Parte 1
Se quiser conhecer bem um homem conheça as rotinas dele. Isso vale para toda a forma de vida, até um ser microscópico repete incessantemente as mesmas ações todos os dias. Isso sempre me fascinou. As amebas, por exemplo, repetem o mesmo movimento com seus pseudópodos para obter alimentos. O caramujo espanhol arranca pequenos pedaços de solo para decorar sua carapaça, tantas vezes necessárias para deixá-la invisível. Já o gavião carrapateiro passa a vida subindo nas costas de bois e cavalos para capturar parasitas. Macacos como o bugio ao entardecer sempre emitem sons todos juntos no topo de uma árvore.
Nada se compara, porém, às rotinas do ser humano. Tudo o que o homem criou até hoje foi por insistir em métodos e sistemas. Não acredito em intuição, criatividade, isso é uma explicação reducionista de imbecis. Thomas Edison fez seis mil experimentos até criar a lâmpada. Gracialiano Ramos reescrevia todos seus livros inúmeras vezes até retirar todos os excessos de estilo. E, além dos nomes ilustres, me fascinam também os homens patéticos que não se cansam de repetir maus hábitos para destruírem suas vidas.
É claro que observar uma pessoa na maior parte dos casos é mais difícil do que qualquer outro animal. As cidades são abarrotadas de gente que podem se movimentar em grandes extensões, sem contar que elas têm um componente único e quase impenetrável: a vida privada. A maioria das minhas observações foi realizada, então, em ambientes públicos onde é possível enxergar só uma pequena parte de seus hábitos.
Depois de décadas com essa visão limitada até pensei que a era dos reality shows pudesse me dar mais subsídios para minhas pesquisas, mas o ser humano age muito diferente quando sabe que está sendo observado, não é possível extrair nenhuma conclusão segura. Esse fracasso desses circos audiovisuais, no entanto, mostrou que a tecnologia era de fato o melhor caminho para atingir meus objetivos.
Câmeras e microfones escondidos poderiam cobrir boa parte da vida privada de alguém, mas ainda existiriam lacunas importantes nos outros ambientes freqüentados. A solução perfeita seria ter acesso aos sentidos humanos e saber, principalmente, o que uma pessoa ouve e vê 24 horas por dia. Passei outros longos anos atrás desse sonho de ficção científica.
Quase toda minha herança se foi nessa busca. Não dei a mínima. Não me interessam outros prazeres, ajudar a humanidade, constituir família, nada disso. Só queria conhecer o comportamento de uma pessoa como nunca antes alguém tinha chegado perto. E eu consegui.
Parte 2
Espécie E - 2 de abril de 2014
Ao acordar E ficou na cama cheirando seu travesseiro por cerca de três minutos. Pôs as mãos nos cabelos e os jogou para trás. Levantou e foi beber água. Esse comportamento tem se mostrado o mais freqüente ao despertar. O cheiro que ele aprecia sentir de manhã foi analisado como sendo o do seu próprio suor, isso pode revelar alguma tendência homossexual.
Nesta manhã ele não ingeriu qualquer alimento antes do banho, postura comum em dias que aparenta estar com pressa ou acorda tarde. Porém, mesmo assim hoje também se masturbou durante quase oito minutos. Esse costume vem se repetindo mesmo nos dias em que acorda com o pênis flácido. Neste dia analisado, por exemplo, como em várias outras vezes, ligou o chuveiro e ficou esfregando seu pênis com uma mão até enrijecê-lo para sair o jato de esperma, que sempre faz questão direcionar nos azulejos. Comumente ele pronuncia também o nome de uma ou duas mulheres. Nesta manhã foi Sandra, pessoa já citada em análises anteriores, mas nunca vista por ele nesse meio tempo.
A partir daí E teve um modo de vida comum a outros tipos estudados, a 'vida encenada' como eu qualifico. Tomou o ônibus para o trabalho sem conversar com ninguém no ponto. No percurso, como faz costumeiramente, encarou algumas mulheres que pareciam lhe atrair, mas procurou desviar o olhar quando era notado. Ao chegar à repartição pública que trabalha cumprimentou quem via pelo local com cerimônia, mas sem animação aparente.
Sua função era preencher e checar formulários para depois enviá-los por computador a outras cidades. Como nos outros dias, hoje também não foi produtivo. Sendo direto, E enrolava ao máximo seu dia de tarefas. Treze cafés, discussões sobre jogos de futebol, intrigas sobre outros colegas de trabalho e adulações com seu superior tomavam metade do dia.
Quando estava sentado em sua mesa ele também virava a tela do computador num ângulo que não permitisse ser vista por quem passasse por perto. Ele acessou por três horas um site que outro colega de serviço havia lhe indicado outro dia, dizendo que a rede interna não conseguia bloquear. Era um tipo de bate-papo, E usava nomes falsos e flertava com mulheres e homens. Ao que parecia conhecia algumas daquelas pessoas, não pessoalmente, mas de outras oportunidades virtuais. Apenas em curtos espaços de tempo no dia E realizou suas tarefas profissionais de forma mecânica, sem revisar contas ou nomes.
No fim do expediente despediu-se também com cerimônia e sem animação. Caminhou até um supermercado e comprou pão e mortadela. Tomou seu ônibus, encarou as mulheres e desceu perto de sua casa. Parou em um bar, não cumprimentou os vizinhos e pediu no balcão uma cerveja de lata. Em casa ficou de cueca, fez o sanduíche, abriu a cerveja e ligou no noticiário televisivo. Sentou-se no sofá.
Terminou o pão e a bebida e arrotou. Foi ao banheiro urinar. Parou no espelho e ficou a olhar seu rosto. Parecia procurar imperfeições, rugas, espinhas e manchas. Depois olhou em seus olhos com uma expressão de contemplação. Essa ação era repetida quase todos os dias, sem motivo aparente, ele não demonstrava alegria nem tristeza. Só se olhava sem motivo. Sem ação. Sem palavras.
Voltou para a sala, pegou sua pasta e retirou um papel. Era um telefone de uma mulher que conversara pelo computador durante o trabalho. Suzana. Ligou e timidamente se apresentou. E mentiu sobre sua idade e sua posição econômica. Ela tinha uma voz surpresa com o telefonema e aceitou o encontro que E propôs para o final de semana. Ele fazia isso quase todos os dias, mas em três anos de monitoramento nunca compareceu a nenhum. Parece que sentia prazer só de se aproximar de um possível encontro.
Escovou os dentes, leu o livro de Lucas na bíblia (cap. 10), apagou as luzes e deitou-se. Dormiu cinco minutos depois.
Parte 3
Espécie M - 22 de março de 2011
Mais uma vez pode-se dizer que o dia de M não tem 24 horas. São poucas horas de atividades, porém, não há como negar, intensas.
Pela claridade e os sons de muitos automóveis por perto M acorda já próximo do meio dia. Ela se levanta e vai até o banheiro. Não olha para o espelho. Abaixa sua calça, senta-se no vaso sanitário e urina. Levanta, se veste sem se limpar e caminha até a sala. Liga um aparelho de som em alto volume. A música é 20th Century Man, do The Kinks.
Deita no sofá e começa a fumar cigarros que estavam numa mesa próxima. Esse ato dura 14 minutos. M se levanta e sai pela porta com a mesma roupa que dormiu e sem ver seu rosto ainda.
Ela caminha até uma avenida próxima de sua casa e toma um ônibus. É um trajeto repetido em várias outras vezes, assim o motorista a cumprimenta com um aceno de cabeça. Ela levanta a mão para um cumprimento modesto e se dirige para a catraca rapidamente. Senta no lado do corredor em um banco vazio e passa a segurar a barra do assento da frente com uma das mãos.
A outra mão, do lado que dá para a janela, M usa para esfregar sua perna. Faz isso durante toda a viagem, que dura 53 minutos. Desce também num lugar já visto outras vezes. Caminha por uma rua de terra até a casa de um homem chamado por ela de Firmino. Ele atende a porta num tom de voz grosseiro perguntando quem é. M se identifica e a porta é aberta depois de três minutos.
M tira do bolso uma nota de dinheiro amassada, mostra e diz querer 10 gramas. É impossível ver o valor pelo ângulo de sua visão, mas pela reação de Firmino supõe-se ser pouco. Ele diz que aquilo não compra nada e que ela já estava lhe devendo de outras oportunidades por isso não teria desconto nenhum.
M começa a dizer que está na fissura por uma dose e que já começa a tremer sem controle. Pede por favor um pouco da substância que aponta em uma prateleira. Firmino a manda cair fora enquanto não arranjar mais dinheiro. M responde que não tem como conseguir naquele dia. Ele retruca que ela que se vire e se não pagasse os atrasados iria levar chumbo também.
M sai pisando firme e caminha até o ponto de ônibus novamente. Pega o ônibus que a leva de volta a sua casa. No percurso de novo esfrega uma das mãos na perna e segura a barra do banco, agora com mais força e pressão.
Desceu do coletivo e caminhou rapidamente até sua casa. Foi até a cozinha e sob a pia pegou um saco de lixo. Numa prateleira recolheu um liquidificador e na sala um celular e um aparelho de Blu-ray. Carregando o saco com os produtos saiu de novo e mais uma vez tomou o ônibus. Repetiu os gestos com as mãos e em seu colo apoiou o saco de lixo.
Voltou à casa de Firmino. Teve a mesma recepção grosseira, dessa vez respondida à altura. M disse quase gritando querer pagar sua dívida e com o que sobrasse levaria mais droga. Firmino olhou o conteúdo do saco e começou a rir. Disse que aquilo não pagaria nem a metade do que devia, mas depois em tom amável falou que a deixaria levar uma dose, contanto que pagasse o restante depois.
M começou a sorrir. Disse obrigado com um tom de voz emocionado. Recebeu um pequeno saco de plástico que guardou dentro da calça, na virilha. Saiu e subiu correndo em seu ônibus, nem olhou na cara do motorista. Não havia dois assentos livres, por isso parece ter preferido ficar de pé os 53 minutos. Limpou o rosto de suor várias vezes e batia o pé direito insistentemente.
Um homem notou sua impaciência e ofereceu seu banco. Demorou nove segundos para responder. Disse 'não' sem nem olhar para o homem.
Em casa, M fechou todas as fechaduras, as janelas e ligou seu som. Pegou o saquinho plástico, que continha um vidrinho com um adesivo escrito 10 gramas. Foi até a cozinha e pegou uma injeção e uma cordinha de borracha na gaveta de talheres. Enfiou a agulha no vidrinho e sugou boa parte. Impossível ver quantos mg.
Sentada na sala, arregaçou uma das mangas da blusa, amarrou o braço e começou a procurar uma veia. Havia muitos pontos roxos, não era tarefa fácil. Demorou 52 segundos. Injetou-se. Sentiu uma dor mínima, estava bem acostumada com isso.
Retirou a borracha, colocou a seringa na mesa e foi para o quarto deitar-se.
As alterações de sentido em M nesses momentos são imprevisíveis. Ela começou a ver as portas de seu guarda-roupa baterem sozinhas. O som dessa suposta visão estava alto, por isso ela levantou e amarrou as alças das portas com lençóis.
Ela podia ver também a música no ambiente. The Kinks ainda tocava, agora a música Alcohol. Talvez ela tenha escolhido essa música de propósito, é muito provável. O velho demônio do vício que a canção dizia estava flutuando no ar. Ela enxergava um velho de chapéu, barba branca, muitas rugas, com as mãos e um terno cinza sujos. Ele bebia garrafas de rum, tequila, scotch, vodka como a letra dizia. M conseguia sentir o cheiro do álcool no ar e gargalhava daquela aparição.
Deitada também sentia na pele pequenas vibrações que lhe traziam muito prazer. Dois minutos depois fechou os olhos e começou a ouvir uma cachoeira e sentir uma brisa no ar. O relaxamento a fez dormir pelo resto do dia.
Parte 4
Espécie S – 1º de junho de 2013
S demonstra muito ânimo. Nos dias analisados acorda sempre antes de seu marido, por volta das 6h da manhã. Prepara ovos cozidos, ferve o leite, corre até a uma padaria próxima, varre sua varanda, alimenta seu cão, coloca roupas na máquina de lavar, coloca água em seus vasos de plantas, tudo até as 7h.
Seu marido se levanta por volta desse tempo e toma banho por quase meia hora. Ela aguarda sentada a mesa nesse período. Quando ele sai os dois pouco conversam. Hoje falam da conta do gás que precisa ser paga. Ele come e bebe o que tem na mesa, levanta, diz tchau e vai embora.
Só aí S come alguma coisa. Gosta de pão sem miolo e leite frio que busca na geladeira. Vai para o quintal, senta numa escada e fuma dois cigarros. De volta para casa vai direto para o banheiro. Tira as roupas, liga o chuveiro e senta-se embaixo da ducha. Deixa o jato cair principalmente na cabeça e no meio das pernas.
S não usa produtos de beleza, mas permanece mais de vinte minutos sob a água. Sua pele branca chega a se enrugar. Sem pressa se enxuga. Veste-se e penteia-se. Chama seu cão, Antônio, um pastor alemão, e desce até sua garagem.
O Fusca verde é alisado por ela quando caminha até a porta do veículo. Antônio entra primeiro já conhecedor desse passeio. Senta-se no lado do carona. S alisa agora o volante e suspira. Com os pés descalços pisa os pedais sem pressa. Na manhã de sol e ainda de pouco movimento, conduz o veículo sem dar qualquer seta no trajeto. Mas vai devagar, demorando sempre para trocar de marchas. O cão espia a rua com parte do nariz para fora da janela.
Ela pára no mesmo lugar de sempre, perto de um posto de saúde. Afasta o banco para trás, deixa Antônio deitar em seu colo e começa acariciá-lo. S olha o movimento da rua, nota todas as pessoas que passam no seu raio de visão. Um ritual vagaroso, hoje de 2 horas e 11 minutos, até que rapidamente diz 'sai Antônio', ajusta o banco e arranca com o carro.
Sua vista e seu alvo estão em um Gol branco no qual a poucos instantes uma mulher e uma criança entraram. S persegue o veículo com cuidado, sem chegar perto demais, mas olhando com atenção os movimentos das rodas e as setas do Gol. A outra mulher era uma das tantas pessoas que S observou enquanto estacionada. Ela havia levado a criança no posto médico.
Os carros seguem até outro bairro. A mulher estaciona em frente a uma casa e desce com a criança. S pára próxima do outro lado da rua e observa. Primeiro entra a criança na casa e depois a mulher, que antes olha para trás e nota o Fusca. S desvia o olhar.
Mais uma vez ela afasta o banco, o cão deita-se em seu colo e S começa a observar tudo a sua volta.
Por longas cinco horas isso se repete até a mulher e a criança saírem de novo da casa. Dessa vez S fica imóvel, espera os dois entrarem no Gol e rodarem até dobrar a esquina. Só depois é que S decide sair com seu carro e voltar à perseguição.
Sem perder de vista o carro, S nota que se dirigem a um supermercado próximo. Descem no estacionamento e a mulher caminha com a criança até a entrada. S estaciona também e sai do Fusca. O cão geme. Ela vira-se e diz 'fica aí quieto Antônio'.
São 15h42 e o supermercado não está muito cheio, mas por seu tamanho S demora a avistar os dois novamente. Estão na fila do açougue. S olha cinco metros longe. Começa a apertar suas próprias mãos como se agarrasse ou esperasse algo.
A criança conversa algo com a mulher e se afasta. S a segue. Param no corredor de doces.
- Oi menino lindo! Como você se chama? – S pergunta meio sem jeito.
Ele abaixa a cabeça, olha para chão e não responde.
- Você quer um docinho? Me diz qual que eu compro para você.
A criança aponta para um chocolate de embalagem colorida, mas não levanta sua cabeça.
- Este? Que ótimo! Vou levar três. Dois para você e um para mim. Vem comigo, vou pagar e te dou já.
Os dois caminham pelo corredor até o caixa. S pede para o menino passar primeiro para receber o chocolate. Ela segura os doces enquanto paga e quando termina o menino levanta os bracinhos.
- Vamos até aqui fora, tem muita gente andando, nem vai dar para você comer direito.
Ainda segurando o doce no alto, S leva o menino até o estacionamento e até o Fusca.
- Esse é o Antônio, meu cachorrinho. Não precisa ter medo, ele não morde – diz mostrando o cão na janela.
- Vou abrir a porta para você comer sentado no banco. Antônio, vai lá para trás.
O menino senta e recebe o chocolate. Começa a comer e sorri. S fica com a respiração acelerada e também sorri. Agacha-se e fica olhando de mais perto a criança. Depois acaricia seus cabelos e pergunta.
- Está gostoso querido?
Ele responde afirmativamente com a cabeça.
- Quer ir na minha casa? Lá posso te fazer um bolo. De qual que você gosta?
- Não gosto de bolo... – responde um pouco birrento.
- Tá bom bravinho. Do que você gosta? – diz sorrindo.
- Eu queria uma pizza agora...
- É mesmo? Eu sei fazer uma bem gostosa.
- Do quê?
- Presunto, queijo, tomate e cebola.
- Não gosto de cebola.
- Tudo bem, eu não coloco.
- Tá bom.
- Então vamos – diz S exultante.
Fecha a porta do menino, dá a volta e entra no carro. Agora com pressa liga o carro e sai em velocidade. Sempre sorrindo S liga o rádio.
- Vou colocar uma música para a gente ouvir – diz.
Uma música infantil começa a tocar e S canta a letra – Sempre que o relâmpago se apaga, Ouve-se o rugido do trovão, Flash que incendeia a queda d'água, Oiá, Oiá, Oiá, Astro que atravessa a atmosfera, Luz estroboscópica clarão, Guizo de granizo sobre a terra, Oiá – o menino dá risada e S se esforça mais para fazer vozes engraçadas.
A viagem segue nessa cantoria e S fica com os olhos marejados quando chega perto de sua casa.
O carro entra na garagem e os três saem. O menino continua comendo e pergunta onde está sua mãe.
- Ela vem já, mas antes ela pediu para eu fazer um papazinho para você. Uma pizza bem gostosa!
Ele sorri e acompanha S para dentro da casa.
Na cozinha o menino senta-se a mesa e S vai para a pia. Começa a cortar tomates.
- Você gosta de muito queijo?
- Gosto.
- Pode deixar, vou colocar bastante. E nada de cebola – ela ri.
Às 17h21 seu marido entra em casa. Olha os dois na cozinha e faz uma cara feia.
- Quem é esse menino?
- Um filho de uma amiga – diz S sem jeito e sem continuando a retirar fatias de queijo de uma embalagem de isopor.
O homem segura S pelo braço e a arrasta até o quarto.
- Olha pra mim! Ele não vai voltar, pára de fazer isso. Você vai acabar fodendo nós dois.
- Seu insensível, você nem lembra mais dele!
S leva um soco no queixo e cai na cama.
- Eu não agüento mais, além de perder um filho tenho que cuidar de uma doida...
S começa a chorar deitada na cama.
- Anda, me fala, onde você pegou essa criança dessa vez?
S anota em um pedaço de papel o endereço.
Ela ouve o marido e o menino andando para abrir a porta. Depois o som de um carro saindo. Continua a chorar e acaba adormecendo sozinha.
Parte 5
Encontros – 15 de abril de 2015
Realizei meu sonho por quase seis anos. Invadi os sentidos e a mente de desconhecidos com um prazer enorme. Não me arrependo dos implantes que fiz em pacientes de hospitais públicos, das pessoas que subornei e precisei eliminar.
E depois de tudo isso me pergunto se em algum momento pensei no avanço da ciência. Ou sendo mais honesto com minha classe, se só estava pensando na glória e dinheiro que conseguiria. Nenhuma das alternativas. Sou um viciado na vida alheia, um homem que destruiu sua vida num sonho egoísta.
Velho e cansado não consigo mais prosseguir e não quero deixar nada do que criei para os outros. Hoje vou pôr fogo em todo meu prédio, inclusive em mim mesmo. Vou morrer no meio das máquinas maravilhosas que criei.
Não fiz nenhuma conclusão psicológica ou sociológica. As espécies que observei foram tão somente meu vício. Mas confesso que me afeiçoei com eles. Nessa vida eles foram o que mais próximo encontrei como amigos. Os vejo hoje como iguais a mim – pessoas que passaram anos criando artifícios elaborados para satisfazerem seus desejos.
Por isso mais cedo procurei cada um deles e me apresentei, sem, porém, contar meus segredos. S estava numa cadeia, seus raptos de crianças finalmente tiveram um fim. Disse que eu era um parente distante de sua mãe e contei que havia depositado uma grande quantia na conta de seu marido. Eles poderiam usar os serviços dos melhores advogados do país e logo ela sairia da prisão.
Procurei E no horário do almoço. Ele come num modesto restaurante por quilo. Sentei junto dele numa mesa coletiva do estabelecimento e disse que era um rival antigo do seu chefe. Entreguei um envelope com fotos comprometedoras de seu chefe, que estava determinado a afastar E de suas funções sedentárias. O diretor da sua repartição pública era um pedófilo. Com tudo o que aprendi nas minhas pesquisas era muito fácil vasculhar computadores alheios.
Quanto a M só pude falar com ela depois de subornar os diretores de uma clínica para dependentes químicos em que ela foi trancada. Disse a ela que era um padre que fora enviado para conversar com os pacientes. M estava feliz, de aparência jovem e com os cabelos brilhantes e lavados como nunca tinha visto. Contudo, parecia um robô, só fez repetir as atividades de sua terapia. Deixei uma seringa com ela, falei que era parte de seu tratamento.
Quem sou eu para julgar meus amigos queridos. Hoje eu só vou atrapalhar meu ritual.
E-mail: reichaves@hotmail.com