“Esse é seu último dia de vida, Antenor. Ninguém sabe, mas quando todos estão para morrer recebem a minha visita em sonho. É de sua própria natureza estes serem estranhos, fragmentados e enigmáticos, por isso assumo essa forma de cavalo e quando você acordar não vai se lembrar de mim totalmente, só vai sentir uma sensação nova, que nunca teve durante a vida e que vai te forçar a lembrar de tudo o que fez na sua existência. Esse sonho final tem um propósito para todos, mas você terá que descobrir sozinho qual é”.
A sete palmos do chão agora consigo lembrar completamente desse sonho do cavalo que falava e relinchava, uma das formas misteriosas da morte. Aliás, a memória dos mortos é fantástica, lembro de todos os lugares onde perdi meus guarda-chuvas, de todas as moedas que recebi de troco e, infelizmente, de todas as pessoas que magoei.
O inferno é isso, irmão. Não tem fogo, chifre ou dor. É você carregar para sempre a memória da sua vida, em todos os detalhes. E aqui nesse caixão cheio de vermes não há hipnotismo ou psicanalista para me fazer esquecer as dores. Setenta e seis anos de vida, que no meu caso foram muito mais de erros do que de acertos, tudo isso me martelando sem parar.
“Sua hora chegou, dentro de um minuto você morrerá. Nesse momento de agonia, porém, vocês seres humanos têm direito de responder a uma pergunta, a mais importante da sua existência. Porém, se errarem ou não souberem a resposta, irão carregar o peso das suas lembranças para sempre. Caso acertem, têm a graça de esquecerem tudo desta vida e voltarem numa forma de vida mais evoluída, que não é a do ser humano. Preste atenção: eu tenho o poder de apagar, de consertar o erro mais cruel de sua vida, portanto, me diga qual foi ele.”
Já inconsciente e morrendo, o maldito cavalo veio com o último prego no meu caixão. Eu respondi que minha maior cagada foi ter matado meu irmão por uma dívida de jogo. Era mentira. Não sentia pena dele. Apesar de ser meu irmão, nunca me amou e era ainda pior do que eu. Infelizmente para mim, a morte também sabia o que eu sentia e quem tinha sido meu irmão.
"A resposta está errada. Seu maior erro foi ter corrompido um jovem ator de dezessete anos. Ele perdeu a família e o trabalho pelo vício que você vendia. Numa orgia ele matou a namorada e foi preso. Sua família desmoronou, os pais se separaram e seus irmãos também se transformaram em viciados. O jovem foi estuprado na prisão e morreu baleado numa tentava de fuga. E você sabia de tudo isso.”
Seis anos depois, a cada momento também me lembro desse erro final que me amaldiçoou. Antes de morrer, porém, o cavalo ainda me disse que a resposta certa estava no próprio sonho. Na cultura dos homens, os sonhos com cavalos que relincham sempre significaram conhecer alguém famoso ou importante, que no caso foi o ator idiotinha para quem vendia drogas. Esse foi o sinal dado no sonho e eu nem tinha a desculpa de dizer que nunca tinha ouvido falar desse significado dos sonhos. Minha mãe explicava coisas assim para mim e meus irmãos sempre que acordava e lembrava-se de algum sonho. Com a morte não tem discussão.
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