Eu posso representar uma exceção, mas meu hino preferido é o da Bandeira, o primo pobre dos hinos brasileiros. Sim, primo pobre, que não se compara com a suntuosidade do Nacional nem provoca a comoção pátria do da Independência, aquele do “brava gente brasileira”.
Meu hino é mais simples, menos eloqüente. Chama a bandeira de “pendão da esperança” e confia no sentimento do cidadão ao “querido símbolo da terra”. Talvez, seja a singeleza da música que me atraia. Ou a eficiência dos versos – aliás, versos de grife, assinados por Olavo Bilac.
Quer saber? Eu não me importo com o fato de o meu hino ser eclipsado pelos titãs daí de cima. Porque o Hino da Bandeira carrega uma vantagem em relação aos seus tios-avôs: ele comunica melhor seu conteúdo. Quem não entende isso?
Em teu seio formoso retratas
Este céu de puríssimo azul,
A verdura sem par destas matas,
E o esplendor do Cruzeiro do Sul.
Tudo bem que a ordem indireta da primeira estrofe não seja um exemplo de objetividade:
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz.
Mas nada que um pequeno reposicionamento sintático não resolva: “A grandeza da Pátria nos traz à lembrança tua nobre presença”. Viu? Claríssimo. O mesmo não se pode dizer desse trecho do Hino da Independência:
Os grilhões que nos forjavam
Da perfídia astuto ardil...
Hã? E O Nacional não fica atrás no quesito obscuridade. Na minha infância, por exemplo, sempre imaginei rincões brasileiros forrados de sorridentes margaridas – era o que eu entendia quando ouvia esse trecho:
Do que a terra, mais garrida,
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores
Foi lendo Sérgio Augusto em As Penas do Ofício (Agir) que fiz um upgrade no meu repertório “hinológico”. Descobri, por exemplo, que na Copa de 2002 o jornal inglês The Guardian classificou o Nacional Brasileiro como o mais bonito de todos hinos executados nos estádios. Ele foi chamado de “o mais alegre, o mais animado, o mais melodioso e o mais encantador do planeta”, desbancando até mesmo a suposta soberania da Marselhesa. Pode ser que o The Guardian tenha elogiado o Nacional (ou Virundum na intimidade) para espetar os franceses, desafetos históricos dos ingleses. O fato é que ninguém contestou a rasgação de seda, e saímos do Japão com dois títulos: um hino aclamado e o Penta!
Sérgio Augusto, um dos nomes mais felizes do jornalismo cultural, também menciona outra curiosidade: o Nacional foi revisado e quase recomposto antes de fincar raízes no nosso imaginário. Pitacos, colheradas, intervenções – de nada disso, o hino se livrou. Veja como ele ficaria se as sugestões ou primeiras versões tivessem sido acatadas:
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
Da Independência o grito retumbante (...)
Fadado pela mão da natureza
És belo, és forte, impávido gigante.
Concordo: estranhíssimo. O fato é que, até hoje, muita gente acha os hinos um panfleto mentiroso, ufanista e desnecessário, capaz de ocultar as contradições sociais sob a égide do berço esplêndido, dos raios fúlgidos e da pátria amada, salve, salve. Eu, não. Adoro os hinos. Sozinhos, eles não resgatam a identidade de um povo, mas podem ajudá-lo a redesenhar o contorno dessa identidade por meio da poesia. Sinceramente, acredito que a bandeira brasileira deva, sim, receber o afeto que se encerra no meu peito juvenil (ok, não tão juvenil assim...). O que não dá para conceber é que essa mesma bandeira seja também o símbolo augusto da pátria da politicagem canalha que faz a festa há décadas no poder. É para essa gente que serve aquele pedaço redentor e, quem sabe, profético do Nacional:
Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte
Não conquistamos ainda a igualdade, mas nunca é tarde para lembrar que nosso braço é forte.