Archive for the ‘Contos’ Category

Rua de paralelepípedos

quarta-feira, agosto 25th, 2010

Esta história, tentei contar a tantos que nem sei. Mas não assim, de uma forma a não saber contá-la, pois essa tarefa parece-me ser a mais simples. Em verdade, sempre faltou-me coragem. Coragem para crer em minhas próprias palavras e, daí, por conseguinte, no episódio. Sou de um município do interior, hoje até certo ponto um razoável centro urbano, o que costumam chamar de cidade de médio porte. Numa das ruas centrais, tenho meu comércio. Trabalho com tecidos, a maioria peças de finas tecelagens. Esses pormenores, contudo, não são necessários ao relato. São apenas detalhes sobre minha conduta, talvez importantes para afiançar este meu objetivo, talvez desnecessários, mas, de pronto, aí estão. (mais…)

Primitivos desejos

sexta-feira, agosto 20th, 2010


A meu pedido, o velho historiador Nathaniel Pérez esquadrinhou com esmero o mapa daquela próspera zona rural onde em algum ponto situava-se o pequeno rancho. O lugar, contando-se também a vegetação que o circunda, mede não mais que meio alqueire, mas assim mesmo significa para o reduzidíssimo grupo que o conhece algo difícil demais para ser esquecido em meio aos incontáveis hectares de cana de açúcar. (mais…)

Miniconto – Praça pública

quarta-feira, agosto 18th, 2010

Debaixo de um sol escaldante, as tropas reuniram-se na grande praça. Os cavalos sapateavam. O megafone emitia sons inaudíveis e ameaçadores. Dos soldados inquietos escorriam regos de suor. As portas do comércio eram fechadas às pressas. No canteiro central, uma cachoeira de água fresca brotava em meio a sereias de ferro plantadas na fonte. (mais…)

Primeiros socorros

quarta-feira, julho 28th, 2010

No dedo um falso brilhante
Brincos iguais ao colar
E a ponta de um torturante
Bandaid no calcanhar...

(Trecho da música “Dois pra lá, dois pra cá”, de João Bosco e Aldir Blanc)

- Bom, você pode não acreditar, filho... Aliás, às vezes nem eu mesmo acredito...

Dizendo isso, o velho farmacêutico debruçou-se sobre a escrivaninha onde decifrava, com seus grossos óculos, uma terrível receita médica. Mas o neto, um poeta adolescente cujas energias ameaçavam explodir-lhe as têmporas diante de uma história romântica, não lhe dava sossego. Na verdade, não o desacreditava. Queria, isto sim, animá-lo a contar-lhe aquele episódio que até hoje é lembrado pelos mais antigos daquela rua de comércio movimentado, muito tranquila num passado ainda perto. (mais…)

Na delegacia de polícia

segunda-feira, julho 26th, 2010


Sei lá, doutor, a hora que eu entrei no quarto e vi aquele homão naquela posição foi tão engraçado, mas tão engraçado, que eu não consegui segurar. Imagine o senhor: uma pessoa chega pra trabalhar todo dia e todo dia ele não está lá, ele já foi pro serviço dele não sei onde. Todo dia ele já saiu, o senhor me compreende?

A gente faz as mesmas coisas um santo dia atrás do outro, do mesmo jeitinho, porque pra que fazer de outro modo, o senhor não acha? Eu chego, pego minha chave na portaria do prédio e subo. Nunca pergunto se ele já saiu. Porque ele sempre já saiu, nunca nunca que ele está em casa. (mais…)

Arquiteto da loucura

quarta-feira, julho 21st, 2010

Por aí, em meio ao desatino dessas ruas caóticas, chamam-me louco. Às vezes, sentado na sarjeta ou deitado em becos, entre latas de lixo que me abrigam do frio, pego-me a pensar: será que sou mesmo louco? Seria possível à mente humana engendrar uma farsa tão perfeita? Pode haver uma circunstância mais terrível que esta e ainda assim firmar-se como inverdade? Riem-se de minha angústia os poucos dispostos a ouvir-me. Pedem-me para contar-lhes de novo minha história, depois abandonam-me sozinho à mercê do desespero sempre pronto a exigir-me refém de seu cárcere. Em meu caminho, não se podem mais contar as ocasiões em que estive perto de pôr um fim a isso tudo. Entretanto, não tive coragem no começo, e agora já acostumei-me ao confronto. Aprendi a esperar que a turbulência violenta de meus nervos se vá e deixe-me uma vez mais com o fiapo de esperança ao qual me apego para sustentar-me à vida. Sou um desgraçado, fie-se nisto quem vier a ler-me um dia. Ser humano algum deveria merecer destino semelhante, mas aqui estou, certo de minha sina e ao mesmo tempo aterrorizado diante dela. Peço-lhe: leia-me e diga-me se estou louco. (mais…)

A moça do violino

quarta-feira, junho 16th, 2010

Com a publicação do conto que você lerá a seguir, meu objetivo é prestar minha singela homenagem a quem poderia ter sido um grande escritor.

Conto escrito em agosto de 1994 por
Álvaro Villas Bôas

Quem me contou este fato - na verdade uma historiazinha banal, engraçada e, ao mesmo tempo, muito triste - foi um amigo sem diploma, sm estudo, sem grandes leituras. Possuía, entretanto, um extraordinário senso de detalhe e bastante capacidade para reconstituir situações e descrever pessoas. Assim, quando lhe perguntei como era, exatamente, a "moça do violino", o meu amigo, um "Machado de Assis" não lapidado, em potencial, apresentou-me um retrato de corpo inteiro, convincente, perfeito, de modo que, passados tantos anos, eu ainda a "vejo", embora jamais tenha me encontrado com ela. (mais…)

Quatro minicontos

sexta-feira, fevereiro 12th, 2010

Bailarina
Só dava pra ver, sob a roda e salpicada de gotículas rubras, metade da sapatilha.

Sexo
À beira do passeio, a moita balançava lá e cá, lá e cá, lá e cá, laaaaaá e caaaaaaaaá…

Umidade
A gota salgada deslizou por debaixo do véu preto e chocou-se contra a tábua cheirando a pinho.

Sambinha
A madeira solta do assoalho gemeu de um lado e de outro até desprender uma poeirazinha barata e faceira.

O menino e o lobo

domingo, novembro 8th, 2009

Quando nos mudamos, no início da década de setenta, para a propriedade rural de meu avô materno, jamais poderíamos imaginar como seria dramática aquela primeira semana que marcou para sempre nossas vidas. Fomos para o campo cumprir o que se estabelecera tão logo o vovô desistiu de continuar. Deu-se assim: brigando sem queixar-se há cinco ou seis anos com uma interminável seqüência de cânceres, ele cansou-se, mandou chamar as duas filhas, os genros e os netos, anunciou seu fim iminente e foi deitar-se, como se a morte o esperasse na cama, onde, aliás, encontrou-a poucas horas depois. A probabilidade do acontecimento já havia feito com que meu pai e meu tio tomassem a decisão de seguir com a fazenda de médio porte, uma boa produtora de café e melancia. Assim, três ou quatro dias após o enterro, juntamo-nos à vovó. (mais…)

Dores nas costas

sexta-feira, outubro 16th, 2009

I

Outro dia, apareceu-me lá no consultório, pelo meio da tarde, um tal Silvério. Minha clientela geralmente é fixa, não por outra coisa, senão pelo detalhe de a minha agenda viver lotada. Para dizer a verdade, tenho consultas marcadas para os próximos seis meses. Por isso mesmo, quando surge algum novo paciente, é natural alimentar uma certa curiosidade. Contudo, quando ele entrou, ambos não pudemos evitar boas risadas. O fato é que já nos conhecíamos, embora não tivéssemos ligado nossos nomes às respectivas pessoas. Eu o tinha por Silva e ele me tratava por Doutor Juca. São esses os apelidos pelos quais costumam se dirigir a nós, inclusive no edifício onde moramos, coincidentemente no sétimo. Não era para rir? (mais…)