Posts Tagged ‘Conto’

Véu de noiva

segunda-feira, junho 15th, 2009

Capítulo 1

Que maus sonhos! A mãe abençoava-lhe e desejava-lhe bons sonhos, mas eram só maus, só maus. Deitava-se e logo adiante, súbito, despertava afogueado: os sonhos. Era no dia do casamento da irmã que se passavam.

Na festa, entre cumprimentos e suspiros, o véu caía-lhe, descortinando a face pálida e transformando-se em negra mortalha. Faltavam ainda duas semanas para o enlace, mas os preparativos andavam até as tantas.

Na sala, sobre a mesa escura, flamejavam os detalhes prateados das pequenas lembranças que traziam os nomes dos noivos: Isidro e Marta. A família, de certo modo, ocupava as noites com entusiasmo e já uma ponta de nostalgia. (mais…)

Síndrome rara

terça-feira, maio 12th, 2009

Formidáveis mostram-se as perspectivas da felicidade! Ali está, percorrendo a orla da praia de Botafogo, o servidor público Mério Troncoso Patopas. Jamais foi visto mais exultante. – São misteriosos os caminhos do Senhor – recitou, benzendo-se sob sua rígida religiosidade, um colega muito antigo da repartição onde trabalharam juntos por mais de duas décadas. – Caralho! – admirou-se o colega do futebol das quintas. Ambos, e outros, nunca imaginariam Mério Troncoso Patopas num momento de felicidade exposta. (mais…)

um texto feliz – Texto de Thiago Roque

sexta-feira, maio 8th, 2009

era um domingo de sol.
ele estava indefectível num conjunto azul-menino, tênis branco e um boné que lhe conferia um certo ar de malandragem-carioca-boêmia – nem tanto a madame satã, nem tanto a marcelo d2.
já ela, cor-de-rosa no vestido, tiara de princesa, sandália fechadinha para poder correr à vontade. fashion. coisa de passarela.
o parque era grande, com muito verde, com muita gente.
muito... coisa que não se mede. (mais…)

só – Texto de Thiago Roque

quinta-feira, abril 23rd, 2009

a taça jaz em cima da pia, guardando um resto de vinho abandonado.
virada do avesso, num canto, de castigo, a lembrança está emburrada.
sabe aquela cara de "eu não fiz nada"?
falta apenas ajoelhar no milho.
os telefones do disque-alguma coisa não atendem.
os cds da fiona apple se cansam de rodar. (mais…)

Formoso doutor

quinta-feira, abril 16th, 2009

O sujeito vindo lá de outras bandas era mesmo formoso, dizia-se aos punhados pelas ruas afora e pelas casas adentro. As mocinhas foram logo sonhando com o Geonildo e suas madeixas alouradas, os olhos brilhantes em azul forte, o nariz pequeno, a pele esticada, os braços avolumados, o queixo nem estreito nem largo, a estatura boa, a voz macia, o jeito doce, bem-educado ele. Veio parar no povoado não se soube de onde, de um dia para o outro, sem aviso prévio, atropelando as comadres que tudo viam e sabiam, desafiando os coronéis a quem se pedia bênção para ajuntar-se com os dali, inquietando os moços mais rústicos do lugar. O Geonildo veio e foi ficando. (mais…)

Aquela bala de hortelã (completo)

sexta-feira, abril 3rd, 2009

Capítulo 1

O verão de 1962 foi de derreter os miolos. Pelo menos era isso que costumávamos ouvir com freqüência nas conversas preguiçosas dos vizinhos e conhecidos quando andávamos pelas ruas logo após o almoço. Não, isso não quer dizer que não havia chuvas. Chovia constantemente. As enxurradas encarregavam-se de trazer muita terra das encostas e despejá-la nas calçadas. Quando o sol ressurgia e as nuvens desapareciam do céu, lá iam os moradores, especialmente os comerciantes, com suas enxadas em punho, raspar os ladrilhos barrentos. Mas esse trabalho pouco adiantava, porque dali a algumas horas ou no máximo em dois ou três dias, o aguaceiro despencava novamente e a lama cobria tudo outra vez. Para nós, estudantes do quarto ou quinto ano, tanto os dias de sol como os dias de chuva representavam ocasiões para aventuras, às vezes bem sucedidas, em outras... (mais…)

Beijo de moça

domingo, março 22nd, 2009

Na primeira vez, ela desceu os dois lances de escadas vestindo jeans e blusa branca colada à pele, um fio moreno claro de cintura à mostra. Nos pés, um salto médio. Pendurava bolsa a tiracolo. Abriu o portão, foi para a rua. Até dobrar a esquina, trinta e cinco passos, contados. Esperei. (mais…)

Vozelindo

sexta-feira, março 13th, 2009

Alvorecer. Ele parece pisar em falso em seu progresso pela estradinha que liga o pequeno sítio à cidade. Vai meio assim, de banda. O primeiro sol bate em meia face. No encalço, emendam-se os netos pequenos: o Pedro e a Lúcia. De manhã, sempre é assim. Leva as crianças e as verduras. Enquanto estudam umas, vendem-se as outras. (mais…)

Oito de março – Texto de Otávio Nunes

domingo, março 8th, 2009

“Maria, Maria, quem traz na pele
essa marca possui a estranha mania
de ter fé na vida”

(Milton Nascimento e Fernando Brant)

Maria Aurelina levanta cedo, faz o café, vai à padaria comprar pães, acorda as crianças para irem à escola e prepara o café com leite delas. Despede-se dos filhos e se encaminha ao tanque, onde quilos de roupa a esperam. Na hora do almoço, refoga dois copos de arroz, pega na geladeira a vasilha com o feijão cozido no dia anterior, frita um ovo e come sozinha, na mesa da cozinha. (mais…)

Menino deitado no pasto

segunda-feira, fevereiro 16th, 2009

O primeiro brilho da noite jovenzinha despontou lá pelos lados das paineiras ainda verdes manchadas dos fiapos brancos do algodão que escapa. Está mesmo entre o tronco e uma galhada longa que inibe a pobre amarelinha ao pé da árvore grande. É lá. Surgiu agora há pouquinho, enquanto esticávamos sobre a pastagem nossos sacos de estopa. Eta, mas que noite calorenta esta aqui. O rumor do brejo lá embaixo sobe como se pedisse o favor duma brisa, aquelas rãs todas e seus sapos preguiçosos chiando por conta de tantos grilos afoitos. Valha-me Deus, Tio Franco, e esses besouros? Mais acima, dentro da sala de porta entreaberta, a chama do pavio ensopado do lampião serpenteia de leve, numa calmaria extrema. Venha cá, Tia Rita. Mas ela não vem. A Tia Rita deitada na grama, quem pode com isso? Mas nem a cadeira ela traz, como antes. Só me sento, menino, só me sento. Agora nem me dá resposta. (mais…)