Chama-se “Morning Mood” (algo como “Espírito da Manhã”) a suíte do compositor norueguês Grieg, composta para a peça “Peer Gynt” do dramaturgo conterrâneo Henrik Ibsen, encenada pela primeira vez na Itália em 1867. “Morning Mood” embala Gynt, o personagem perfeito nas suas imperfeições. O maior problema da composição é o excesso de execuções. É como “Carmina Burana”, que já serviu para ritos egípcios no cinema, para as maluquices de Michael Jackson e até para comercial de bolacha no Brasil.
Para isolá-la de contaminações, “Morning Mood” deve ser ouvida em silêncio. É como um ato de oração. Melhor ainda para quem conhece Peer Gynt, o herói norueguês que saltou da mitologia escandinava para o colo de Ibsen.
O personagem carrega verdades universais, é um sábio dos mitos orientais ou um mago das fábulas ocidentais. Viaja pelos oceanos, atravessa fiordes da Noruega e alcança a África, antítese da sua terra natal. Mas sua principal viagem é interior. À medida que conhece o mundo e se reconhece nas pessoas, o herói renega valores absolutos, muda de idéia sem hesitação, perdoa a si mesmo pelos erros do passado e alicerça sua esperança na possibilidade de acertar no futuro.
Os críticos dizem que Grieg ficou muito veiculado a Ibsen, o que pode ter obscurecido todo o seu potencial. Ele é considerado um aventureiro da música erudita, que teve a coragem de abandonar o romantismo e sucumbir a uma realidade menos lírica - talvez porque soubesse de cor sua própria dor.
Com Ibsen, aconteceu a mesma coisa. Ele era um dramaturgo que falava por meio da arte e precisava dela para se comunicar. Destrinchou a alma humana atráves de “Peer Gynt”. E fez panfleto feminista em “Casa de Bonecas” por meio de Nora, a mulher que recusa a dominação masculina.
Mas o sucesso não entusiasmava Ibsen. Depois de morar longos anos na Itália, ele voltou a Noruega para viver como um proscrito. Sabia tudo sobre inquietude humana, mas preferia o isolamento. Era arredio e intransigente. Alegava que rejeitava a fama porque toda forma de sucesso corrompia.
O que imaginaria Ibsen se estivesse vivo hoje? Se lesse “Caras” e se soubesse o quanto os anônimos se desesperam para virar celebridades? Ibsen é melhor morto. Sua integridade interior, ainda que impopular, permanece nos lagos azuis-petróleo e nas florestas geladas da Noruega. Ouvir “Morning Mood” é viajar para lá.