamente da história dos dois repórteres americanos que, com suas matérias, tinham derrubado o presidente de seu país, o homem mais poderoso do mundo. O caso ficou conhecido como Watergate e o presidente era Richard Nixon.
No meio do filme, tocou o telefone. Era Ornesto, seu antigo chefe.
- Tudo bem com você?
- Claro que não, estou desempregado e nada recebi daquele jornal.
- Eu também, não - disse o ex-chefe de redação.
Ornesto fez uma brincadeira (conheci um jornalista que ficou tanto tempo desempregado que resolveu vender a televisão, depois o carro, o apartamento. Até que descobriu que sua vocação era mesmo ser vendedor. Tá bem de vida, o safado. Só falta pagar o que me deve) e disse a seu ex-repórter que estava assessorando um deputado e precisava de um auxiliar.
- Aceita me ajudar nesta? - propôs o velho lobo.
- Quem é o deputado?
Ornesto disse o nome do político e Hélbom se assustou.
- Mas...justamente este? Ele é o dono de um dos bancos que cito na minha reportagem...
- Eu sei. Mas foi o que consegui arrumar e cavalo dente não se olha os dados - trocadilhou. E emendou: - O homem não vale um grão de feijão carunchado e cada vez que eu aperto a mão dele conto se ainda continuo com cinco dedos. Mas o salário é bom. É pegar ou pegar.
- Não posso, Ornesto. Semana que vem minha reportagem sobre as tarifas bancárias sairá na revista Mundo Econômico.
- Assinada?
- Claro. É minha primeira reportagem com crédito e num grande veículo. No jornal, você enchia os focas de releases. E, quando tive a grande chance, vocês não publicaram meu texto com medo de perder anunciantes.
- Vão pagar bem pelo trabalho? - questionou Ornesto.
- A metade do que determina o sindicato - respondeu o jovem.
- Meu Deus!! (Tive um repórter que era tão pobre, tão pobre, que economizava até nas palavras. Por isso, só dava matéria de uma lauda pra ele). Meu caro e barato jovem, conheço o editor desta revista. Posso ligar para ele pedindo para não publicar a matéria. Se sair mesmo, você não poderá trabalhar comigo aqui no gabinete do deputado. Além do mais, esta reportagem você fez para o jornal.
- Que não quis publicar. Esqueceu-se, chefe? Esta matéria é minha. Sempre foi. E você não irá impedi-la novamente. Trabalhei como burro de carga para levantar informações e escrever o texto. Esta reportagem é minha. A melhor que fiz na vida e agora mereço vê-la no papel - disse o repórter.
Desligou o telefone e continuou a ver o filme.
E-mail: otanunes@gmail.com