Archive for the ‘Contos’ Category

Beijo de moça

domingo, março 22nd, 2009

Na primeira vez, ela desceu os dois lances de escadas vestindo jeans e blusa branca colada à pele, um fio moreno claro de cintura à mostra. Nos pés, um salto médio. Pendurava bolsa a tiracolo. Abriu o portão, foi para a rua. Até dobrar a esquina, trinta e cinco passos, contados. Esperei. (mais…)

Vozelindo

sexta-feira, março 13th, 2009

Alvorecer. Ele parece pisar em falso em seu progresso pela estradinha que liga o pequeno sítio à cidade. Vai meio assim, de banda. O primeiro sol bate em meia face. No encalço, emendam-se os netos pequenos: o Pedro e a Lúcia. De manhã, sempre é assim. Leva as crianças e as verduras. Enquanto estudam umas, vendem-se as outras. (mais…)

Menino deitado no pasto

segunda-feira, fevereiro 16th, 2009

O primeiro brilho da noite jovenzinha despontou lá pelos lados das paineiras ainda verdes manchadas dos fiapos brancos do algodão que escapa. Está mesmo entre o tronco e uma galhada longa que inibe a pobre amarelinha ao pé da árvore grande. É lá. Surgiu agora há pouquinho, enquanto esticávamos sobre a pastagem nossos sacos de estopa. Eta, mas que noite calorenta esta aqui. O rumor do brejo lá embaixo sobe como se pedisse o favor duma brisa, aquelas rãs todas e seus sapos preguiçosos chiando por conta de tantos grilos afoitos. Valha-me Deus, Tio Franco, e esses besouros? Mais acima, dentro da sala de porta entreaberta, a chama do pavio ensopado do lampião serpenteia de leve, numa calmaria extrema. Venha cá, Tia Rita. Mas ela não vem. A Tia Rita deitada na grama, quem pode com isso? Mas nem a cadeira ela traz, como antes. Só me sento, menino, só me sento. Agora nem me dá resposta. (mais…)

Combate ao tráfico

sexta-feira, setembro 26th, 2008

Os homens do batalhão de combate ao tráfico vasculharam o pequeno sobrado. O detetor inteligente percorreu cada canto da construção instalada num bairro da chamada neoclasse média, sem nada encontrar. Dentro de seus uniformes de fibra flexível de aço e munidos com as tradicionais pistolas a laser, os soldados apresentaram-se ao comando. A operação fracassara, ao menos até ali, com os métodos legalizados. O Capitão Assíria deu-lhes ordem para descansar, e eles sabiam dos procedimentos a serem adotados a partir daquele momento. (mais…)

A hora da morte

terça-feira, setembro 16th, 2008

Contou-me esta história o magistrado Ilídio Fagundes Tourão, digno de um caráter fiduciário à prova de manobras e entrementes aferidos em razoável monta nos meandros do ofício. Por certo, e disso dou fé, não ocorre entre sua altiva história um só processo de que possa ter se saído assim escassamente, nem mesmo este derradeiro, no qual, aliás, meteu-se de jeito. Contou-me esta história o magistrado Ilídio Fagundes Tourão, cujo passamento deu-se às nove horas e um quarto do dia 10 de março último, uma manhã de sol brilhante, como o fora sempre quem ela, discretamente, ali socorria à velhice imposta pela doença e talvez por um sórdido destino. (mais…)

1982, Barcelona

sexta-feira, julho 4th, 2008

Tanto tempo se passou! O jovem que eu era já se transformou apenas numa viva recordação de minha memória, hoje tenho filhos que namoram e planejam entrar na faculdade, meu casamento nem sei quantos aniversários completou. Mas assim mesmo não se põe um dia sem que aquelas imagens pairem, nítidas, diante de meus olhos. Primeiro, o zunido do vento breve e violento; depois, o sol insubordinado e veloz; e por fim, o terrível ruído guinchando em nossos ouvidos, ao mesmo tempo em que sobre nossas cabeças o céu se fecha abrupto, como se fosse nos tragar através de suas brumas, e estas num só instante se tornam breu. O que houve de errado para que só a mim, entre tantos outros, restasse a lembrança? Não dizem que somos peças de uma grande engrenagem? Quantas vezes uma só peça, por mais insignificante que seja, compromete toda a máquina? É como penso: sou uma peça assim. (mais…)

Um projeto importante

quarta-feira, julho 2nd, 2008

Aquele Eurípedes, de mãos grossas e cabeludas, tamborila sem ritmo algum o verniz riscado da mesa da sala. De sua posição, vê-se quase inteiro o quarto dos dois meninos e da mocinha. Em curtos intervalos, leva à boca o cigarro de palha enrolado há pouquinho. Olha entretido para o cômodo onde dormem os filhos, um em cada cama, os colchões forrados com algodão. Nenhum dos três está em casa agora. Todos na escola noturna, aprendendo a escrita. Claro, a leitura também. Fossem eles para frente, que isso não é mais para seu bico. A essa hora, costuma ir tomando, de gole em gole, sem pressa de acabar, o café passado pela mulher depois da janta. A caneca verde de lata fumega até que a última gota desça já quase fria. De vez em quando, a primavera calorenta sopra uma brisa fraca. Mal dá tempo de suspirar por esse efêmero prazer, pois muito depressa o tempo aquieta-se outra vez. Lá fora, só mesmo um ou outro cachorro ladra, mais tarde as corujas também darão o ar da graça. Mas por ora é só isso mesmo: o Eurípedes tamborilando na madeira. (mais…)

A máscara de Fany

sábado, fevereiro 2nd, 2008

Às sete, quando a claridade do dia já se dissipava em meio aos sobradinhos grudados da rua estreita, Mademoiselle Fany ergueu-se da cama, quase num bote, como alguém prestes a perder um horário importante. Foi à janela e com os dedos pequenos alargou os vãos entre as lâminas para olhar embaixo. Havia ainda um silêncio bem próprio daqueles instantes entre a tarde e a noite. Um ou outro pedestre, feito sombra, circulava pelo calçamento vazio. Um alívio passageiro a assaltou antes que ela novamente se aborrecesse com o atraso. Tirou os olhos do movimento lá fora e entregou-se a um banho não muito demorado. Então, dentro de um robe de chambre, ocupou-se de seu apronto. (mais…)

Dores nas costas

domingo, outubro 21st, 2007

I

Outro dia, apareceu-me lá no consultório, pelo meio da tarde, um tal Silvério. Minha clientela geralmente é fixa, não por outra coisa, senão pelo detalhe de a minha agenda viver lotada. Para dizer a verdade, tenho consultas marcadas para os próximos seis meses. Por isso mesmo, quando surge algum novo paciente, é natural alimentar uma certa curiosidade. Contudo, quando ele entrou, ambos não pudemos evitar boas risadas. O fato é que já nos conhecíamos, embora não tivéssemos ligado nossos nomes às respectivas pessoas. Eu o tinha por Silva e ele me tratava por Doutor Juca. São esses os apelidos pelos quais costumam se dirigir a nós, inclusive no edifício onde moramos, coincidentemente no sétimo. Não era para rir? – “Então o nome do senhor é João Carlos? Puxa, poderia ser Joca, não é? “ Bem, claro que, em meio a outras risadas, expliquei a ele que aquilo era coisa de família, apelido dado pelo avô, enfim, esses pormenores de pouco interesse a este caso. Depois de a poeira baixar, a surpresa ficando para trás, passamos a conversar o que realmente cabia a um médico e um paciente. (mais…)

Vinte contos

domingo, setembro 9th, 2007

– Pai, os homens.

O primeiro alvor da manhã infiltra-se em meio aos sarrafos envergados pelo peso da lona, quando Justiniano empurra para o lado a colcha surrada e senta-se na beirada do catre. Como nos outros dias de muitos anos de seus sessenta e poucos, as dores nas costas erguem-se com ele. Mira a filha e por um instante toma-o um sobressalto. A menina, agora entre os quinze e os dezesseis, parece ter prosperado em suas carnes da noite para o dia. Dentro de um vestido maltratado, embora bem limpo e passado, perfaz-se em feições de mulher pronta, o colo abundante e as ancas fartas. Como se dera aquilo?

- Os homens vêm vindo, pai. (mais…)