O relógio – Texto de Otávio Nunes

Doriválter olhou para o calendário e notou que seu filho faria dezoito anos na semana seguinte e sentiu a saudade cortar suas veias e penetrar no coração. Não via o garoto desde que este tinha cinco anos. Na época, Dori foi obrigado a fugir de São Paulo, deixando a esposa Merileide e o menino Paulinho.

Naquela época, Dori e dois amigos planejaram assalto a uma residência em Higienópolis. Eles sabiam tudo sobre o cotidiano da casa e a hora em que ncontrariam apenas a empregada. Deu quase tudo certo. No momento em que deixavam o local, com vários dólares e jóias, apareceu a polícia. Só ele conseguiu fugir, pulando um muro alto e caindo dentro do Hospital da Santa
Casa, escondendo-se entre as milhares de pessoas que por ali passam todos os dias. Na queda, machucou dois dedos do pé, mas conseguiu curar o ferimento o próprio hospital.

Ficou uma semana escondido e soube que sua casa e sua família estavam sendo vigiadas constantemente por policiais. Então, resolveu fugir para o Norte.

Assaltou, sozinho, uma padaria e uma farmácia. Juntou dinheiro e partiu para uma cidade distante que nem ele mesmo conhecia, deixando Merileide e Paulinho. Abriu um boteco na cidadezinha e por lá ficou, adotando outro nome. Conheceu Nancília e passou a viver com ela. Porém, não tiveram filhos, apenas a menina que a mulher trouxera do casamento anterior.

Por anos e anos, a figura de Paulinho nunca saiu de sua cabeça. Precisava ver o garoto novamente. Com Merileide não se importava. Ela, como ele, já estava arrumada com outro. Sabia porque ligava para a ex-mulher duas a três vezes por ano.

Para Dori, era sufocante por demais imaginar o filho sendo criado pelo padrasto. Pensou. Pensou. E decidiu voltar a São Paulo. Depois de tanto tempo, não precisava mais temer a polícia. Telefonou para a Merileide e deu a notícia de seu retorno momentâneo. Levaria um presente de aniversário para
Paulinho.

Em São Paulo, desceu do ônibus à noite e procurou pela rua. Quando ali vivia, era um local deserto. Agora, a favela enorme crescia pelo descampado. A rua onde morou trocou o antigo número por um nome imponente que ele mal conseguiu pronunciar.

Contudo, para chegar até lá, tinha de atravessar ruelas escuras da favela. De repente, um rapaz com gorro na cabeça, óculos escuros, apesar da noite, e uma camiseta da seleção brasileira apontou-lhe o revólver. O ladrão levou seu dinheiro, a sacola com a camisa que daria ao filho e o relógio, o mesmo que Doriválter tinha furtado na mansão de Higienópolis, havia tantos anos.

Chegou à casa cansado e triste. Merileide nem o abraçou. Apenas abriu o portão e o convidou para entrar. Disse que Paulinho voltaria logo e seu marido estava no boteco jogando bilhar. Dori sentou-se no sofá e perguntou tudo que podia sobre o filho. Infelizmente, o rapaz tinha abandonado a escola e ficava fora o dia todo sem dizer onde tinha ido. Dori pensou que a ex-companheira, após ter mais dois filhos com o novo marido, relaxara na educação de Paulinho.

”Logu que ficô sabenu que ocê ia vortá, disse que ia fazê um bico, enchê uma laji, pra ganhá dinheru e comprá um presenti procê”, disse Merileide ao ex-marido.

Enquanto os dois conversavam na sala, um garoto entrou sutilmente na cozinha, retirou o gorro da cabeça e os óculos escuros. Depois, pegou o relógio e passou sua camiseta amarela sobre o vidro, para limpar. Paulinho achou que seu pai gostaria daquele presente.

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